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Alexandre Braga: Huckeberry Finn e a cultura cerceada

Os usos, os costumes e as posturas ao politicamente correto tomaram gosto entre a população. Esses verbetes são a tradução mais completa da ética à brasileira, em que práticas consideradas ofensivas aos direitos humanos estão saindo de moda. Isso reflete, na verdade, uma conscientização cada vez maior dos preceitos aprovados na Constituição de 1988 e que só agora começam a pegar de fato.

Por Alexandre Braga*

Na Carta Magna do Brasil, já nos parágrafos iniciais, são fundamentos do nosso Estado a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de cor, sexo ou raça. Dentre esses crimes que a Constituição visa combater, o racismo é a chaga mais antiga a atrasar nosso avanço civilizacional.

Por isso, em 2003, o governo aprovou a Lei 10.639 — “Ensino da História Afro-brasileira” —, cujo objetivo é fazer a inclusão dessa temática no calendário das escolas públicas e privadas. Nesse bojo, a contribuição negra e africana protagoniza, positivamente, a inédita valorização na sociedade.

Antagonicamente, a valorização negativa da etnia negra está perdendo espaço na própria sociedade e nos meios culturais e comunicacionais e sendo substituída por informações históricas que resgatam a verdadeira forma como os negros ajudaram na edificação da nossa nação, seja na dança, na culinária, na ação política, entre outros setores.

É sob esse conjunto de mudanças de paradigmas que dados históricos, fatos, personagens e conteúdos serão revistos de maneira que não tragam conteúdo de cunho racista ou que venham a desvalorizar a dignidade humana com ofensas de orientação étnico-racial, sexista ou homofóbica.

Os casos de Twain e Lobato

Nesse contexto, a recente polêmica do anúncio de lançamento do livro do escritor Mark Twain, que será lançado pela NewSouth Books com uma versão alinhada à nova postura recomendada por leis como a Lei 10.639, só tropeçou num único ato falho. A exemplo de Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato — que também traz palavras pejorativas aos negros —, em ambos os livros seus editores esqueceram-se de inserir notas explicativas aludindo aos contextos e às épocas em que foram produzidos, conforme orientação feita pelo Conselho Nacional de Educação em parecer, Nº 15 de 2010, a respeito da obra de Lobato.

No caso de As Aventuras de Huckeberry Finn, seu editor Alan Gribben foi muito além disso: alterou uma obra clássica e adulterou, sem constrangimentos, mais de 200 passagens do livro de Twain trocando os termos nigger (crioulo) por slave (escravo), não só desfigurando o texto original de Mark Twain como fez uma condenável manipulação que, em vez de ajudar nessa onda conscientizante de mais de 126 anos nos Estados Unidos, contraria todos os atuais posicionamentos daqueles que lutam pelas preservação dos direitos, ferindo, inclusive, o direito básico, que é o direito à liberdade de expressão artística.

Essa sanitarização, praticada por produtores e editores, a exemplo do que aconteceu no livro As Aventuras de Huckleberry Finn, vai de encontro até mesmo ao politicamente correto, na medida em que não queremos a volta da censura ou a mutilação de uma obra de arte.

Os desafios deste século

Não aceitaremos, de forma camuflada, o patrulhamento ideológico, pois os movimentos que lutam pelos direitos humanos, dentre eles o movimento negro, exigem que independentemente do conteúdo, os livros, as peças, as produções e demais produtos culturais históricos e contemporâneos sejam relançados na perspectiva cidadã, ou seja, que tragam notas remissas ou explicativas quando seus conteúdos tiveram vícios de origem ou que foram produzidos em épocas em que não havia o grau da mentalidade social e compreensão do politicamente correto, portanto, que trouxeram consigo carga preconceituosa.

Por causa disso mesmo os autores usaram e abusaram do pejorativo contra os outros. Por isso, precisam ser contextualizadas para as novas gerações, sem censura ou mutilação das obras e seus autores.

Essa contextualização se dá com o emprego de notas explicativas e de informes prévios nas contracapas das obras, sem alterar seus conteúdos ou mesmo condenar injustamente, seus produtores e divulgadores, mas produzidas e consumidas a partir de uma nova ótica segundo a qual o país optou por valorizar e ressignificar seus grupos sociais, sua larga escala de ascensão cultural e que tem como meta a cultura como engrenagem para influenciar o desabrochar da solidariedade, da emancipação humana e respeito à dignidade alheia num país ainda marcado pelas exclusões de toda sorte, porém em franca orientação para ser uma nação preparada para os desafios típicos do século 21.

*Alexandre Braga, escritor e compositor, é dirigente da Unegro (União de Negros Pela Igualdade) e do Fomene (Fórum Mineiro de Entidades Negras)