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Luiz Manfredini: Doutor W. G. Kaufmann

A maçaneta girou, a porta rangeu e entreabriu-se o suficiente para que meio corpo do doutor Winfried Georg Kaufmann se pusesse à mostra. A boca pequena de dentes amarelos e encavalados pronunciou o nome do próximo paciente no quase sussurrado tom de uma confidência.

Por Luiz Manfredini*

Alfredo ergueu-se e fitou, curioso, a fisionomia severa do médico. Mais velho que imaginara, aquela figura antiga de miúdos olhos cinzentos que afastou o corpo delgado feito um traço de nanquim para que Alfredo entrasse no consultório espartano, pé direito muito alto, a luz baça que a custo varava o lustre de vidros jateados.

Winfried Georg Kaufmann sentou-se à pequena mesa, Alfredo à sua frente. Parecia acomodar-se mal na cadeira de madeira. Leu a ficha manuscrita pela enfermeira e lançou sobre o paciente aqueles olhinhos cinzentos, metálicos, sem vida.

Quem o recomendou?

Ninguém, disse Alfredo.

E como chegou aqui?

Eu o conheço.

Acima dos olhos cinzentos, duas sobrancelhas hirsutas ergueram-se, puxando as pálpebras. A boca do médico fechou-se num pequeno bico. Então Alfredo arqueou-se para se aproximar dele. E disse, pausadamente, com alguma solenidade:

O senhor me atendeu há 37 anos …

… na Polícia Federal, emendou Winfried Georg Kaufmann.

Alfredo retrocedeu o corpo em direção ao espaldar da cadeira, testa crispada.
Como o senhor se lembra?

Pelo nome, disse calmamente Winfried Georg Kaufmann, naquele tom débil quase engolido pela orquestra da passarinhada no final da tarde. E voltou os olhos para a ficha manuscrita à sua frente. A boca pequena alargava-se, agora, num modesto sorriso.

Alfredo procurou resgatar na imagem envelhecida do médico o sujeito alto, magro, muito branco, sério e compenetrado que se introduziu, cheio de cuidados, na pequena cela, apoiando-se nos batentes da porta metálica para não tropeçar no degrau, forçando os olhos para habituar-se à obscuridade. Trinta e sete anos é muito tempo, pensou Alfredo, o suficiente para substituir uma imagem por outra, a jovem pela velha, que da primeira pouco ou nada retém.

Lembro-me muito bem de como o senhor chegou, doutor, indagando a quem deveria atender, quebrando a solidão daquela manhã de véspera de Natal, o tira postado à porta, de guarda.

O doutor Winfried Georg Kaufmann cruzara as mãos ossudas sobre a ficha do paciente, recostara-se no espaldar da cadeira e fixava Alfredo com aqueles olhinhos pequenos, plúmbeos, um pouco líquidos, encimados por pálpebras macilentas e as duas sobrancelhas revoltas.

O senhor não devia saber, mas os dois outros que estavam na cela, naquele momento aboletados no alto dos dois beliches, eram falsificadores de dólares que não entendiam nada do que se passava. O mais que fizeram, naquele instante, foi espichar as cabeças e talvez tenham visto como me ergui lentamente do catre, embaixo, tentando em vão controlar o desgoverno de penas e braços, por fim sentando-me na beirada do colchão de palha para dizer-lhe, sem pressa:

A mim, doutor.

Winfried Georg Kaufmann passou as mãos pela cabeça, alisando ainda mais os ralos cabelos quase totalmente brancos esticados sobre a curvatura do crânio, da testa à nuca. Reacomodava-se vez por outra na vetusta cadeira de madeira sem, todavia, despregar os olhos de Alfredo.

O senhor sentou-se ao meu lado, doutor, levemente arqueado para não bater a cabeça na parte superior do beliche, e enquanto compulsava sua pequena maleta preta de remédios e instrumentos, perguntou-me de modo quase inaudível:

O que houve?

Não controlo meus movimentos, doutor.

Desde quando?

Agora cedo.

O médico fez testes. Os falsificadores acompanhavam, atentos, do alto dos beliches. Os braços em cruz do paciente não conseguiam trazer o dedo indicador até o nariz. Perdera o senso de direção. De olhos fechados, não conseguia manter-se em pé. De olhos abertos, seguia direção errática, contrária à vontade. O médico fez mais alguns testes e pensou. Indagou sobre o estado geral de Alfredo e novamente refletiu. Depois sussurrou:

Vou interná-lo.

Alfredo sorriu.

Não posso tratá-lo nessas condições, disse ao policial. Preciso interná-lo.

Poucas horas depois Alfredo seria transferido para o hospital. Nada o deixaria mais radiante do que a estada naquelas alvuras assépticas, ainda que obrigado às sopinhas ralas, injeções dolorosas e uma penca de incertezas.

Janine chegou mais tarde, interrogativa.

Alfredo antecipou-se:

Está tudo de acordo.

Vai dar certo, disse ela.

Afinal, o que você teve?, quis saber o médico.

Nada, doutor.

Winfried Georg Kaufmann empertigou-se na cadeira, inclinou o corpo sobre a mesa, apoiando-se nos cotovelos, espalmou as mãos e empurrou o queixo magriço e pontudo para a frente como rogando explicações.

Nada?

Nada, doutor.

Alfredo percebeu a fisionomia austera do médico se contorcer sob o espanto.

Vou lhe contar, doutor. Nunca imaginei que um dia revelaria isso ao senhor.

Alfredo suspirou. Winfried Georg Kaufmann fez novamente de sua boca diminuta um arremedo de bico. Estavam ambos os rostos a não mais que cinqüenta centímetros um do outro.

Havia, contra mim, doutor, uma ordem de prisão preventiva no Rio de Janeiro. Passara lá os dois últimos anos e fiquei marcado. O senhor sabe, lutávamos contra a ditadura e as coisas não eram fáceis naquela época. Preso aqui por conta de atividades anteriores à minha ida para o Rio, logo surgiu a tal ordem de prisão e falou-se na minha transferência. Começo dos anos 70, doutor Kaufmann, no Rio a oposição ao regime – a oposição revolucionária, não a oposição consentida – sempre que descoberta acabava no quartel da Barão de Mesquita, no Cenimar, na Base Aérea do Galeão ou no DOPS, notórios centros de tortura e morte. Não, não poderia ir para lá. Se fosse, não voltaria.

Algumas noite insones – não muitas – e o caminho a seguir emergiu da mente com força. Retardando a ida, quem sabe o esquecessem. Era uma aposta.
Anos antes, um primo da minha mulher tentara o suicídio ingerindo comprimidos contra a epilepsia. Quarenta e oito comprimidos, doutor, numa tacada só. Engoliu-os à noite e adormeceu para a morte. Na manhã seguinte, lúcido e desenxabido, o máximo a que chegou em seu propósito letal foi criar um tempestuoso descontrole motor, braços, pernas e cabeça em desnorteio. Um fiasco, doutor. Está vivo até hoje.

Traga-me 48 daqueles comprimidos – pedi à Janine. Separe-os em pacotinhos plásticos e os camufle dentro de sonhos de nata.

Três sonhos de nata, a casca ainda crocante e o miolo macio feito nuvem me chegaram no início da noite pelas mãos de um velho policial magro, pálido e cansado que eu supunha estivesse muito doente. Evitando os olhares gulosos dos companheiros de cela, localizei os pacotinhos, retirei-os com cuidado e, de cada um deles, os comprimidos intactos. Então ofereci aos dois, que dividiram um dos sonhos, lambusando-se com nata e açúcar enquanto eu, cuidadosamente, oculto na parte de baixo do beliche, ingeria um a um dos comprimidos. Somente depois atirei-me ao sonho. Em seguida, ansioso, estirei-me no catre e adormeci para a vida.

Alfredo não sabia se Winfried Georg Kaufmann sentia-se ofendido por nunca ter desconfiando da trama, ou se a expressão pétrea do seu rosto, entre severa e curiosa, denunciava apenas o assombro pelo inesperado. Cotovelos apoiados na mesa, mãos cruzadas segurando o queixo com os dois polegares, não fazia um movimento sequer. Nem mesmo sua respiração era perceptível.

Na manhã seguinte acordei como o primo da minha mulher, lúcido, mas não desenxabido. Testei a situação. O descontrole motor fazia do ato de tentar levantar-me um sacrifício desmesurado. Mas levantei, sentei-me na beira da cama e me pus de pé. Precisava avisar Janine. Decidi chamar o carcereiro, mas minhas pernas insubmissas não me levaram à portinhola da cela. Fui parar, cambaleante, ao lado do outro beliche, quase atirando-me sobre um dos falsificadores de dólar que roncava à solta. Tentei novamente seguir até a pequena janela recortada a meia altura no zinco da porta. Mais uma vez acabei em outra direção. E assim, tentando sustentar-me sobre as pernas bambas, procurando equilibrar a cabeça e ordenar a rebeldia dos braços, acabei acertando a pontaria, vendo-me, por fim, agarrado à janelinha, arfante, respirando o frescor da quieta manhã de véspera de Natal.

Avisada, Janine já aportou na Polícia Federal com um médico à tiracolo, o doutor Francisco Saragoza, vizinho e amigo da família. Mas ele nada pode fazer. Ginecologista, pouco entendia das nuanças da mente, da química dos nervos. Pediu especialista. Era o plano.

O plano?

A voz de Winfried Georg Kaufmann saiu ríspida e matizada por secreções que o forçaram, em seguida, a pigarrear.

Aquela história ainda acabaria irritando o velho médico, pensou Alfredo. Mas resolveu prosseguir. Era depoimento para a história, não poderia fraudá-lo.
Um plano, doutor. Os sonhos, os comprimidos, o tal do Saragoza, o pedido dele por um especialista e, por fim, a convocação do senhor por um grupo de amigos.

Mas quem me chamou foi a Polícia Federal.

Não foram os nossos amigos?

Amigos de quem?

Amigos dos meus amigos, que trariam um médico de confiança, orientado a pedir o internamento e, assim, adiar e, se possível, evitar a transferência ao Rio.

Não, quem me chamou foi a polícia.

Alfredo coçou o queixo. Então Winfried Georg Kaufmann não era o médico simpatizante chamado a cumprir a missão de livrar o preso de seu anunciado martírio carioca?

Volta e meia me chamavam para atender presos …

Alfredo está perplexo. Somente Janine poderia lançar sobre a história uma luz de verdade. Mas cadê Janine?

Eu ia lá, atendia o sujeito, não perguntava nada, nem o nome, explicava-se Winfried Georg Kaufmann.

Esse pessoal havia sido torturado?

Não sei. Naquele tempo tudo podia acontecer.

Mas não se queixavam?

Queixas sempre haviam.

Por alguns instantes, médico e paciente permaneceram mudos. As mãos ossudas de Winfried Georg Kaufmann manuseavam lentamente a ficha do paciente e seus olhinhos cinzentos pareciam viajar pelo que não estava escrito. Alfredo içava da memória a temporada no hospital, que se arrastou monótona, entre injeções dolorosas, sopinhas insossas, um silêncio terminante violado apenas por ralos passos no corredor, pelo ranger dos carrinhos de refeições e, vez por outra, muito fugidia, a insinuação do trânsito de automóveis.

Do Rio de Janeiro, novidade alguma. A Polícia Federal nunca apareceu no hospital, apesar dos interrogatórios inconclusos na delegacia. Alfredo torcia pela improvável hipótese de o haverem esquecido. Na dúvida, e diante do declinante efeito dos comprimidos originais, pediu mais alguns à Janine. Gastava as horas lerdas com livros e pensamentos. Estava com 21 anos.

Um dia desceu para tomar sol no pátio, de onde partia um corredor, em direção à rua. Ao final do corredor, um grande portão escancarado recortava o corriqueiro da manhã. Por alguns instantes Alfredo observou o movimento, à distância, plantado no meio do pátio. Cenas da vida comum das pessoas comuns, para o prisioneiro mais benéficas que o sol. Dias depois, não resistiu. Cauteloso, seguiu até o portão, passos medidos, e por breves instantes observou de tão perto o sobe-desce que chegou a captar o perfume das moças. Imaginou-se alheio às apoquentações – ao hospital, à prisão, aos olhos da ditadura, às interrogações do futuro – e docemente entregou-se ao testemunho do vaivém. E voltou à assepsia do quarto, às sopinhas e às injeções. Outro dia repetiu a visita ao cotidiano e, na terceira vez em que se postou solitariamente no portão, simplesmente deixou-se escorregar para a calçada. Mergulhado no oceano dos passantes, deslizou pela ruazinha antiga debaixo do sol quente da manhã de janeiro e perdeu-se na cidade, esquecido de que talvez nem mais estivessem em seu encalço.

E lá se vão 37 anos, doutor Kaufmann.

* Luiz Manfredini é jornalista e escritor paranaense, autor de As Moças de Minas. Lançará, em 2011, o romance Memória de Neblina.