Sem categoria

Aborto: O direito de uma discussão elevada

A descriminalização do aborto foi explorada de forma oportunista e preconceituosa durante a campanha eleitoral. As discussões em torno do assunto se basearam em preceitos religiosos e não trouxeram para o âmbito político qualquer contribuição relevante relacionada à questão da saúde pública que afeta o problema.

O próprio papa Bento XVI, durante um encontro com bispos brasileiros na Itália, chegou a afirmar que eles deveriam orientar seus fiéis a não votarem em candidatos favoráveis ao aborto. A inaceitável declaração eleitoreira do papa é dirigida pelos mesmos tabus eclesiásticos que, ainda no Século 21, condenam o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo e o uso de preservativos — fundamental no controle das doenças sexualmente transmissíveis.

Passadas as eleições, a discussões sobre o aborto podem e devem retornar à ordem do dia, através de um debate público sério e consciente. No início do mês a revista eletrônica Ciência Hoje, da SBPC, publicou o artigo “Aborto no Brasil: mortes em silêncio”, de Jerry Carvalho Borges, da Universidade Federal de Lavras (http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/por-dentro-das-celulas/aborto-no-brasil-mortes-em-silencio). O texto traça um panorama dos casos de interrupção da gravidez, seus impactos na saúde pública, a descriminalização dessa prática no país e as divergências sobre o início da vida.

O autor defende que, nos últimos anos, o aborto se converteu em um problema da ordem da saúde pública mundial, pois os casos de interrupção de gravidez, por meios legais ou ilegais, são cada vez mais frequentes. A situação se reflete no crescimento no número de mortes e sequelas em mulheres que buscam, na ilegalidade, alternativas para driblar a proibição do aborto.

Segundo estimativas de 2005, da Organização Mundial da Saúde (OMS), a cada ano ocorrem no mundo mais 87 milhões de casos de gravidez indesejada. Deste total, entre 46 a 55 milhões de casos resultam em abortos.

Diariamente, são realizadas aproximadamente 126 mil interrupções voluntárias da gravidez, ou seja, um aborto a cada 24 segundos. Comparativamente, esse número corresponde a 1/4 da população brasileira ou a soma de todos os habitantes da Itália, Espanha ou Argentina. A grande maioria desses abortos (78%) ocorre em países em desenvolvimento.

Aproximadamente 18 milhões de mulheres abortam de forma clandestina a cada ano, e cerca de 13% da mortalidade materna no planeta decorre de abortos malsucedidos.

No Brasil

Segundo estimativas de 2001, 10% das gestações no Brasil terminam em aborto. Dados de 2005 — com base em internações hospitalares decorrentes de complicações provenientes de abortos registradas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) — indicam que ocorrem cerca de 1,5 milhões de abortos a cada ano.

Cálculos do Ministério da Saúde revelam, por sua vez, que 3,7 milhões de mulheres entre 15 e 49 anos já abortaram — o que corresponde a 7,2% do total de mulheres em idade reprodutiva.

De acordo com Jerry, estudiosos do tema acreditam que o número de interrupções não naturais da gestação pode ser ainda maior. O fato é que em quase todos os casos de interrupção da gravidez em clínicas clandestinas, as mulheres só procuram os serviços de saúde pública se algo der errado.

Apesar da enorme frequência de abortos no país, o Código Penal Brasileiro prevê uma pena de 1 a 10 anos de detenção, de acordo com a situação, como punição para o aborto. Pela lei, a interrupção não natural da gravidez pode ocorrer apenas em duas situações: quando houver risco de morte para a gestante ou a gravidez for resultante de estupro.

Motivações

Para Jerry, diversos fatores influenciam uma mulher a optar por interromper uma gravidez — mesmo correndo riscos enormes para a sua saúde. Uma pesquisa coordenada por Débora Diniz, antropóloga da Universidade de Brasília (UnB), e Marilena Corrêa, médica sanitarista da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), avaliou mais de 2 mil estudos sobre o aborto.

Segundo Diniz e Corrêa, cerca de 70% das mulheres que abortam tem entre 20 e 29 anos e possuem uma união estável. Essas mulheres têm até oito anos de estudo e a maioria trabalha e é católica.

A maior parte delas possui, pelo menos, um filho (entre 70,8% e 90,5%) e é usuária de métodos contraceptivos (principalmente a pílula anticoncepcional). Segundo vários estudos, a realização de abortos seria uma solução utilizada por mulheres quando os métodos contraceptivos falham.

As análises também indicam que entre 50,4% e 84,6% das mulheres que interrompem a gravidez utilizam o misoprostol (conhecido popularmente como Cytotec), um medicamento vendido ilegalmente em todo o país.

Opiniões

Uma pesquisa realizada em março de 2007 pelo Instituto de Pesquisas Datafolha revelou que a maioria dos entrevistados (65%) é contrária a mudanças na atual legislação sobre o aborto e que cerca de 16% são favoráveis a uma expansão na legislação. Apenas 10% dos entrevistados afirmam que o aborto deveria ser descriminalizado, algo que já ocorre em 97 países, que reúnem cerca de 66% da população mundial.

Jerry admite que o debate sobre a ampliação do direito ou descriminalização do aborto é complexo e que um dos grandes entraves da realização e análise do tema é a questão religiosa. “Posições religiosas contrárias são fortes. Já a Constituição Brasileira afirma que o país é laico e é responsável pelo bem-estar dos indivíduos” afirma.

Começo da vida

O autor também questiona o momento em que o concepto pode ser considerado um indivíduo. Segundo ele, alguns cientistas, defendem que a vida começaria durante a fecundação (1º dia de gestação), quando ocorre a união dos gametas feminino e masculino e a formação da primeira célula (zigoto), que já possui todos os genes do futuro indivíduo.

“Como a ausência de atividade cerebral é o evento associado com a morte humana, outros pesquisadores consideram que o início da vida humana ocorre apenas com o surgimento da atividade neuronal, na 4ª semana após a fecundação” afirma Jerry.

Um terceiro ponto de vista associa o início da vida à capacidade do concepto de sobreviver de forma independente. Segundo essa hipótese, o feto somente poderia sobreviver fora do organismo da mãe, desde que tenha cuidados médicos intensivos, a partir de 25 ou 27 semanas ou, alternativamente, após o parto, quando, segundo as leis brasileiras, o indivíduo adquire direitos básicos como o registro civil.

“Na verdade, a definição da origem da vida é uma discussão inócua e que admite uma série de pontos de vista conflitantes. Para alguns, desde a fecundação o concepto já possui a potencialidade para gerar uma nova vida, que será engendrada após uma série de eventos sucessivos e programados. Para outros, contudo, o embrião, por si só, representa apenas um amontoado de células que, se deixadas sem o apoio da mãe, não gerarão nada”, ressalta.

Ainda segundo Jerry, independentemente do posicionamento individual sobre a questão, devemos refletir sobre o inegável e legitimo direito à informação que as milhares de cidadãs que optam por essa decisão merecem.

Por Mariana Viel, baseado no texto de Jerry Carvalho Borges