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“Queremos a geral do Cinema Olimpya”

Durante praticamente uma semana, a vila situada na praia de Jericoacoara, no litoral oeste cearense, viveu uma febril efervescência cinematográfica com a realização do I Festival de Cinema Digital, que reuniu cineastas renomados e expressões audiovisuais dos quatro cantos do Brasil. No final, um manifesto amplamente subscrito reivindicou, entre outras sentidas demandas, o merecido lugar do cinema brasileiro no circuito de exibição.

O Manifesto: inspiração

O documento repercutiu de modo atrativo no meio cinematográfico, visto que trata de uma questão crucial para o seu desenvolvimento: a relação com o público, o afastamento ocasionado pela elitização das salas de exibição e os mecanismos voltados para a popularização das obras produzidas. A inspiração foi resumida numa idéia que cala fundo no coração dos amantes do cinema (“Queremos a geral do Cinema Olympia”): uma sala de exibição da Baixa do Sapateiro, em Salvador, celebrizada numa composição de Caetano na voz de Elis Regina (http://letras.terra.com.br/elis-regina/123929/), entre outras inspirações, recebia em suas sessões as classes e camadas da população excluídas da sociedade — que se encontravam nas matinês, envolvendo-se apaixonadamente com filmes de faroeste, comédia e mistério.

“Não quero mais essas tardes mornais, normais
Não quero mais vídeo tapes, mormaço, março, abril…”

A íntegra do Manifesto:

“Durante a primeira edição do Festival de Jericoacoara de Cinema Digital — ocorrida de 09 a 13 de junho de 2010 —, cineastas, intelectuais, estudantes, produtores, cineclubistas, artistas, técnicos e representantes de entidades da área do audiovisual, por ocasião do Seminário "A Tecnologia Digital e o Futuro do Cinema", chegaram à conclusão de que o Cinema Brasileiro somente terá futuro se as obras realizadas pelos brasileiros se tornarem conhecidas dos brasileiros.

Partindo dessa premissa, e para efeito de sistematização, foram diagnosticados cinco problemas cruciais no Brasil, quais sejam:

1. Há, no País, escassez de salas de exibição — que, além de concentradas nas capitais, encontram-se reduzidas à metade das existentes há vinte anos. Como agravante, a grande maioria desses equipamentos se localiza dentro de shoppings — fato que afasta as classes e camadas mais pobres, compromete e desvirtua a natureza do espetáculo cinematográfico, restringindo praticamente sua existência a blockbusters milionários.

2. A cota de tela do cinema brasileiro nas mencionadas salas de exibição, que já chegou a 180 dias anuais, hoje está resumida a vinte e oito dias, impedindo que a grande maioria dos filmes produzidos em nosso País chegue ao chamado circuito comercial.

3. Os filmes de curta metragem — de exibição obrigatória assegurada na legislação —, além de não contar com o reconhecimento e respeito dos exibidores, também não contam com a efetiva fiscalização do Poder Público, limitando sua circulação praticamente ao circuito brasileiro de festivais e à rede de exibição cineclubista.

4. As televisões, notadamente aquelas de perfil público, ainda não possuem uma política que vise, de forma sistemática e contínua, a incorporação nas suas grades de programação das produções qualificadas como independentes.

5. Verifica-se a ausência, na grande maioria dos estados brasileiros, de uma política efetiva e continuada — via editais públicos e outros mecanismos — de apoio ao setor audiovisual nos elos da Produção, Difusão, Formação e Preservação.

Neste ambiente, visando à resolução do leque de problemas verificados, destacam-se as seguintes proposições:

1. A efetivação das propostas de política pública para o setor audiovisual oriundas da Pré-Conferência do Audiovisual e da Conferência Nacional de Cultura.

2. O retorno da cota de tela de 180 dias para a produção brasileira no circuito comercial de exibição.

3. A implantação de rede nas salas de cinemas, a preços populares — com matriz digital —, em todos os municípios e nos bairros de periferia, com garantias de prevalência da exibição da produção audiovisual brasileira.

4. A aprovação e implantação de proposição legislativa que vise à exibição de filmes brasileiros nas escolas.

5. A necessidade de se estabelecer parceria entre o Governo Federal, os governos estaduais e municipais, via editais públicos, que vise à regionalização de verbas de fomento para o setor audiovisual, a exemplo de outras bem sucedidas ações — Programa DocTV, NPDs e Cine Mais Cultura.

6. O reconhecimento pela ANCINE do público que transcende o circuito das salas comerciais, aficionado em cineclubes, escolas, sindicatos, museus, centros comunitários, culturais e outros equipamentos, devolvendo ao cinema sua função social mais abrangente — em contraponto ao critério único de entretenimento e de mercado adotado hoje no País”.

A força do festival

A exibição de quarenta produções digitais em curta metragem, selecionadas entre 240 inscritas, movimentou todas as noites a população numa tenda de circo montada na área central da vila. Durante o dia, debates com realizadores (entre eles, os cearenses Jefferson Albuquerque e Marcus Moura, e o baiano Tuna Espinheira) aqueceram o caldeirão de idéias acerca da situação contemporânea e perspectivas do audiovisual no Brasil.

O festival incluiu até a realização de um vídeo (“Desmonte das Dunas”), da oficina de introdução à linguagem audiovisual realizada com jovens de Jericoacoara. O argumento, escolhido pelos alunos, abordou a preocupação da juventude com o desmonte da “duna do pôr-do-sol”, frequentada diariamente pelos moradores e turistas em sua elevada e mágica beleza — do crepúsculo e da ampla visão oceânica descortinada lá de cima.

Emoções de Tendler

O cineasta documentarista Silvio Tendler, entusiasta da produção independente e politicamente engajada (http://www.filmedoc.blogspot.com/ ), revelou suas “emoções à flor da pele” após sua participação no festival: “Convivi com estudantes de cinema, cineclubistas, abdistas (NR: membros da ABD – Associação Brasileira de Documentaristas), jovens cineastas, outros nem tanto (Tuna Espinheira andava por lá com um filme maravilhoso sobre Leonel Matos), curiosos, amantes de cinema… Na praça da cidade, numa tenda de circo, foi projetada, em formato digital, toda a sorte de filmes. A platéia cheia de moradores da cidade, que não tem cinema, assistia encantada aos filmes, vibrando e aplaudindo cada um como se fosse o único. Me emocionei muito quando assisti à projeção de ‘Couro de Gato’, de Joaquim Pedro de Andrade, um filme que hoje completa 50 anos de idade, mais atual do que nunca. As pessoas se identificaram e amaram o filme. No dia seguinte, conversei com Paulinho, um habitante da cidade que vive como guia dos turistas que se aventuram pela praias e lagoas da região, que me disse: ‘Esse filme é muito bom. Ele é diferente. Me fez pensar".

Cinema na tenda

E Tendler disse mais: “Ver cinema brasileiro numa tenda de circo, lá no interiorzão do Brasil é emocionante e pedagógico: o povo gosta. É só ter chance de assistir. Nesse momento que o cinema fugiu do Shopping, recuperou sua verdadeira identidade e reencontrou seu público, me senti um privilegiado por ter participado desse momento mágico — que espero que se amplie e dissemine Brasil afora. A Ancine tem que atualizar-se e considerar que o cinema brasileiro tem público fora dos shoppings e que existe vida inteligente Brasil afora. O exemplo de Jericoacoara é eloquente e faz pensar. É só contabilizar o público que frequenta cineclubes, centros culturais, projeção em escolas e universidades e veremos que as estatísticas que privilegiam unicamente as projeções em salas de cinema são contos da carochinha para nos enganar quanto aos verdadeiros desejos do público em relação aos filmes. Nem só de ‘arrasa quarteirões’ vive o cinema”.

Silvio lembrou ainda a presença em Jeri do craque de futebol Afonsinho, que compareceu ao festival no clássico filme de Oswaldo Caldeira, "Passe Livre". E destacou a presença de Moacir Lopes, autor de "A Ostra e o Vento", romance que virou um esplêndido filme dirigido por Walter Lima Junior.

Antiga necessidade

Desde muito tempo, Jeri requeria um acontecimento do porte de um festival de cinema. A filmagem de “A ostra e o vento” (no elenco, astros do porte de Leandra Leal, Lima Duarte e Fernando Torres), que teve as locações realizadas em sua orla e envolveu a população, desde 1997 incrementou essa necessidade — que terminou ocorrendo pela via de uma obra compartilhada entre muitos protagonistas que se desdobraram para realizá-la com parcos recursos. Foi basicamente o pessoal do Clan do Cinema, uma cadeia produtiva que consiste no congraçamento da maioria das habilidades profissionais inseridas numa obra cinematográfica, do diretor ao montador, do câmera ao maquinista, do roteirista ao produtor. E uma reunião de habilidades com prática suficiente para realizar um festival, inclusive oriunda de experiências de controle absolutista e excludente. Uma marca das mais originais do empreendimento é, desse modo, que o festival não tem dono — como sói acontecer com a maioria dos que estão atualmente em atividade — e pertence ao povo de Jericoacoara. “Não tem um proprietário ou coronel”, como costuma dizer um dos seus protagonistas. Não obstante essa concepção, o mais antigo entre os consorciados, o cineasta e advogado Francis Vale, tratou de efetivar uma proteção legal que qualifica como uma forma de blindagem contra a ação dos oportunistas que proliferam no meio cultural: registrou no nome de sua empresa, a Anhamun Produções, a marca festival.

Homenagens e premiação

Além dos filmes vencedores nas diversas categorias, aconteceram homenagens significativas com outorga do Troféu Pedra Furada (uma alusão à mais exótica e intrigante atração de Jeri, a qual se chega após uma prolongada caminhada pelas escarpas litorâneas). O cineasta baiano Tuna Espinheira recebeu uma Menção Especial do Júri. O escritor Moacir Lopes, ex-presidente do Sindicato dos Escritores do Rio de Janeiro, autor em 1964 do livro “A Ostra e o Vento”, recebeu uma homenagem especial.

Também foi homenageado o argentino Esteban Inácio, que, radicado em Jericoacoara há pelo menos duas décadas, há cinco anos montou uma sala de exibição para filmes de arte e infantis. Também Esteban, antes mesmo da fascinante obra de Walter Lima, contribuiu para lastrear a necessidade de um festival de cinema, semeando o interesse popular e incrementando o entusiasmo da juventude pelo fascínio da sétima arte.

De Fortaleza, Luiz Carlos Antero