Os galos bons de briga de Gilvan Lemos
A enchente de 1975, em Recife, a maior do século 20, inspirou uma notável metáfora da luta contra a ditadura, o conto Os que se foram lutando, do escritor pernambucano Gilvan Lemos.
Por José Carlos Ruy
Publicado 25/02/2011 15:28
A enchente de Recife em 1975 foi considerada a pior do século passado. Nos dias 17 e 18 de julho, 80% da capital pernambucana ficaram debaixo das águas, além de umas 35 cidades no interior do Estado. Ela deixou mais de cem mortos e 350 mil desabrigados.
A enchente serviu também de tema e cenário para um dos mais fascinantes contos do escritor pernambucano Gilvan Lemos (nascido em São Bento do Una, em 1º de julho de 1928): Os que se foram lutando, que abre o livro de contos do mesmo título e que, significativamente, é dedicado “aos que lutam”.
Publicado em 1976, foi visto como uma metáfora à luta contra a ditadura militar e à irredutibilidade daqueles que, enfrentando a repressão, a tortura, o assassinato político, teimavam em enfrentar o arbítrio e a violência com a mesma determinação com que os galos de briga de Zacarias, o protagonista do conto, enfrentaram a violência das águas que cobriram Recife.
Gilvan estreou na literatura com o romance Noturno sem música (escrito em 1951 mas publicado em 1956); é autor de 17 livros, entre os quais se destacam os romances Emissários do diabo (1968), Os olhos da treva (1975), O anjo do quarto dia (1976), Espaço terrestre (1993) e os livros de contos O defunto aventureiro (1974), A noite dos abraçados (1975).
O conto Os que se foram lutando foi traduzido na Alemanha, na antologia de autores brasileiros Erkundungem – 38 Brasilianische Erzahrer. O Vermelho o reproduz abaixo:
Zacarias estava só querendo esquecer. Mas aquilo não podia ser verdade. Dizendo, ninguém acreditava. Olha, Tota… Mas você sabe, você viu. Casas? As que permaneceram de pé mostravam apenas o telhado. Lugar onde a gente jurava que nunca havia de chegar água… Uns tomates! Tudo encoberto. Tudo. Tinha canto que parecia uma cachoeira. Um rio, Tota, o Amazonas. A força duma pororoca arrastando cavalo, boi, porco, jumento. Até gente, arrastando. Vi um defunto amarelo, inchado, passar na correnteza. Eu dizia é mentira meu Deus, não estou vendo, não. E o resto do mundo? Será que o mundo todo está se acabando? Como a gente se sente abandonado, Tota, numa situação daquela. Porque… Mas você sabe, você viu.
Depois, a lama preta, catingosa, que em tudo entranhava e sair mais, quem disse? Não adiantava lavar, raspar, ferver, desinfetar, arear, lixar. Nada adiantava para tirar a lama do lugar onde ela havia aderido. Virava o objeto em que estava pregada. Se ferro, virava ferro; madeira, virava madeira; vidro, vidro; borracha, borracha. Até carne. Virava carne, impregnada nos corpos das pessoas. Virava desengano, colada na alma da gente. Para sempre colada. Em toda parte a sua marca: um risco horizontal, infinito, nas paredes das casas, nos troncos das árvores, nos postes, nos muros. E o povo na rua, enlameado, brigando com a lama, arrotando lama, remelando lama. Lama para o lixo, lama para os desgraçados. Estes, sim, remexiam na lama, procuravam na lama mais lama para aproveitar. Um cristão chegava na calçada, olhava os muros caídos, as árvores com as raízes expostas, os carros virados, as casas descascadas, e ficava a dizer besteira: Mas foi uma guerra! Outros se gabavam: No quintal lá de casa apareceu até um porco. Porco? Porco-porco, porco-bicho. De quem era? Quem sabia? Quem queria saber? Era porco de cheia, não tinha dono. Panelas de alumínio, televisores, rádios, radiolas, guarda-roupas, cadeiras, sofás, camas, pianos, refrigeradores, tudo boiando, à deriva, e tinha dono? Fiz meu pé-de-meia. Homem, quer saber? Até gosto quando dá uma enchente. Liberação de Fundo de Garantia, empréstimos nas repartições e coisa e tal. Só assim pego em dinheiro. Passo o resto da vida encalacrado, devendo os cabelos da cabeça? E daí? Quando foi que não estive encalacrado? Sei lá se vou morrer amanhã… Lá em casa a água deu pra mais de dois metros. Só isso? Pois lá em casa não deu em nada, cobriu foi tudo.
– Epa! Quem falar em cheia aqui leva uma garrafada;
Assim que pôde consertar a geladeira, arrumar umas bancas, improvisar uns assentos, varrer do chão o grosso da sujeira, o Português reabriu o bar. E Zacarias lá se socou, descalço, sujo, barbado, em frangalho mesmo, esbagaçando o dinheirinho do adiantamento. Ah, queria mais o quê, desta vida de lamerda? E ainda vinham pra perto dele, com aquelas histórias repisadas, reprisadas, rebatidas, repicadas! Já disse, o primeiro morre com um garrafada no quengo.
– Calma, Zaca, deixa o povo dar expansão ao gênio.
Ao lado, Tota. Voltara ao trabalho, fazia tudo para que Zacarias o acompanhasse, a fábrica já estava funcionando, Zacarias ia perder o emprego. Tota largava o serviço, vinha ver se Zacarias já tinha morrido, ali, abraçado com as garrafas. Zacarias, nada. Nem a família ia ver. A família abrigada no grupo escolar, a mulher com a doença do rato. Não sabe? Diz que o rato mija na água da enchente, aquela água pega nas pessoas e o micróbio, ó, a água suja, fervilhando daquele micróbio, ó, assim, ó, sobe tudinho pro corpo da gente. A mulher do Zacarias tá no abrigo, com a febre do rato, os dois filhos, o Maior e o Menor pelos lixeiros catando o que se podia aproveitar, se expondo também, eles, os dois, aos micróbios da urina do rato, e Zacarias no bar, gastando o dinheiro do adiantamento, sujeito a ser demitido da fábrica.
– Estás catingando, homem. Vai ao menos tomar um banho.
Banho! Zacarias estava com ódio da água. Não lhe falassem de água. A pior coisa do mundo é a água. Se não existisse água no mundo, era outra coisa. Me diga um benefício feito pela água. Um só. É a água que acaba com a vida da gente. Digo e provo.
– O Maior ainda está por aí?
Zacarias já não enxergava direito. Quando começava a penitência, logo cedo, porque aquilo já era uma penitência, ora, já se viu, um homem feito, com todo tino, sentar-se diante da garrafa, das garrafas, e ficar ali, travado, só bebendo, bebendo, era ou não uma penitência? Pois quando começava aquela penitência, Zacarias via o tempo todo o Maior rondando, de porta em porta, olhando. De vez em quando se largava, vinha, sorrateiro, apanhar do prato de Zacarias um pedaço de tira-gosto. Zacarias deixava, fazia que não estava vendo. Pai, mãe tá doente. O senhor não vai ver ela não? Pai, o Menor desde bem cedo desapareceu. A gente foi encontrar ele no juizado, com um talho no pé. Pai, a comida que eles dão no grupo escolar não chega pra todo mundo, é muita gente, nós tamo morrendo de fome. Pai, a água já baixou. O senhor não vai mais a gente ajeitar a casa? Não sobrou nada. Mãe disse pro senhor guardar um dinheiro pra comprar o que for preciso. Depois não dizia mais nada, ele, o Maior, ficava só peruando, naquela de surrupiar uma nesga de carne, uma casca de pão, um farelo de queijo. Ora, estava trocando tudo. Queria dizer uma casca de queijo, um farelo de pão….
– Hem, Tota, o Maior ainda está por aí?
– Não tem mais ninguém. Daqui a pouco o Português fecha o bar. Onde diabo você está dormindo?
Tota, imbecil completo. Ignorava os dramas da vida, não queria compreender os dramas da vida. Esta vida é um drama. Zacarias esmurrava amigavelmente o amigo. Ao amigo, só podia ser amigavelmente. Ache graça, Tota. Esta vida é um drama acomediado. Mas a água, a água… Não lhe falassem da água.
– Me diga, Tota, um único benefício feito pela água. Um só. Vamos, diga. Putota.
A água usava de todo artifício para enganar os trouxas. Fazia-se de bela, neutra, útil, calma… Transparente, mostrava o fundo do lago, do rio, do tanque, do que fosse… Olha lá, olha lá os peixinhos nadando, as plantinhas verdes… Lindo, lindo! Azulada, com cisnes deslizando… Nunca vi um cisne de verdade, só no cinema. Existe? E a água como um espelho, refletindo o céu, a mata, as glórias do Brasil. Era ou não bonito? Bonito! Que se fiassem nela. A água é tão danada de traiçoeira que se faz indispensável ao homem, aos animais, aos vegetais… Com que fim, hem? Com que fim? Sem falar das porcarias que nela transitam e que por intermédio dela nos lascam, sujidades, aliás, que foram criadas por ela, apenas para nos botar pra escanteio, – a água existe somente para escravizar o homem. E o homem, bestão, boboca, bobão, ainda a chama de precioso líquido, pensando que a domina, inventando reservatórios, barragens, etc., mas ela é quem traz o homem sob o cambão. Tá pro precioso líquido! Não há quem domine a água. É sob a maior vigilância que os babaquaras procuram mantê-la presa. E cadê os que conseguem? Os rios transbordam, os açudes arrombam, os canos estouram, os telhados se furam… O diabo, a peste! A água é inimiga do homem. Enquanto o homem não prescindir da água não pode bater nos peitos e dizer que é livre.
– É ou não é?
Tota, cabeça baixa, paciente, ia recomeçar a ladainha. Zacarias, olhos vermelhos, a fala embolando. Tudo de novo. E o arroto vinha, mas não saia, Zacarias de gogó inchado, a veia do pescoço saltando, da grossura de um dedo. Estoura logo essa veia, infeliz das costas ocas. Foi, o Maior chegou na fábrica botando os bofes pela boca. O rádio estava dando, ia haver cheia. Mãe mandou dizer que o senhor fosse pra ajudar a levantar os troços. Levanta, sacode a lama, dá volta por cima. Era só alarme, não ia haver cheia nenhuma. Um burburinho na fábrica. Se foi? Como a rapaziada apreciava uma confusão! Quem morar em zona de cheia pode ir pra casa. Zacarias tranquilo, com a mão na cabeça do Maior. Passara primeiro na barraca, tomara uma. Guerra é guerra. Em sua rua nem fiapo de água. Não disse? A turma quase toda na casa de preto Leão, já assanhada, na maior folgança, porque a turma já gosta mesmo duma cheia. Enchente é mesmo que carnaval. É numa enchente que se bota a alma pra fora. A gente não tem mesmo o que perder… Levanta, sacode, ôi! sacode, mas as cadeiras, morena. Diz a tua mãe que já chego. Aquele feriado não estava no programa. Preto Leão empunhando a garrafa da branquinha, a rolha nos dentes: Cadê o dilúvio? Pode vim, seu, com Noé e toda a sua canalha. Nós somos é nordestinos, temos fibra. Falou. E Zacarias: Levanta, se enxuga da lama e nada por cima.
Mas chegou, foi chegando. A água. A traiçoeira. A danosa. Mãe mandou dizer que já tem água na rua da gente. Zacarias foi em casa, dizendo a preto Leão volto já-já. Até então nem se lembrava:
– Dos galos, Tota. Dos galos.
Tota baixou mais a cabeça. Agora, sim, os miseráveis dos galos. Despropósito daquele homem, estava cansado de dizer, não é esporte pra você, Zaca. O que não tem comem esses galos! Vinte e cinco galos de briga, ia esquecer que eram vinte e cinco? Ração balanceada, vitaminas, carne. Até carne! Zacarias podia sustentar um esporte daquele? Mas ganhava nas apostas, dizia. Seus galos eram de primeira. Vinte e cinco gaiolas, bem feitas, de madeira, alinhadas no quintal. Três andares formavam seus galinheiros. Sem falar nas galinhas de pinto, não se sabia quantas. Cruza de japonês com inglês, inglês com indiano, calcutá com não sei o quê. Quanta besteira. Os galos eram mais bem tratados do que a família de Zacarias, comiam vitaminas de toda espécie e os filhos, os de Zacarias, claro, na pior merda do mundo. Os filhos e a mulher. Agora ele vai dizer que na arrumação dos móveis, levanta daqui, amarra dali – camas, cadeiras, fogão, colchões, tudo sendo trepado pra não ser atingido pela água – e cuidando que a propalada cheia ainda ia demorar.
– Viu, Tota, na arrumação dos móveis, tinha de levantar a quinquilharia, eu sozinho, e cuidando que a cheia ainda ia demorar, pois quando cheguei em casa o quintal estava completamente enxuto… Impressionante a rapidez da traiçoeira. Como ela invade a área, organiza o ataque, penetra, derruba a cidadela adversária. Só falta mesmo gritar gol!
Terminada a operação levantamento de móveis, saíra para cuidar dos galos. As gaiolas ficavam nos fundos, numa baixa. Olhe Zacarias, este Zaca, comido por dentro, sem pernas, sem braços, só olhos grandes vendo e queixo desgovernado: Não pode ser! Não pode ser! O térreo e o primeiro andar já estavam completamente inundados, neste ainda se viam bolhas como de água fervendo, ouviam-se gorgolejos: os galos morrendo afogados. Restavam as gaiolas de cima. E a água indo nelas.
Zacarias gritou pela mulher, pelos filhos, pediu ajuda. O Menor nem podia mais ir ao terreiro, pois seria encoberto. Zacarias, às tontas, foi tirando galo. Onde os colocava, afinal! Se ficassem juntos logo se agarrariam. Naquele aperreio, os excomungados o que queriam era brigar. Cantavam, cacarejavam, insultando-se. Toma, mulher, segura aqui. O Menor ficou com um, o Maior com outro. Cuidado, estão se beliscando. na segunda investida em direção aos galinheiros, Zacarias já foi nadando. Para encurtar a novela, conseguira salvar mais três.
– Vinte galos perdidos duma vez, Tota, como-amigo. Vinte galos, sem falar nas galinhas de pinto. As galinhas soltas, que viviam pelo terreiro, nem procurei salvar. Eu só via o peneiro boiando, galinha, pinto, aquela curriola, rodando, descendo na enxurrada. Em nem tinha tempo de pensar nessa miséria, porque a traiçoeira estava invadindo a nossa casa. Os meninos gritando, a mulher chorando, aquela danação, ouviste, Tota? E cada um da gente segurando um galo. Eu, dois. Quando me descuidava um instantinho, os bichos estavam emendados, se beliscando, se rasgando. Vamos soltar estes galos, Zaca, dizia a mulher. Quem se atrever, eu avisava, jogo esse um dentro da cheia. Mas eu nem sabia o que estava dizendo. Ficamos encurralados. Sair, como, se lá fora era um verdadeiro Amazonas? O jeito que teve foi subir no telhado, meti a cabeça nas ripas e caibros, botei o velho chifre pra funcionar, subimos pelo buraco, cada um da gente com um galo, eu com dois, sem falar nos da cabeça, os de verdade esperneando, soltando gritos de provocação, porque galo de briga não pode ver um ao outro, fica logo espevitado, naquela de se eu te pegar te lasco, se te pegar te lasco. Mas é isso mesmo, não tem aperreio, não tem confusão, o que eles querem mesmo é brigar.
Soltar no telhado não podia, se agarravam. Nos braços da gente, estremeciam de ódio, cantando o seu canto de guerra. Inchados de ira, entronchavam o pescoço e tome desafio. Os pestes nem ligavam pra cheia, queriam era se acabar nos carinhos de bico.
No duro, no duro, galo é como gente, igualzinho à classe humana. Um galo não se junta com outro se não for para tirar uma lasquinha. Ora, e gente não é assim não? Um menino quando nasce, o que é que faz? Chora. Pois é, não tem ainda capacidade de enfrentar uma briga e se dana a chorar, pra chatear as pessoas, puxar encrenca. E vai crescendo e lutando. Com os irmãos, com os vizinhos, mais tarde com os pais e assim por diante. Escritinho um galo de briga. Quer dizer, galo de briga é como gente e gente é como galo de briga. Enfim, se o galo de briga não brigasse, que diabo ia fazer na vida?
Tota não discute. Sabe, ele agora vai dizer.
– Por causa dos galos subimos no telhado completamente desprevenidos. A mulher ainda apanhou uma trouxa de roupa que ia passando, uns carrinhos de brinquedo… Pra quê? Acho que ela apanhou automaticamente, sem se sentir. Por isso, quando a fome apertou, cai em cima dela. Uma trouxa de roupa suja! Brinquedos de criança! E ela: Agradeça a seus galos. Se não fossem os galos eu tinha me lembrado de trazer uma coisa útil.
E eles ali. Se a água encobrisse a casa, que fariam? Morreriam todos, arrastados no torvelinho, abraçados aqueles animais ferocíssimos. E tinha de ser. Na verdade, em momento algum as feras paravam de se provocar. Para Zacarias, a situação era pior. Segurando dois, tinha de mantê-los afastados, para não se estraçalharem. Tampouco podia soltar um deles no telhado: este ficava a dar pinotes a fim de agarrar o outro. E dali se mandava, pisando desajeitado entre as telhas, para perseguir os dos meninos, em altura mais acessível. Zacarias até estava menos triste pela perda dos outros vinte. Se fossem vinte e cinco naquela situação, hem? Ah, depois ia chorar os seus galos, ia ter tempo de sobra para chorar os seus impávidos guerreiros, seus invictos guerreiros. Seus…
– Mulher, me dá essa trouxa de roupa ai, eu disse. É que na trouxa devia de ter algumas… Se tinha? Até de sobra. Meia. Meia de calçar nos pés, era o que eu queria. Apanhei logo cinco. Meninada, eu disse, vai botando essas meias nas cabeças dos galos.
Com pouco estava tudo emeiado, soltando gritos de espanto, de estranhação. Ficou até engraçado. Pareciam anões, anões de carapuça. O Maior veio logo dizendo pro Menor: O que ficar com uma das de pai na cabeça vai morrer insfixiado… Peteleco! E não foi por ter dito a palavra errada não. Assim mesmo, os galos sossegaram? Uns tomates! Guiavam-se pelos cacarejos, vinham-se se chegando, armados, agarravam-se, cegos, trocando soltas. De qualquer forma, emeiados era mais fácil vigiá-los. Se acalmaram quando começou a escurecer. Agacharam-se, conformados, por ali mesmo pegaram no sono.
Aí recomeçaram as lamentações da mulher. Porque se Zacarias tivesse sido mais previdente, se tivesse chegado em casa a tempo de tomar as providências necessárias, se não vivesse naquela amigação com os galos… Cala a boca, danada, perdi vinte e você ainda vem me chatear por causa de cinco? Aí o Maior e o Menor caíram no choro. Fome. Aí… Sabe de que a mulher se lembrou? Veja: Se a gente tivesse um fogareiro, matava um desses galos… O quê? Por que não ia comer a mãezinha assada no espeto?
Mas, de noite… De noite foi de doer na alma. Eles, apenas eles, ali trepados, cercados de água, no maior abandono do mundo, uma luz não havia, um sinal de comunicação não havia. Só água. Muitas casas estavam completamente encobertas. A gente sabia que estavam encobertas porque se lembrava que ali morava preto Leão, ali Ranulfo, ali Pedro Lima, ali… Possível uma coisa daquelas? Zaca, a gente vai morrer mesmo como rato? Zacarias não sabia o que responder, somente aquele bolo de ódio nas entranhas. O clarão do Recife se mostrava lá longe, bem longe. Mas ali por perto era tudo escuridão, às vezes ouvia-se ruído de motor, devia ser de lancha, barco, salvando gente. De automóvel é que não podia ser. Ouviam-se também gritos de desespero, de gente pedindo socorro. E choro de mulheres, de crianças. Depois, calava tudo. Eo silêncio se perdia na indiferença da água escura, da água constante, da água ambiciosa, dessa água puta, pois fora a partir daí que Zacarias passara a odiá-la. Ora, já se viu, tomar tudo assim, sem dar satisfação, passar tudo no rabo? O que a gente guardou com sacrifício, o que juntou para dias melhores, o que sempre manteve familiarmente. E a putágua vir com toda sem-vergonhez, apossar-se, lambuzando-se de direitos que ela mesmo inventou…
Anoiteceu de todo, os meninos pegaram no sono, junto aos galos. A mulher lembrou que podiam pedir socorro. O ruído do motor estava por perto, se gritassem… Eu não peço, protestou Zacarias, cheio de brios. Ridículo. Naquela idade, a gritar feito uma mocinha: Socorro! Socorro! Morro e não grito. Não era necessariamente socorro, podia ser acudam.
– Grite você.
– Minha voz está fraca, Zaca,eu estou rouca.
A água ri da gente, a água sabe que domina a gente. Aquele jeito dela, compacto, inchado de prazer, sem arredar uma polegada; aquela consciência do poder… A água tem instinto, tem alma. Tem sim. Mas o homem é mesmo um saco de merda, termina dominado de qualquer maneira. Pois naquela aflição, Zacarias e a mulher não foram dominados pelo sono? Ele, a mulher, o Maior, o Menor. Todos dormiram. Os galos primeiro. Como também foram os primeiros a acordar. De manhã Zacarias despertou com o barulho de suas asas, seus pés cascudos, seus esporões enfacados, seus brados selvagens. Uns, livres das meias, outros ainda encapuçados, mas todos na agarração sangrenta. Na cegueira da luta, desequilibrados pelo declive do telhado, iam se dirigindo para fora, para a água, para o fim. Zacarias, estremunhado, não teve tempo de socorrê-los. Um por um, a cada impulso mais violento, foi caindo dentro da água barrenta. Zacarias se preparou para mergulhar na correnteza. Você está doido, homem? Arriscar a vida por causa destes pestes? Era a mulher, agarrada com ele. E, sem camisa, trêmulo, ofegante, Zacarias acompanhava-lhes a descida. As cabeças vermelhas afundavam, surgiam mais adiante, bicando-se, sempre, ao se encontrarem no balanço das ondas. Raça de macho, não era de cabra de peia não. Zacarias não se conteve, inda gritou: Aí é a raça da minha galinha roxa! Sua raça pura, sua marca que nunca fora desmoralizada. Enfim, sumiram, eles, os galos, num pesadelo, numa visão de adeus inesquecível.
Tota consulta o relógio, suspira. Agora ele vai dizer que logo depois, parecia coisa feita, apareceu a lancha dos bombeiros… Tota espera. Zacaria, de pié, curvado, os braços como dois macetes, punhos cerrados comprimindo a mesa:
– Logo depois, parecia coisa feita, apareceu a lancha dos bombeiros. Agora! Agora soquem sua lancha no cu.
E cadê Zacarias querer ser salvo? Não ia na lancha não, ficava ali. Se quisessem salvá-lo tivessem vindo mais cedo. Agora era tarde, muito tarde. O Maior e o Menor pularam logo na lancha, a mulher abraçada com Zacarias. E Zacarias vou não, vou não. Não há quem me arranque daqui, quero morrer com os meus galos nos olhos, afundando.
Tota ganha sua chance de vingança;
– Mas veio sempre, não foi, Zaca? Ou não veio?
Os braços perderam a rigidez, os punhos afrouxaram, as pernas de Zacarias dobraram. Eis Zacarias caído com todo corpo na cadeira. E o seu choro babado, seus soluços suspensos, numa mistura de vômito e maldição.
O bar de novo está cheio. O Português afasta as bancas, separa as cadeiras, abre espaço. Preto Leão vem chegando com sai turma da pesada. Levanta, Zaca, enxuga o pranto, dá volta por cima. A negrada já brincou o dia inteiro. A coisa mais divertida do mundo é uma enchente e o que resta duma. Adoro cheia. Tempo de enchente é como tempo de carnaval. Um gole, um gole. Isto! Vamos botar pra moer. O surdo estronda no salão, os músicos fazem uma mistura de acordes, o tarol metralha aquelas vozes esganiçadas. Zacarias está abraçado com Tota, sai puxando o cordão. Se Esta Rua Fosse Minha Eu Mandava Ladrilhar… Tirava toda a lama da rua, lavava a sujeira da rua, ladrilhava a rua de pedrinhas de brilhante. Pra que, Zaca, pra quê? Para o meu bem passar.
* Do livro Os que se foram lutando. Rio de Janeiro, Artenova, 1976.