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O Iraque e o radicalismo de mercado neo-conservador

Embora o pensamento econômico, ou seja, a teoria econômica, não possa ser aplicada na realidade em sua integral concepção, o exemplo do Iraque — desde a invasão americana de 2003 —, oferece a oportunidade para uma observação sobre os efeitos econômicos, sociais e políticos do pensamento radical de mercado da vertente neo-conservadora, que orientou a gestão do governo Bush.

Por Walter Otto Ötsch e Jakob Kapeller

Nossa tese é a seguinte: uma das causas essenciais para que o Iraque tenha se transformado em um “Failed State” (Estado falido) foi a implementação direta de um radicalismo de mercado (neoliberal).

A “Estratégia de Segurança Nacional”, de 17 de setembro de 2002, que esboçava a estratégia de longo prazo do governo americano, foi um texto bastante discutido. Ele se apóia na ideologia radical do mercado e propaga a reivindicação americana pela hegemonia mundial. Um aspecto central da política americana relaciona-se com a chamada “liberdade econômica” que deve ser implementada em todo o mundo. Implicitamente, trata-se de impulsionar um “modelo de globalização econômica”, no qual as multinacionais, em operação global, deveriam assumir um papel dirigente, pois são vistas como portadoras da “liberdade”. A guerra no Iraque pode ser vista como um resultado dessa estratégia.

Destruição do Estado iraquiano e instauração de uma direção autocrática para implementar o programa econômico de choque

O Estado iraquiano foi visto pelo invasor americano como um Estado corporativo que deveria ser substituído por um Estado mínimo. O Exército americano assegurou os campos de petróleo, mas empreendeu uma verdadeira destruição da infraestrutura do país. Ministérios, escolas, bancos, museus, hospitais e empresas públicas foram saqueados em três semanas. As bases da administração e da economia foram aniquiladas, a moeda iraquiana entrou em colapso. Todos os membros do partido Baath foram afastados dos cargos públicos e o exército foi dissolvido; muitos soldados levaram as armas para as suas casas.

A “autoridade provisória” (Coalition Provisional Authority – CPA), sob o comando do americano Paul Bremmer III, exerceu todo o poder executivo, legislativo e judiciário, através de “regulamentos” e “ordens” que estavam acima da legislação iraquiana existente. Paul Bremmer regia o Iraque através de um sistema de decretos, com os quais buscava dar uma nova configuração estatal e econômica inteiramente nova ao país. De maio de 2003 a junho de 2004, Bremer promulgou em exatos 100 decretos um verdadeiro programa econômico de choque. E tudo isso sob a bandeira da democracia, finalmente alcançada.

Especialmente radical foi a primeira leva de reformas econômicas, determinadas pelos decretos de número 12, 37, 39 e 40. O decreto 12 eliminou de um só golpe todas as regulamentações de defesa frente ao comércio exterior e suspendeu qualquer controle alfandegário de importação ou exportação. O Iraque tornou-se assim o único país do mundo sem qualquer alfândega. Além disso, introduziu-se um imposto de renda de 15% — tanto para os trabalhadores, quando para as empresas —, substituindo o antigo sistema fiduciário progressivo.

O decreto nº 39 representou um ataque particular à configuração institucional da economia iraquiana, permitindo a participação de até 100% do capital estrangeiro nas empresas – com exceção da indústria petrolífera, do setor bancário e na área da segurança industrial. Ele prevê ainda a possibilidade de transferência ao exterior de todo o lucro obtido no país e proibe qualquer tipo de favorecimento ao investidor local. O decreto nº 40 regulamentou a privatização dos bancos.

Embora houvesse um limite de até 50% para a participação do capital estrangeiro neles, essa cláusula foi deixada de lado. A seguir, os camponeses do país foram proibidos de produzirem as suas próprias sementes, o que significa que tinham que comprá-las das empresas estrangeiras (Monsanto, Dupont, Bayer, etc). Os pequenos produtores e os comerciantes também foram fortemente atingidos e colocados, na prática, sob a tutela das multinacionais.

O Estado mínimo

As autoridades de ocupação formaram um Estado mínimo radical, no qual a maioria das tradicionais atividades estatais foram privatizadas. Paul Bremer administrava um país com cerca de 27 milhões de habitantes com apenas 1500 pessoas. Antigas funções estatais, entre elas a construção de infraestrutura, mas também atividades políticas e militares, foram passadas para empresas multinacionais americanas.

Em relação à concessão de contratos com as firmas americanas, surgem sempre denúncias de corrupção, na medida em que elas estão próximas de políticos americanos. Até 2008, falava-se de cerca de 13 bilhões de dólares americanos envolvendo tais casos.

A abertura para o mercado internacional e a concessão de contratos para as empresas norte-americanas provocou uma invasão de firmas dos Estados Unidos. Até meados de 2005, mais de 150 empresas tinham contratos em valor superior a 50 bilhões de dólares — que correspondia ao valor total do PIB iraquiano.

Consequências

Em 2004, cerca de 60% da população estava desempregada. Mas números exatos são, até hoje, difíceis de ser obtidos. Em abril de 2005, a direção da “reconstrução” foi modificada, e agora multiplicam-se os subcontratos iraquianos e projetos menores de infraestrutura são incentivados. O número de iraquianos que trabalham em projetos norte-americanos passa de 120 mil empregados.

Pelo menos nos primeiros anos da invasão americana, não houve nenhum tipo de ajuda para as empresas iraquianas e a maioria dos grandes projetos foram assumidos por empresas multinacionais. Sob a administração Bremer, apenas 15 mil iraquianos obtiveram algum posto de trabalho no conjunto dos programas financionados pelos Estados Unidos. A destruição da indústria local e o elevado número de desempregados é uma das principais causas dos muitos atentados que se voltam contra os invasores estrangeiros e os seus projetos, e também contra as pessoas que ali trabalham.

Como na maioria dos casos de confronto bélico da dimensão de uma guerra, a população foi fortemente atingida. Segundo estudos, o número de mortos entre a população civil varia entre 150 mil (Iraq Family Health Study Group 2008), chegando até a 650 mil (Burnham, The Lancet, Volume 368), no período que vai de março de 2003 até junho de 2006. A principal causa de morte é devida a ferimentos ocasianados por tiros e bombas.

Em relação aos números que possibilitam uma certa idéia sobre a qualidade de vida, o resultado é amargo. A desnutrição aguda duplicou entre 2003 e 2005. No início de 2007, cerca de 54% dos iraquianos buscavam sobreviver com menos de um dólar por dia; apenas 32% tinham acesso a água potável; cerca de um terço das crianças do país estavam subalimentadas. A assistência médica é ruim: 12 mil médicos deixaram o país; mais de 2 mil foram sequestrados ou assassinados. Em 2008, o Iraque contava com apenas 9 mil médicos e em torno de 15 mil enfermeiros e enfermeiras. O conflito provocou um verdadeiro “exodo dos formados”, de professores, de funcionários e de pessoas com capacidade de direção. Em razão disso, em 2006, dois terços das crianças iraquianas não frequentavam a escola.

Fonte: Internationale Politik und Gesellschaft, 2009, nº 2. Tradução do alemão por Luciano C. Martorano.