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João Ubaldo Ribeiro: Viva o Povo Brasileiro

Em 23 de janeiro, João Ubaldo Ribeiro completou 70 anos. A data foi festejada em Itaparica, a ilha da Baía de Todos os Santos, onde nasceu, e em Salvador. O escritor é presença marcante no panorama literário brasileiro contemporâneo. Membro da Academia Brasileira de Letras, detentor de muitos prêmios no Brasil e no exterior, traduzido em várias línguas, seus romances estão entre as melhores obras literárias de nosso país.

Sargento Getúlio, O Sorriso do Lagarto e Viva o Povo Brasileiro estão entre as melhores obras do moderno romance brasileiro. Ao nos associarmos às homenagens ao grande escritor, não trazemos ao debate as posições políticas que defende nas colunas dos jornais de circulação nacional. Em dezembro de 1988, entrevistei João Ubaldo num banco da Praça da Quitanda em Itaparica. Mais do que uma entrevista, olhando o mar da imensa Baía, foi uma longa conversa amena e divertida, entre copos de uísque, ocasião em que trocamos impressões e fizemos reflexões muito além da pauta. Quando lhe perguntei sobre a censura, que acabara de ser extinta com o fim da ditadura e a promulgação da nova Constituição, João Ubaldo disse: “Eu acho que a censura nunca teve a menor influência sobre a criação literária. Teve na divulgação, na fortuna literária, crítica, pessoal de autores, oprimiu muita gente, matou muita gente, acabou com muita coisa. Mas Glauber [Rocha, cineasta] dizia uma frase que é verdadeira, que você pode aplicar a qualquer canalha que seja um artista de talento, que ‘o artista é incorruptível’. O sujeito pode ser o pior bandido, tomar dinheiro emprestado dos amigos dizendo que é para dar comida à mulher e jogar o dinheiro fora no pôquer, pode ser um patife absoluto. Mas se ele é um artista de valor, na hora que ele senta para fazer o negócio dele, não adianta que ele é incorruptível. Existe uma coisa nele, sei lá o que é, eu não quero ser metafísico, mas também não quero ser psicanalista. Mas existem coisas que, não adianta, o sujeito não faz quando ele tem valor artístico. Ele é incorruptível na hora que está fazendo o trabalho dele. Veja o caso de Bach, que vivia pedindo cargos aos Brandenburgos. No entanto a arte de Bach é incorruptível. Balzac foi outro exemplo típico. Metido a aristocrata e não sei o que mais e fez aquele negócio. Ele talvez até tivesse querido corromper a arte dele, quer dizer, agradar, mas não adiantou porque ele não fez isso.” (A Classe Operária, jornal do PCdoB, ano 64, 6ª fase, nº 10, de 12 a 25 de janeiro de 1989). João Ubaldo não é nenhum canalha, nem bandido, nem quis corromper sua arte. Apenas tem opiniões políticas diferentes das nossas. Mas – e isto é uma outra história – é, na modesta opinião deste editor, um grande artista. (José Reinaldo Carvalho)

Os textos a seguir foram selecionados da sua obra-prima Viva o Povo Brasileiro.

“O Alferes Brandão perora às gaivotas”

Contudo, nunca foi bem estabelecida a primeira encarnação do Alferes José Francisco Brandão Galvão, agora em pé na brisa da Ponta das Baleias, pouco antes de receber contra o peito e a cabeça as bolinhas de pedra ou ferro disparadas pelas bombardetas portuguesas, que daqui a pouco chegarão com o mar. Vai morrer na flor da mocidade, sem mesmo ainda conhecer mulher e sem ter feito qualquer coisa de memorável. É certamente com a imaginação vazia que aqui desfruta desta viração anterior à morte, pois não viveu o bastante para realmente imaginar, como até hoje fazem os muito idosos em sua terra, todos demasiado velhos para querer experimentar o que lá seja, e então deliram de cócoras com seus cachimbos de três palmos, rodeados pelo fascínio dos mais novos e mentindo estupendamente. E talvez falte apenas um minuto, talvez menos, para que os portugueses apareçam à frente deste sol forte de inverno na Baía de Todos os Santos e façam enxamear sobre ele aquelas esferazinhas de ferro e pedra que o matarão com grande dor, furando-lhe um olho, estilhaçando-lhe os ossos da cabeça e obrigando-o a curvar-se abraçado a si mesmo, sem nem poder pensar em sua morte. No quadro “O Alferes Brandão Galvão Perora às Gaivotas”, vê-se que é o 10 de junho de 1822, numa folhinha que singra os ares, portada de um lado pelo bico de uma gaivota e do outro pelo aguço de uma lança envolvida nas cores e insígnias da liberdade. Já mortalmente atingido, erguendo-se com um olho a escorrer pela barba abaixo, ele arengou às gaivotas que, antes distraídas, adejavam sobre os brigues e baleeiras do comandante português Trinta Diabos. Disse-lhes não uma mas muitas frases célebres, na voz trêmula porém estentórea desde então sempre imitada nas salas de aula ou, faltando estas, nas visitas em que é necessário ouvir discursos. Pois, se depois da metralha portuguesa não havia ali mais que as aves marinhas, o oceano e a indiferença dos acontecimentos naturais, havia o suficiente para que se gravassem para todo o sempre na consciência dos homens as palavras que ele agora pronuncia, embora daqui não se ouçam, nem de mais perto, nem se vejam seus lábios movendo-se, nem se enxergue em seu rosto mais que a expressão perplexa de quem morre sem saber. Mas são palavras nobres contra a tirania e a opressão sopradas pela morte nos ouvidos do alferes, e são portanto verdadeiras”.
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“Que faz um homem ser belo”?

-Budião nunca me largou disse Merinha. – Aliás, Budião não.

O nome certo dele é…

-O nome dele não é Budião? Ele tem nome africano?

-Não, não, que besteira, deixa isso pra lá. É de batismo Faustino da Costa, é Budião por causa daquela bocona espichada para a frente que nem um budião, a cor acastanhada…

-Como é que tu sabe que ele não te largou? Mas se faz bem uns dez anos, criatura, mas se ninguém sabe que paradeiro ele levou!'

-Eu sei que ele não me largou.

-Tu sabe? Mas se tu mesmo me disse que ninguém sabe se ele fugiu, se ele morreu, se ele fez quilombo, se, ele voltou para a terra dele, ninguém 'sabe! Tu sabe, Merinha? Tu tá com olho de quem sabe, tu sabe?

-Sei não, como é que eu ia saber?

-Então como é que tu sabe que ele não te largou?

Ah, eu sei, eu sei, a mulher sabe dessas coisas, é uma coisa que vem do peito, uma sensação que dá de noite, um negócio que vem de manhã cedo, um apertume que ataca no meio do dia, uma vasca que chega na hora de dormir. Eu sei! Eu sei que ele nem está morto nem me largou!

-Como é que tu sabe?

-Tem jeitos, tem jeitos! Essas coisas têm jeitos de saber.

Ai dela, que já falava demais naquelas coisas que deviam ser mantidas em segredo, que já nem tinha certeza do que era verdade ou mentira, que recebia recado sem feição de recado, conselhos disfarçados em receitas, saudações inexplicáveis, ajudas vindas do nada. noticias tão vagas que não se entendiam. Seria verdade o que teimava em repetir Zé Pinto, tão velho que nem andava direito, vivendo de plantar coentro e mastruço nas metades apodrecidas das velhas barricas de azeite que também usara para telhar sua casinhola, tido como demente da lua por sair à noite sem propósito, todos já dormindo e ninguém sensato saindo ao relento? Ele sempre respondia, quando perguntado: da.-da-da, minha menina, aquele seu negro jalofo está mais que são e mais que salvo, aquela bisca quebra o quê!

Se ela insistisse em perguntar, porém.-da-da-da-da-da, minha menina, quem muito quer saber em boa há—se de meter. E ia embora em seu passinho de pato velho, olhando para cima como se estivesse conversandocom os mosquitos.

Sentiu-se sozinha, muito sozinha, mais sozinha do que todos estes anos, estes meses, estas semanas, estes dias arrastados, estas hor8cs de caracol, estes minutos alongados como fios de calda puxa, este piscar e repiscar de olhos como noites compridas intercaladas por dias sem fim estes gestos que nunca se concluíam porque ele não estava lá.

Mulher guerreira pelo sangue, não sabia disto até que seu tio Júlio Dandão, também sumido desde o mesmo dia que Budião, fizesse com que lembrasse. Contudo, não era apenas uma lembrança do juízo, era uma lembrança da memória do corpo todo, a memória do nariz, a memória dos ouvidos, a memória das palmas das mãos, a memória dos poros, das partes entre as pernas, da boca incendiada pelo fogo das pimentas, de alguma coisa que a despertava enquanto outras a adormeciam. Uma memória, ai dela, partilhada por tantas mulheres como ela, mulheres de qualquer nação, mulheres fraturadas pelo tanto que se puxava delas, pelas vidas de seus homens, como o dela tão fracos na fortaleza, tão necessitados junto a elas, mas tendo que ir, desaparecer em suas empresas e expedições de vida, podendo nunca mais voltar, podendo até esquecer delas, podendo vir a acha-las feias e antigas, e elas, mesmo chorando, se lamentando e morrendo de paixão. não queriam que seus homens fossem de outro jeito, pois de outro jeito não os amariam.

Nove anos se passaram, talvez dez, certamente mil e mais cem, e Merinha sabia que seu semblante de Penélope não era só dela, era parte do mundo e da vida das mulheres, da vida das pretas cativas, sempre exiladas não importava onde estivessem, por que tinha de ser assim? Ensinaram-lhe as mais velhas, como a elas se ensinara e se ensinara às ensinadoras: boniteza não põe mesa, beleza no homem para a mulher é fome, bonito é santo no andor, na barriga quero calor. Mas não era verdade, era? Não era, pois o homem belo prende a vista da mulher, atiça a fantasia, convoca o mau comportamento. O homem belo?

Ah, o homem belo! O homem belo como um brinquedo novo, o homem belo que desperta orgulho na mulher que o conquistou, a qual o sabe cobiçado pelas outras mas dela, aquele sorriso é dela, aquela intimidade é dela, aqueles modos de galo de rica pluma são dela, aquele lindo homem dela é.

Sim, verdade.Mas que faz o homem ser belo? Isto não se sabe, pois não o explicavam as mais velhas. Mais velha número um, que vem de povo plantado r de pomares e hortas, acha belo aquele cujos braços desde o avô que se vêm alongando para colher o fruto e rapar a terra, mostrando a excelência na sua produção e acato de seus pares.

Mais velha número dois, que vem de povo pescador, acha belo aquele que mais se realça num barco, que tem corpo e gestos de navegador, que reconhece a presença do peixe a um relance, que traz o peixe e é respeitado pelo zelo na sua profissão e assim fica belo como todos os que com ele se parecem também ficam.

Mais velha número três, que vem de povo guerreiro, acha belo o porte do bom combatente, admira o que morre mas não perde, se apaixona pelo grande vencedor. Então Merinha não sabe, mas sente que talvez a mulher ache bonito o homem que lhe dê melhores fihos, pois assim, se ela não pode ser como ele, poderão sê-Io os filhos -e os filhos, afinal, são ela. E desta maneira ela se prolonga, preferindo ser a quinta mulher de um homem como ela quer que sejam seus filhos. a ser a primeira de um cuja semente não lhe falaria à memória que traz pelo corpo todo e que a Natureza não permite esquecer. Um de quem não quereria parir. Assim é que as mulheres fiéis haverão sempre de existir, fiéis até à loucura, à insensatez, à falta de juízo, isto porque são leais a seus ventres depositárias valorosas de sua herança, e vai daí que se admira a mulher que espera seu homem, havendo histórias disto em todos os repertórios. e toda mulher, por mais que negue, tem inveja se não consegue ser assim. pois, mesmo que não compreenda por quê. sabe que é superior ser assim.

Budião lhe aparecera à noite de repente, como sempre fazia. Embora estivessem ambos já no Manguinho.ele no engenho. ela na mesma casa, e ele pudesse portanto mandar avisa-la.

Mas preferia sempre chegar de noite e currichiar como um pássaro noturno junto ao portãozinho dos fundos, até que ela viesse atende-lo. Dessa vez parecia impaciente porque, como ela: demorara um pouco por estar dormindo e vestida somente de timão. desatou a piar tão alto que dai a pouco acordaria também os donos da casa, cujos quartos eram bastante afastados do quintal. mas aqueles sons vão muito longe à noite. Saiu sobressaltada enrolando-se num pano e abrindo o portão com os olhos arregalados. Cada dia mais Budião parecia enredado em segredos. passando muito tempo com os olhos em algum ponto vago à frente sem falar quase nada, sumindo à noite depois de passar com ela não mais que um momentozinho. Muito do que acontecia ele lhe contava, embora de maneira reticente e imprecisa. Havia mesmo uma irmandade secreta, havia muitas irmandades secretas? Por que Júlio Dandão aparecia tanto por ali em seu saveiro e Budião conseguia escapulir para navegar o dia inteiro em sua companhia e de mais outros sem trazer peixe ou mercadoria.
voltando às vezes excitado. às vezes macambúzio? Por que também tinha tantas facilidades nesse engenho? Se o senhor dele era considerado um homem bom, que não prendia os escravos e os tratava quase como gente, que às vezes revelava ter ideias que a muitos já havia rendido forca ou degredo, será que só isto explicaria a grande liberdade de que Budião parecia desfrutar, coisa impossível de acontecer entre cativos? Budião a esperava andando para cima e para baixo quase aos pulos. abraçou-a assim que a viu, pôs-lhe a mão na boca quando ela quis falar. Mas demorou tanto no abraço, pareceu até tremer enquanto a apertava, os braços vibrando como num arrepio de febre. que ela fez força para se soltar. queria olhar para a cara dele, ver o que estava acontecendo.

– Que foi? – disse, segurando-lhe o rosto com as duas mãos. –Que foi, o que foi que teve, me conte, alguma coisa teve!

-Teve – respondeu ele, depois longo silêncio. – Teve. Hoje eu parto, vim me despedir.

-Despedir? Parte pra onde?

Partir? Mas como. de repente. Sem mais essa nem aquela? Tu vai fugir?

Tu vai fugir, Budião?

– Mais ou menos. É uma missão

O capitão Teófilo sabe que eu estou saindo hoje à noite, vou no barco de Dandão pegar mais uns dois pela costa, que já estão esperando, de lá volto para cá, saímos numa canoa grande pela madrugada com oito remeiros, contando comigo.

– O capitão Teófilo sabe? Ah.

Budião, eu não posso acreditar, onde já se viu senhor de escravos saber que um negro seu vai fugir e não fazer nada?

– Ele não sabe que eu vou fugir.

Ele só sabe a primeira parte da Missão, que ele combinou com seu tio e com outros, muitos outros, é coisa complicada, muito complicada, muito dificil.

-Não estou entendendo nada. Não estou entendendo nada!.

Olhe, só tu é que pode saber isso, não porque tu é minha mulher, mas porque é a mulher que é e tem muito serviço prestado.Escuta bem, que não vou repetir, não tenho tempo, parto na preamar, teu tio já está me esperando. Existe um homem que está preso no Forte do Mar, um homem importante, que é comandante de uma força de sedição muito longe daqui, muit,. muito longe, no Rio Grande, que ninguém aqui nunca que pode imaginar onde é, mas fica no Brasil. Então, desde que esse homem chegou que se vem fazendo um arranjo para ele escapar do forte e voltar para a terra dele.

Isso Dandão não ignorava, como não ignora nada dessas coisas, e de há muito que vem conversando com o capitão Teófilo. Ninguém sabe, porque essas conversas são escondidas, às vezes até dentro de um barco no mar.