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Leituras críticas sobre Maria da Conceição Tavares

No dia 24 de abril de 2010 a economista Maria da Conceição Tavares completou 80 anos. Nascida num povoado no interior de Portugal, perto de Anádia, na região de Aveiro, filha de uma mãe católica, com quem aprendeu a defender a luta emancipacionista das mulheres, e de um pai anarquista, ela viveu sua infância na ditadura salazarista (derrubada pela Revolução dos Cravos, em 1974) e durante a Guerra Civil espanhola.

Por Umberto Martins

O aniversário motivou uma série de comemorações e homenagens, entre elas o lançamento do livro “Leituras críticas sobre Maria da Conceição Tavares”, organizado pelo professor Juarez Guimarães, com artigos de Ricardo Bielschowsky, Emir Sader, José Carlos de Souza Braga e Maurício Borges Lemes, que abordam o pensamento e a obra da economista e uma entrevista com a própria, conduzida por Guimarães.

Democracia racial nos trópicos

Conceição chegou ao Brasil em agosto de 1954, um mês marcado por uma tragédia histórica: o suicídio de Getúlio Vargas, que comoveu a nação e protelou a conspiração golpista da direita, afinal concretizada dez anos depois, em 1964. Sua trajetória na vida intelectual e política foi caracterizada pela luta incansável em prol da democracia e das causas progressistas. Seu ideal, conforme reitera na entrevista, é “a construção de uma democracia racial nos trópicos”, bandeira que herdou do sociólogo e ex-senador Darcy Ribeiro (falecido em 1997).

A economista goza de uma simpatia generalizada nos meios intelectuais e acadêmicos do país em função do modo franco e incisivo com que expõe e defende suas ideias, da coerência de suas posições políticas e profundidade na abordagem de temas fundamentais relacionados ao desenvolvimento nacional.

Sua obra é extensa, com livros e textos sobre o esgotamento do modelo de industrialização fundado na substituição de importações, acumulação de capital, ciclo e crise da economia nacional, a política econômica do governo Collor, o pensamento de Celso Furtado, imperialismo e subdesenvolvimento, entre outros temas.

Questão nacional

Depois de uma ativa militância política no PMDB, primeiro contra o regime militar, depois durante a democratização, ela ingressou no PT no início dos anos 1990. Sua contribuição teórica foi decisiva para que o partido viesse a assimilar e compreender a chamada questão nacional, a princípio ignorada pelos petistas.

“Minha contribuição a algumas ideias centrais que hoje fazem parte do ideário partidário foi, sobretudo, na questão nacional, na qual tenho que destacar a participação de Marco Aurélio Garcia, um dos grandes intelectuais do partido, e a questão da universalização das políticas públicas”, conta na entrevista a Juarez Guimarães.

Conceição apoia com entusiasmo o governo Lula, mas não perdeu o espírito crítico. “Na minha opinião”, diz, “o governo Lula foi o que mais avançou na republicanização do Brasil porque a sua luta fundamental é por incluir os excluídos nos seus direitos econômicos, sociais e políticos. Avançou muito na questão do trabalho, mas relativamente pouco na questão da terra. A luta por tornar republicano e democrático o próprio Estado brasileiro ainda está no começo. E quanto ao rentismo financeiro, sobretudo nas suas formas de arbitragem de movimentos livres de capitais internacionais, isso praticamente não avançou. Essa é uma herança do neoliberalismo iniciado no mundo na década de 1970 e tardiamente, mas de forma perversa, no Brasil, que deixou uma herança mundial responsável inclusive pela recente crise mundial.”

Ressalva

A propósito de “leituras críticas” cometo aqui uma ressalva acerca da análise que a economista fez sobre a trajetória histórica do imperialismo americano, divergindo neste aspecto dos artigos que focam o tema no livro.

Conceição supôs que os Estados Unidos relançaram sua hegemonia no início dos anos 1980 graças à consolidação do chamado padrão dólar flexível, após a radical alta dos juros anunciada pelo então presidente do Federal Reserve (Fed), Paul Vocker, em 1979.

Chegou a afirmar que a acumulação de saldos negativos no comércio exterior (desde 1971) não era sinal de fraqueza e que, muito pelo contrário, reforçava o poder imperial. Julgava, na mesma linha, que a assombrosa dívida acumulada pela sociedade estadunidense não era uma ameaça à hegemonia, visto que pode ser paga sem custo ou esforço maior que a mera impressão e emissão de dólar.

Lei do valor

Não concordo com tais opiniões. O déficit comercial alimentou aquilo que Lênin, adotando um conceito de Hobson, chamou de parasitismo. Provocou a decadência da indústria americana e induziu Tio Sam à suposição cômoda e falsa de que pode viver eternamente à custa alheia, comprando fiado e consumindo além dos próprios meios. Daí a dívida imensa.

Assim como a China deve sua ascensão ao crescimento da indústria, os Estados Unidos, do outro lado do Pacífico, devem seu declínio à perda da competitividade industrial – que o déficit comercial reflete. O rombo comercial (e em conta corrente) transformou os EUA de país credor no maior devedor do mundo, ao passo que o superávit elevou a China à condição de maior credora e financiadora de Washington. Ainda em nossa época, o processo de acumulação continua baseado primariamente no trabalho ou na famosa lei do valor descoberta por Adam Smith.

A crise iniciada no ramo imobiliário esteve obviamente associada à explosão do endividamento. A crescente vulnerabilidade e dependência dos Estados Unidos em relação ao financiamento de países superavitários, com destaque para a China, é a contrapartida lógica da dívida.

A exuberância financeira do império, sem âncora na produção real de valores (irracional, segundo o ex-presidente do Fed, Alan Greespan), parece ter ruído como um castelo de cartas na crise. O declínio da liderança econômica dos EUA no mundo, causado pelo parasitismo em aliança com o desenvolvimento desigual das nações, não começou com a recessão iniciada em dezembro de 2007.

É um processo histórico que teve início após a 2ª Guerra Mundial, conforme notou o historiador inglês Eric Hobsbawm. Ganhou impulso nos anos 1970 e prossegue até nossos dias. Não foi interrompido, muito menos revertido. Em outras palavras, não houve nenhum relançamento da hegemonia estadunidense.

O equívoco da eminente professora neste tema não diminui a extraordinária importância de sua contribuição teórica e política para as causas progressistas.