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Marco Albertim: A morte de Aredo Fidélis

– Está morto mesmo!?
– Como não? Estacou em vida e agora a coronária.

Três pessoas foram ao velório de Aredo Fidélis. Escolhidas para depositar sobre o caixão, a coroa e a faixa vermelha com seu nome. Decompusera-se, ele, precocemente, com a face rugosa e palidez temporã. Não houve choro, convém dizer. Deixou um legado de rabiscos escritos com raiva, e a acusação de embusteiro a um desafeto.

A viúva foi a única a sentar-se numa das cadeiras nos dois lados do caixão. O vestido preto reverberando a luz, não escondeu o contorno do corpo roliço. A última confissão do marido forçara-a ao luto fechado. Seguiu o defunto à sepultura, com uma das mãos no caixão, na frente dos dois camaradas de Aredo. A confissão fixara-se em seu juízo pelo resto da vida. Lupércio, que não o estimara, mas tolerara-o, depôs as orquídeas sobre o caixão.

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Os livros sobre a mesa lembraram a Aredo as gráficas clandestinas. Para não procurar o brilho nos olhos de homens e mulheres, não os olhou de frente. Os anos apagaram cada brilho. Ele se entreteve com os livros.

Aredo tateou o livro de normas, reavivou cenas que suspeitava não terem existido. Lupércio mirou-o. Há dez anos não tinham notícia um do outro. Barbas e bigodes, usados como disfarces, sumiram para dar lugar a feições maduras, de expiação da própria ventura. As palavras, fáceis, encobrindo uma elegância incomum, recém-descoberta. Vestiam-se como se estivessem livres, há pouco, da roupa pobre de quem vivera clandestino. Tudo designado pelo nome, sem ardis.

– Os jornais de domingo são inúteis, estimulam o ócio. Publicam a informação desnecessária, tratada com enfeites.
– Lupércio desfrutou o gozo da opinião insofrida.
– Eu fujo para os suplementos culturais – emendou Aredo.

Lupércio distinguiu na resposta o propósito de trazer literatura para a conversa. Conhecera Aredo, abominara-o por ter misturado tramas de ficção com segredos da conjura. Aredo é um xucro! – dissera. Agora, tinha por fim moldá-lo nos costumes de intelectual funcional. Lupércio virou o rosto, voltou a ler o jornal.

Aredo, sem confessar o propósito, arriscou-se:

– Num conto de Scliar, um escritor mete-se a escrever numa assembleia de estudantes. Leva uma surra porque desconfiam que seja da polícia…

Ninguém respondeu.

Toda a reunião ele limitou-se a ouvir. Depois de dez anos ausente, não se sentiu com prumo nos modos para falar numa sala cheia de gente. E referira-se a um escritor de ficção, sem obter ouvidos para o nome estranho, decerto.

À noite, teve um pesadelo. Extenuou-se com Lupércio censurando-o por ter assuntado literatura numa reunião de propósitos políticos. “Camarada Aredo Fidélis! A literatura não é mais o sorriso da sociedade. Estourou a revolução política!”

A esposa, que não o acordara, lembrou-o no café da manhã; lembrou-o depois de vê-lo tenso, mudo.

– Ontem você teve um delírio de autoridade proletária em crise. Mal assume a função e já se desentende com o chefe…
– Alguém me obrigava a fazer o que eu não queria. Eu queria gritar, mas me sentia uma criança impotente. Era como se eu tivesse a força do argumento e ninguém quisesse me ouvir.
– Está estressado de novo.

No estresse agudo, ela receitava leituras de autores gregos do passado.

O mesmo não ocorria no trabalho dele.

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Aquilina teria feito um bem a Aredo se aprontasse a bagagem e fosse para um retiro de duendes travessos. Tinha os olhos para o monte de pastas arrumadas com zelo judicial, e para a barra do vestido, à cata de fios soltos. A chefe do expediente, de agenda com borda cromada, sofria de incontinência com as palavras. Aredo era seu ouvinte involuntário. Se fosse dada, a ela, a chance de outro ofício, seria ventríloqua.

No fim da tarde, Joper abriu a reunião sob o retrato de Marx na moldura. Sem esforço, Aredo viu fogo nos olhos dele.

– Aredo é novo na função, mas não tão novo assim. Pôs em risco o compromisso do gráfico com a produção do jornal. Alemão não aceita palpites, não gosta de cumprir prazos. Mas é o melhor! Por isso tem que ser tratado com jeito. A não ser que seja dispensado, e nesse caso quem irá assumir o seu lugar?… – Joper quase proferiu uma sentença de culpa.
– Ele trocou o título que eu pus no texto da capa! Tirou a crase na vogal referente à denúncia. A função da crase é chamar a atenção! São 20 mil jornais circulando por aí. Meu nome consta como o responsável pela redação! – Aredo, desarvorado.

A crase, para ele, seria uma aliada contra o inimigo de classe; acomodada à letra, tornaria a denúncia sonora; fora removida como um graveto incômodo.

Lupércio ouvira sem dizer uma palavra. A desvantagem para Aredo era tão manifesta, que o peso de sua opinião desancaria-o de vez.

Aquilina nada dissera, não fora preciso. Sentiu-se com a alma indultada.

No final.

Abriu a porta do carro, ela, para dar passagem a Aredo. Lupércio, por mercê, pilheriou:

– Não liga, não, Aredo. São todos maníacos.

Não houve como não rir.

Conviria a Aredo ir de ônibus, para travar a luta de classes com os fantasmas de sua intimidade. Mas sentou-se ao lado de Aquilina. A meia-hora do trajeto, dramática, forçou-o a duvidar da dádiva de existir. Aquilina, só, era uma bezerra indefesa; com os outros, o juízo rugia.

– Boa-noite.
– Boa-noite.

Não deu mostras, ela, da vocação ventríloqua; arrancou do pulmão uma entonação incapaz de convencer o intento das palavras.

De madrugada, Aredo pensou que amanhecera. Chovia. Olhou para a janela, nenhuma luz nas frinchas. Pôs a mão no peito, a desordem não estava na natureza, mas no coração. Até o dia chegar, sua mulher, sem soltar uma de suas mãos, molhou-o na testa com um pano úmido.

A tropelia do coração teve fim quase ao meio-dia. Não desfez a impressão de que Marx sentenciara-o a não usar a insígnia de comunista. Aquilina fora testemunha, jurada.

No chuveiro, ele escorreu os restos do delírio.

– O que o faz pensar que não o querem de volta?– perguntou a esposa.
– Há uma trama muda. Não consigo recuperar o equilíbrio e ninguém vê que é por causa do tempo que passei afastado. Preciso da colaboração dos outros. Em vez disso, estão me proibindo a passagem. É como se eu fosse um peso. Sei que não sou um modelo, mas é cruel sentir-se vigiado pelos camaradas quando se tem a alma fiel às normas.

Dias depois.

Sentiu-se no meio de estranhos, porque fora convidado e não delegado eleito para a reunião. Encolheu-se, não evitou os olhos de Marx na parede. Fora trazido para pôr-se em dia com as decisões.

Joper sentou-se no centro da mesa, cumprimentando os olhos de Marx e espreitando Aredo. Intimado a falar, divisou a tomada do poder na solução de seu discurso cheio.

No intervalo, portou-se como se não tivesse largado o microfone. Não poupou recursos para dizer o quanto se comprazia de rever Aredo, inda que tivessem se visto há pouco. A intenção, Aredo percebeu, era desfazer a sentença que o confundira. Entediou Aredo.

Há muito, Joper descobrira num livreiro de sebo, exemplares raros de livros de Marx. Queria comprar a prazo, mas o comerciante, em vista da raridade, não abrira mão da transação à vista. Aredo emprestou o dinheiro. O reembolso foi evitado com esquivas. O devedor, na iminência de ser cobrado, fingia outra preocupação. O credor acanhou-se de cobrar.

Joper foi escolhido presidente do Conselho Diretor. Lupércio indicara-o com a convicção num olho e a cisma no outro. Joper, disse, sujeitara a sorte pessoal aos propósitos do jornal. Aredo não dera a mesma prova, era confuso. Manteve-o sob a cisma.

Aredo, um dos últimos a sair da sala, olhou para trás. O mago de barbas no retrato, com o semblante grave. Sem direito a voto, Aredo não pudera se contrapor à indicação de Joper. Fixou-se no retrato. O mago pareceu proibir imprecações contra a escolha.

No domingo, ele foi ao escritório adiantar o editorial da próxima edição. Escrever sem ouvir o cricrido de Aquilina. Poderia, ela, dar palpites no outro dia, mas o texto estaria pronto.

Quando cruzou a porta, deparou-se com Joper sobre o corpo mofino de Aquilina. O macho, com o rosto suado, grunhindo a custo dos pulmões ao fim de cada repuxo. A fêmea, sob o peso do tronco e quadris dele, em vão comprimidos nas suas mãos; ela urrava contra desafetos invisíveis. Impossível Aredo não reter o transe no juízo.

Levantaram-se num segundo. Ele, segurando calça e cueca em direção à porta de onde foram vistos; com a face em fogueira, tirou dos olhos de Aredo a nudez de Aquilina. Ela, correndo para o banheiro, mostrando as marcas do sofá na brancura da bunda.

Aredo recuou sentindo o efeito de um eletrochoque.

Joper não esperou. Na noite do mesmo dia telefonou para Aredo, convidando-o para o almoço do dia seguinte.

Explicou-se:

– Eu estava conversando com Aquilina. Ela me falava de suas carências. Depois que falei o que pensava, criou-se o clima entre nós. Não consegui evitar. A prova é que nem soubemos escolher o lugar. Depois de tudo foi que nos demos conta do quanto fomos apressados. – Inculpou o clima. Aquilina era uma cabrita inocente.
– Não me deve explicações só porque fui testemunha involuntária de sua trepada marginal com Aquilina. Preocupe-se com seu casamento, com seu trabalho. Cuide para que não percam a confiança em você.

O coito de Joper desmascarara o credo de fidelidade que, dizia, guiara seu casamento.

Pagou, ele, as duas refeições e fez o reembolso do empréstimo.

Sábado, início da tarde.

A greve dos portuários interrompeu a quietude do cais. O Marco Zero fora ocupado por estivadores; oradores se revezando ao lado da estátua de Artur Oscar.

Da calçada da Bolsa de Valores, Aredo fazia anotações.

A avenida Rio Branco, vazia. Um bêbado ou outro repercutindo a oratória dos grevistas.

Aredo cruzou a avenida em direção ao bulício. Com sede, voltou, foi ao Scotch-Bar. Sentou-se para tomar água mineral, viu-se frente a frente com Joper e Aquilina. Num canto onde só caberia um, os dois fazendo profecias e depondo versos fesceninos. Impressionou a Aredo a harmonia entre o nicho sombrio e o casal oculto.

Cumprimentos secos.

O rosto de Joper não escondeu a fúria subversiva contra a ordem que surpreendera sua esperta imaginação. Aquilina caberia numa ópera-bufa. O batom-carmesim não brilhava por causa da fina espessura dos beiços; o ruge escorria nas estrias suadas.

De volta ao ajuntamento, Aredo virou-se ao toque de mão no seu ombro.

– Algum destaque? – perguntou Joper.
– Não, só uma greve solitária.
– Se precisar de mim, estou ali. – O modo de dizer que não perdera a pose era se pôr à disposição.

Aredo sentiu um sopapo no lado esquerdo do peito e foi para casa. Confessou à mulher:

– Convivo com um oportunista e sou objeto de desconfiança!

Deitado, foi massageado nas costas.

No escritório.

Dias difíceis para Aquilina, tão acostumada com o coquetismo. Ao sanitário, abrigo de emergência de sua nudez, foi poucas vezes, quando Aredo se ausentava da sala. Sustara a vocação ventríloqua.

Distante dali, a mulher de Joper viu-se membro do triângulo porque cheirou a cueca dele; cheirou-a num ato de distração calculada. A distração, enrustida quando o marido fora indicado para o Conselho, desabriu-se.

Obtivera, ele, licença da mulher para sair e voltar a qualquer hora por causa das atribuições. Joper abusou. A mulher, filha de italianos ricos, herdara da mãe o costume de monitorar os passos do marido.

Não teve dúvida de que a mancha branco-viscosa na cueca era de contatos espermicidas. Cheirou a mancha, quase se embriagou.

Joper, sob o inquérito familiar, insistiu na tese de que fora logrado por espermas erradios. Ela aceitou para acolher um jorro de espermas frescos.

O pai de Luzia adoeceu. A mãe, em vez de mitigar o sofrimento do marido, exumava mulheres que teriam passado pela vida dele. Vendera, ele, parte dos bens; o dinheiro estava à disposição da filha, depositado em banco.

Joper queixou-se das atribuições, dado o pouco trabalho de seus auxiliares. Convocou reunião plenária, propôs redistribuição dos encargos.

Depois, alegou problemas pessoais, a prenhez de Luzia, e se ausentou por dias, semanas. Sumiu de vez. Antes, contrariou Aredo Fidélis pela última vez.

Seu nome fora omitido da relação, lida em sessão solene da Câmara de Vereadores, de homenagens a ex-exilados. Aredo disse-lhe que o nome sairia na próxima edição, com o reconhecimento da falha.

Joper acusou a redação de ter feito autocrítica parcial, visto que da primeira vez, os nomes saíram em jornais de grande circulação.

– Sou tão legítimo quanto vocês! Para chegar aqui, não precisei cursar a escola de organizações reformistas! Foi aqui mesmo que abri os olhos para a revolução, sem a ajuda de padres ou de reuniões em fundos de sacristias!
– Mas antes de ir para o exílio, escondeu-se numa cela beneditina e quando a polícia ameaçou invadir, subiu para o campanário! – completou Aredo. – Embusteiro!

Joper bateu a porta.

Aquilina pressentiu o fim do concubinato.

Ele sumiu da cidade. Administrando a soma herdada pela mulher, comprara uma fazenda de búfalos no agreste.

Na gráfica, Alemão dava mostras de desprezo por sinais ortográficos. Aredo fazia o cerco à oficina. Não foram aos sopapos graças à intervenção do auxiliar. "Não prreciso de sentinela nas minhas costas! Pode dizerr a Joper que não querro mais trrabalharr parra vocês!" – O velho não sabia da fuga de Joper.

Aredo pediu para ser substituído nos contatos com o gráfico.

– Não sei lidar com ele. É definitivo! Não adianta me pressionar porque eu também não tenho papas no dicionário.

Aquilina insistiu na permanência de Aredo, queria-o perto. Tinha medo que ele incluísse na própria defesa o romance com Joper.

A decisão por maioria foi pela permanência de Aredo. Ele calou sob o peso dos votos. A reunião terminou sem que dissesse que faria o trabalho a contragosto.

À noite, outro delírio.

– Há de passar. Meus delírios são como meus documentos, pessoais e intransferíveis – confessou à esposa, meio-conformado.

Não foi trabalhar por dois dias.

Aquilina telefonou para a casa dele.

– Está na urgência cardiológica – informou a mulher de Aredo.

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A cova fora coberta. De volta, o cortejo cruzou com Joper e Aquilina. A bem da memória do morto, não houve cumprimentos.

* Marco Albertim é jornalista, escritor pernambucano e colunista do Vermelho