No fio da navalha
Duas cenas chamaram a atenção no conflito da semana passada: o contorno dos morros ocupados desordenadamente por 400 mil moradores dos complexos da Penha e do Alemão e os acenos de moradores com lençóis brancos.
Por Márcio Marques*
Publicado 06/12/2010 18:09 | Editado 04/03/2020 17:04
O que significam estes dois fatos conjugados? Minha família tem origem naquela região. Eu mesmo morei na Penha por 13 anos. Tenho cartões-postais da Igreja na Penha na década de 60, e dominavam a paisagem dos morros o verde da vegetação e apenas algumas casas. Cansei de passear de bicicleta na década de 80 por aquelas ruas que apareceram agora na TV num contexto bem distinto do qual me acostumara.
No lugar da minha bicicleta, tanques de guerra. No lugar da vegetação, o cinza de um amontoado de casas e prédios mal construídos e sem nenhuma segurança ou conforto. Um completo desastre social, onde a violência se alastrou com facilidade. Seria apenas pela paz o clamor daqueles lençóis?
Onde estudam e brincam as crianças daquele lugar? Por onde escoa o esgoto produzido por 400 mil pessoas que vivem naquelas condições? Que esperança carregam nos corações os adolescentes e jovens daquela localidade? Como diminuir a tragédia social construída em 50 anos de abandono daquela região?
Além da derrota do tráfico, a sociedade brasileira precisa cobrar a fatura da injusta divisão de riquezas. O modelo de capitalismo brasileiro gerou a miséria e o crime organizado. Nas favelas da Zona da Leopoldina estão bisnetos de escravos, retirantes nordestinos com seus filhos e netos. Os desempregados das décadas de 80 e 90 foram parar nas encostas dos morros cariocas. Para se ter uma ideia da dívida social ali existente, para construção das casas populares necessárias (cinco moradores por domicílio), ao preço médio de 50 mil reais, seriam gastos cerca de 4 bilhões de reais. Persistiriam ainda as dívidas de saúde, saneamento, educação e geração de empregos. Esse dinheiro existiu nesses 50 anos e engordou as contas bancárias de poucos que hoje se chocam com a violência das favelas, mas parecem cegos diante da miséria.
É este o sentimento que mais cedo ou mais tarde florescerá naquelas regiões. O atual governo dá demonstrações de preocupação genuína com essas questões. No entanto, há muito por fazer! Livrar a população do julgo do traficante é imperativo. Não podemos repetir os erros do passado e sugerir que o discurso social se oponha à intervenção do aparato de segurança. É preciso a conjugação efetiva desses dois vetores. Faz-se necessário, agora, que a efetividade da força militar usada para retomar o território, se aplique também à ação de políticas públicas sociais. Foram precisos tanques de guerra para expulsar os bandidos e serão necessários equipamentos sociais eficazes para vencer a miséria que assola os moradores.
No momento em que pontos de memória e de cultura forem instalados nessas regiões será preciso contar com máximo realismo a história. Como se chegou a essa situação vergonhosa e caótica? Como lidar com a evolução do estereótipo do bandido bonzinho da década de 70 até o "vagabundo" que não respeitava mais a comunidade? Que história contaremos da evolução do tráfico no Rio de Janeiro? Que códigos foram construídos e destruídos nesses lugares?
Há um fio da navalha que marcará o caminho a perseguir. São muitas as reflexões a serem feitas para que a cultura e a memória ajudem a melhorar a vida das pessoas. A única coisa que não deixa dúvida é a natureza perversa dessa realidade: roubaram o direito à felicidade de gerações de cariocas. É preciso saldar essa dívida.
*Militante do PCdoB e ex-secretário-adjunto do Comitê de Gestão do Pan Rio 2007 do Ministério dos Esportes. O artigo foi publicado no jornal O Globo (03/12/2010).