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Ernesto Laclau: A Kirchner, um luto de trabalhos e esperanças

À medida que os dias vão se passando, o país compreenderá crescentemente as verdadeiras dimensões da tragédia que representa para os argentinos a súbita morte de Néstor Kirchner. Com ele perdemos o estadista de maior envergadura que o nosso país já produziu nos últimos 50 anos. A ele estará sempre ligada a transformação profunda do Estado que a Argentina experimenta a partir de 2003.

Por Ernesto Laclau*, no Página/12

É preciso situar-se mentalmente no umbral daquele ano para perceber tudo o que mudou. O ano de 2003 não está tão longe no tempo e, contudo, o que o precedeu parece pertencer claramente a outra época.

O país vinha de uma série de experiências traumáticas: a ditadura militar, com a qual, em razão de uma série de leis e anistias, a ruptura tinha sido apenas parcial; o neoliberalismo menemista que, através de suas privatizações e desregulações, havia empurrado a Argentina à beira da bancarrota; o rotundo fracasso do governo da Aliança, que conduziu aos estouros de 2001. Havia um cinismo e um desencanto generalizados em relação à política, que encontraria sua expressão no notório lema “que se vão todos”.

Já as mobilizações subsequentes à crise – as fábricas recuperadas, a extensão do movimento piqueteiro e outros fenômenos concomitantes – estavam preanunciando que o ciclo do neoliberalismo estava chegando ao fim. Mas o que muito poucos esperavam era que essas mobilizações fossem encontrar eco e simpatia ao nível do Estado nacional.

Foi contra todas as expectativas que ocorreu o 2003. No começo, o novo tipo de discurso foi recebido com um considerável grau de ceticismo. Tratava-se, na apreciação de muitos, de mera retórica, atrás da qual teriam de se ocultar os habituais arranjos de alcova.

Mas logo foi preciso render-se à evidência: o novo governo estava comprometido com um programa total de reestruturação da sociedade argentina em seus diferentes níveis. Programa que não podia deixar de suscitar a adesão popular, ao mesmo tempo que ferir interesses criados que se haviam consolidado ao longo de décadas.

Em pouco tempo pudemos verificar o apoio dado pelo Governo às organizações populares; a decisão de operar, através dos julgamentos dos repressores, o desmantelamento da ESMA e outras medidas similares, a ruptura mais radical com o passado ditatorial que já aconteceu no continente latino-americano; a reorientação nacional da economia, no processo que vai desde a ruptura de fato com o FMI até o reforço do Mercosul e a recusa do plano da Alca de Bush na reunião de Mar del Plata de 2005; a democratização da Corte Suprema e da cúpula militar, etc.

Como é do conhecimento de todos, toda esta corrente profunda de mudança foi continuada e radicalizada através de uma série de medidas legislativas durante o governo da presidenta Cristina Fernández Kirchner, que representou um dos esforços mais ambiciosos e sistemáticos em nosso continente para reestruturar o Estado e redefinir suas relações com a sociedade civil.

Tudo isto foi feito no marco de uma integração cada vez maior da Argentina ao espectro dos novos governos progressistas da América Latina. O país está menos sozinho que nunca no passado.

Não vou discutir minuciosamente este programa legislativo. Nos últimos dias, outros – Mario Wainfeld e Horacio Verbitsky, entre outros – já o fizeram em excelentes artigos. Mas queria me referir a um aspecto chave, que revela simultaneamente a natureza do legado de Néstor Kirchner e seu estilo particular de liderança. Refiro-me às resistências que toda tentativa de mudança profunda suscita e ao coro de informações infundadas com a qual as forças reacionárias pretendem combatê-la.

Há poucos dias, as manchetes do jornal La Nación caracterizavam o kirchnerismo como “populismo autoritário”. A própria expressão já é em si problemática e ambígua, mas quando é usada para caracterizar a situação argentina é duplamente absurda.

Um populismo autoritário só poderia ser aquele em que as massas fossem inteiramente passivas e submetidas a uma liderança que tomasse as decisões sem compartilhar o processo deliberativo com ninguém. Isto pode vir a acontecer em certas sociedades – pensemos, por exemplo, no Zimbábue de Mugabe –, mas quando isto acontece, a deriva autoritária é cada vez menos populista, já que as massas são substituídas por pequenos grupos de capangas recrutados e organizados a partir do poder.

Em tais condições o que prima é o autoritarismo, enquanto que o populismo se limita a uma casca vazia, a uma interpelação meramente retórica, sem participação ativa alguma das massas.

Ora, quem quer que conheça minimamente o que está acontecendo na Argentina, sabe muito bem que nela se dá a situação exatamente inversa. Todas as medidas legislativas foram tomadas sobre a base da mobilização autônoma de um ou outro setor da sociedade.

Como explicar então esta insistência nos perigos autoritários do kirchnerismo? A resposta é obvia. Trata-se de criar uma cortina de fumaça, pela qual a suposta “defesa das instituições” frente ao “avanço autoritário” não seja uma tentativa grosseira para defender o status quo em que as corporações prosperam, frente à tentativa de democratizar estas instituições a partir de dentro.

Vocês se recordam da recente reunião do sr. Magnetto com líderes da oposição para planejar algo não claramente especificado, mas que, em todo o caso, implicava claramente a organização do confronto com o Governo? E vocês se lembram dessa outra reunião, muito mais sinistra, em que se obrigou a Lidia Papaleo a resignar o controle da Papel Prensa sob ameaças de morte?

A própria história acerca da sórdida ação do poder corporativo frente à vontade popular se repete em todas as instituições. O grande dilema a ser dirimido nos próximos anos, começando pelas eleições de 2011, é quem vai prevalecer: a Argentina corporativa do passado ou a Argentina popular, que começou a emergir com as mobilizações de 2001, que se consolidou em 2003 e que a partir de então foi ganhando uma batalha após a outra.

É no umbral desta confrontação que a pessoa de Néstor Kirchner permanecerá sempre como um sinal limiar e solitário. Já não será uma bandeira para as lutas, mas se transformou em algo mais importante: em um símbolo para as consciências.

Quero recordar três aspectos de sua obra e de sua mensagem. O primeiro é que foi um dos democratas mais radicais que a Argentina já produziu em anos recentes. Nunca tentou impor uma vontade burocrática, mas sempre buscou nas mobilizações espontâneas dos grupos de base os aliados naturais através dos quais pensar, repensar e matizar seu projeto.

O segundo é que nunca fez uma interpelação fácil às massas desestruturadas, mas compreendeu que, nas complexas sociedades contemporâneas, qualquer projeto de mudança tem que passar pela transformação interna das instituições.

Não sei se Néstor leu o Gramsci, mas em todo o caso sua ação política mostra algo que é profundamente gramsciano: a compreensão de que, nas sociedades contemporâneas, não há populismo fácil; que, sem a mediação institucional, não há projeto coerente.

Neste sentido, ele mostrou, através de sua ação política, algo que sempre pensei: que entre o institucionalismo e o populismo sempre há uma complexa negociação, cujos resultados apresentarão matizes distintos em diferentes sociedades.

Há, finalmente, uma terceira dimensão que é decisiva para entender o legado de Kirchner: sua firmeza de aço, seu compromisso total com as causas que abraçava. Era um homem de luta, não de transações. Era isso que indignava os seus detratores e o que denominavam de sua tendência “a dobrar a aposta”. Creio que se tratava de algo mais importante que isso. Ele tinha perfeita consciência da natureza das forças com as quais se confrontava, e sabia que só uma vontade inquebrantável seria capaz de enfrentá-las.

O que nos resta por fazer agora, depois de Néstor? A resposta é clara: continuar sua obra e completar sua tarefa. Ele nos legou objetivos que ultrapassam a sua vida e a nossa e que incluem todo o continente. A América Latina ocupará seu lugar nesta marcha geral dos povos que será preciso conduzir, a partir da barbárie neoliberal, ao estabelecimento de formas justas, livres e racionais entre os homens.

Já ouvimos nestes últimos dias as vozes melífluas e viscosas daqueles que, esfregando as mãos de satisfação, dizem que agora Cristina está sozinha e terá que contemporizar com a oposição. Aqueles que pensam assim terão uma surpresa.

Em primeiro lugar, parecem não conhecer o temperamento da nossa Presidenta, cuja determinação militante se mostrou em todas as provas – muitas duras – que teve que enfrentar durante o seu governo. Em todas as circunstâncias mostrou uma clareza de propósitos e uma determinação em sua execução que a coloca em situação de total paridade com seu predecessor.

Em segundo lugar, Cristina não está sozinha. Perdeu, é verdade, o companheiro de sua vida e a acompanhamos em sua dor. Mas a acompanha também todo um povo, o qual se manifestou nos últimos dias em uma das maiores expressões de luto coletivo – talvez a maior – da história argentina.

Devemos prestar a Néstor, nas palavras de Antonio Machado, “um luto de trabalhos e esperanças”. Cada fábrica, cada escola, cada lar, deve erigir-se como a expressão da vontade coletiva para que a chama que se acendeu em 2003 nunca se apague. Que todos os argentinos se identifiquem com aquelas palavras que José Gervasio de Artigas pronunciara em seu leito de morte: “Amanhece, encilhem-me o cavalo”.

* Ernesto Laclau é argentino, professor de Teoria Política na Universidade de Essex