Miranda Muniz: O voto distrital é antidemocrático

O sistema distrital, é bom que se diga, tem origem nas tradições medievais. No caso da Inglaterra, os distritos têm início em 1254, quando o rei Henrique III convocou dois cavaleiros por condado para compor uma assembléia de representantes, para dar seu consentimento aos novos impostos.

Por Miranda Muniz*

Na França, tal sistema predominou ao longo da história, desde 1302. Aqui no Brasil, quando prevaleceu durante quase 70 anos – do império até a revolução de 30 – tinha muito haver com a tradição das capitanias hereditárias e dos governos gerais.

Com o advento da República, da constituição dos estados federados e dos municípios, configurou-se uma nova realidade, a qual impôs a implantação do sistema proporcional, a partir da Revolução de 1930. Com o Estado Novo foi restabelecido. O sistema proporcional retorna com a democratização do país através da Constituição de 1946. A Emenda Constitucional n. 22/82, de iniciativa do General Figueiredo, ressuscita-o novamente. No entanto, não foi colocada em prática. Com o fim do regime militar, o Congresso Nacional revogou, em 1985, esse entulho autoritário. Assim, percebe-se claramente que o voto distrital sempre caminhou de braços dados com o autoritarismo.

Em minha opinião, a grande questão que deve ser buscada numa verdadeira democracia representativa é a equação que melhor traduza a vontade expressa no voto, na composição dos parlamentos.

E não é com o sistema distrital que esse objetivo pode ser alcançado. Isso porque no sistema distrital prevalece princípio do “quem ganha leva tudo, quem perde não leva nada.” Teoricamente, um mesmo partido ou coligação que alcançar 50% mais um dos votos (ou até menos que isso, se houver mais de um partido ou coligação na disputa) em cada um dos distritos existentes no Estado, iria ocupar 100% das cadeiras. Já outro que tenha alcançado 50% menos um voto, não elegeria nenhum parlamentar. Ou seja, nesse caso, quase a metade dos eleitores não seriam representados no parlamento.

Essa distorção também ocorre na prática, senão vejamos: nas últimas seis eleições realizadas no Reino Unido, o Partido Conservador jamais conseguiu alcançar 50% dos votos. Mas em função do sistema distrital, alcançou mais de 50% das cadeiras na Câmara dos Comuns em 4 oportunidades! Outro exemplo dessa distorção, também na Inglaterra, foi em 1974, ocasião em que o Partido Liberal obteve 19,3% dos votos, no entanto, conseguiu alcançar apenas 2,2% das cadeiras.

Nos EUA, a “mágica” do sistema distrital possibilitou que G. Bush ganhasse a eleição de Al Gore por uma diferença de 5 votos (no colégio eleitoral), sendo que o “derrotado” havia alcançado mais de 500 mil votos a mais que o “vencedor.” Ou seja, quem ganhou não levou!

Já em 1868, em pleno Império, o renomado intelectual e escritor José de Alencar combatendo o sistema distrital vigente e defendendo o voto proporcional assim pronunciava: “É evidente que um país estará representado quando seus elementos integrantes o estiverem na justa proporção das forças e intensidade de cada um.”

Alem dessa distorção entre o número de votos e o número de cadeiras, o sistema distrital pode trazer outro grave inconveniente: a manipulação na divisão dos distritos. A literatura está cheia de exemplos, tanto nos Estados Unidos, na Inglaterra e na França.

Os defensores do voto distrital argumentam que tal sistema permite uma maior aproximação do eleito com seus eleitores e que reduz os custos de campanha.

O primeiro argumento não corresponde aos fatos, já que todo parlamentar, por mais votação dispersa, tem sempre uma base de sustentação que lhe garante parcela considerável da eleição, a não ser aqueles representantes de grandes grupos econômicos que compram votos. E hoje, em plena era da informação, com os instrumentos das mídias sociais, a presença física passa a ser, de certa forma, secundária. O Juiz Marlon Reis, presidente de honra do MCCC, em entrevista, publica recentemente em um jornal de Cuiabá, desmascara a falácia da tão decantada “proximidade do eleito com o eleitor”, nos seguintes termos: “Eu voto na pessoa e sei que aquele que votei vai ser eleito. Só que isso tem um preço. O preço é o do fomento do clientelismo. Os estados brasileiros na sua maioria serão divididos em feudos, então o Brasil todo vai ser esquadrinhado em cada distrito que vai se converter em feudo.”

Quanto à “influência do poder econômico”, é maior no distrital, porque restringe a área de disputa e possibilita que um candidato, com maior volume de dinheiro, possa ali concentrar seus recursos. O velho e saudoso Tancredo Neves afirmava que no distrito “com a área eleitoral delimitada, o governo e o poder econômico dispõem de mil e um instrumentos para tornar inelegível e impedir a eleição de um representante do povo que venha a tornar-se incômodo não só para os interesses de governo, como para os interesses do poder econômico nacional”.

Em síntese, algumas conseqüências danosas que o sistema distrital poderá trazer, se implantado: 1. Distorce a vontade popular, pois a quantidade de votos obtidos por um partido não corresponde ao número de cadeiras conquistadas; 2. Dificulta a representação das forças populares. Os setores populares que não dispõem de recursos e que têm o voto disperso no conjunto da sociedade ficarão prejudicados, levando a uma elitização ainda maior do Parlamento. 3. Paroquializa as campanhas afastando dos debates os grandes temas políticos. 4. Agrava a influência do poder econômico. 5. A divisão dos Estados e municípios em distritos eleitorais será um instrumento a mais nas mãos das elites para favorecer seus candidatos e, 6. Tira a liberdade do eleitor em escolher o candidato com quem ele mais identifica, pois é obrigado a votar apenas nos candidatos do seu distrito.

Por tudo isso, considero que a adoção do sistema distrital (em qualquer das suas modalidades) representaria um retrocesso antidemocrático. Se implantado, pode levar à extinção dos partidos menores, ideológicos, e à construção de um sistema autoritário de poucos partidos, deixando uma parcela ponderável da sociedade sem representação política. Basta ver os exemplos dos EUA, do Reino Unido e da França: não há pluralidade, pois apenas dois ou três grandes partidos é que efetivamente participam do poder.

A reforma política deve ser para ampliar e não para restringir a democracia!

*Miranda Muniz é agrônomo, bacharel em direito, oficial de justiça avaliador federal e presidente estadual do PCdoB/MT.