Germinal: a luta proletária entra em cena

Emile Zola (que completaria, neste dia 2 de abril, 171 anos de idade) foi – diz o crítico brasileiro Otto Maria Carpeaux, o “grande poeta” do destino da literatura moderna. Mas qual era esse destino? Começando a escrever, como ficcionista e jornalista, na década de1860, autor de mais de 25 romances, sua obra refletiu as contradições e as mazelas do capitalismo triunfante e a miséria e opressão dos trabalhadores que ele acarretava.

Por José Carlos Ruy

E que se refletiu na literatura, diz Carpeaux, numa linguagem radical que, se ainda não chegava ao socialismo marxista, levou “à descoberta dos novos ambientes proletários e semiproletários” que, na obra de alguns daqueles radicais, se traduziu em formas de pessimismo e fatalismo decorrentes do determinismo econômico que os levava a encarar o capitalismo como a fonte do mal.

Em Zola, que – unindo literatura e jornalismo com forte inspiração na ciência de então – esta percepção desembocou na criação de uma nova forma de literatura, mais avançada em relação ao romantismo e ao realismo anteriores, o naturalismo. As raízes mais profundas estão ancoradas nas obras realistas dos ícones da geração anterior – Balzac e Flaubert, principalmente, e no romantismo socialmente comprometido de Victor Hugo.

Foi em 1871 – há 140 anos, portanto – que ele a série de romances protagonizados pelos Rougon-Macquart, contando a trajetória de uma família rica e decadente. O objetivo de Zola está explícito no próprio sub título que seu para a série, História natural e social de uma família sob o Segundo Império e seu primeiro volume, A fortuna dos Rougoun, foi publicado naquele ano. A série chegou a ter 20 livros e o mais famoso deles é considerado a obra prima de Zola, Germinal, publicada em 1885 e que, para o desgosto de críticos que consideram este romance “ultrapassado”, continua sendo um dos favoritos do público e com grande influência entre romancistas ao longo do século 20, deste escritores de temática social nos EUA há algumas décadas, até autores da América Latina e da África.

É evidente a inspiração na Comédia Humana, a qual Balzac havia inaugurado, décadas antes, aquilo que os franceses chamam de romance fleuve, que descreve verdadeiros painéis sociais fazendo os personagens passarem ao longo das histórias protagonizando aspectos multifacéticos da realidade em que vivem.

Mas a grande novidade dos romances de Zola – notável particularmente em Germinal – é a tendência à troca do herói individual típico do romance burguês, pelo herói coletivo, pela massa, simbolizada aqui no proletariado que se move na luta contra a opressão capitalista.

A grande inovação formal introduzida por Zola foi a radicalização de uma experiência literária que já fora iniciada por Flaubert e Balzac, a observação participante. Neste sentido, há uma clara incorporação das técnicas do jornalismo ao fazer literário. Para descrever com realismo a opressão e a miséria dos mineiros do norte da França, Zola empregou-se durante dois meses minas de Montsou, no Norte da França, onde pode trabalhar e viver enfrentando a mesma dura realidade vivida pelos personagens do livro que se tornou um dos clássicos mais admirados da literatura justamente por trazer para a cena os trabalhadores, suas lutas e vicissitudes.

O engajamento de Zola não foi apenas social mas também político e a mais veemente manifestação desse compromisso do escritor foi o artigo J’Acuse! (Acuso!) publicado em 13 de janeiro de 1898, na forma de uma carta aberta a Félix Faure, presidente da França, onde acusava o governo de antissemitismo pela perseguição contra o capitão Alfred Dreyfus, que era judeu e oficial do exército francês, acusado falsamente por traição em 1894. Foi um caso marcante no conflito entre a direita conservadora e os democratas na história republicana francesa. O capitão judeu foi acusado de espionagem a favor da Alemanha, sendo julgado e condenado num processo a portas fechadas, onde a alta oficialidade do exército condenou Dreyfuss a prisão perpétua. Depois, quando se descobriu que as provas haviam sido fraudadas, os generais tentaram acobertar o “erro judicial”. Mas a forte repercussão do artigo de Zola ajudou a inflamar a opinião pública democrática e à reabertura do processo, em que Dreifuss foi finalmente absolvido.

Zola nunca foi bem aceito pelos críticos e jamais foi eleito para a Academia Francesa, apesar de sua candidatura ter sido apresentada umas vinte vezes. E pode-se imaginar a razão: sua literatura tinha um engajamento popular que nunca foi renegado pelo autor e seus personagens fogem completamente ao padrão usual da literatura burguesa do século 20, marcada pelo exasperante exame das idiossincrasias e problemas de heróis individuais; foi, nesse sentido, um precursor da literatura mais avançada, aquela onde as contradições da ordem capitalista e do domínio do dinheiro ocupam o lugar de destaque de tramas que, longe de harmonizar e legitimar os conflitos, ajudam a despertar as consciências.

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Germinal, Émile Zola

A história se passa na segunda metade do século XIX. Germinal baseia-se em acontecimentos verídicos. É um espelho da realidade. Para escrevê-lo, Zola trabalhou como mineiro numa mina de carvão, onde ocorreu uma greve sangrenta que durou dois meses. Denunciou as péssimas condições de trabalho dos operários, a fome, à miséria, a promiscuidade, a falta de higiene, mostrou como jamais havia sido feito que o ambiente social exerça efeitos diretos sobre os laços de família, sobre os vínculos de amizade, sobre as relações entre os apaixonados.

Germinal é uma obra forte e comovente, realista e impressionante; fala sobre o trajeto de um desempregado vagando pelas estradas da França, em um período de depressão econômica, que chega a uma região carbonífera e acaba empregando-se numa das minas para fugir da fome. Ao mesmo tempo em que trava contato com as ideias socialistas o "ex-andarilho", Etienne, se apaixona por Catherine, filha de uma família que a gerações trabalha e morre na mina Voeux.

Ao longo de Germinal podemos acompanhar uma das primeiras lutas do movimento operário moderno, e as influencias sobre esse movimento causado pela fundação da Primeira Internacional [a Associação Internacional dos Trabalhadores – nota da redação], a famosa associação criada por Karl Marx para reunir os trabalhadores do mundo todo. Germinal enfoca os operários das minas de carvão do Norte da França. A Revolução Francesa, de 1789, não solucionara os problemas do povo, que quase cem anos vivia em condições de vida que continuavam as mesmas, muito difíceis. Em Germinal, os protagonistas são os trabalhadores das minas e suas famílias, todos forjados pelo cotidiano opressivo da luta pela sobrevivência, uma sobrevivência que se associa à transmissão hereditária da miséria e da degradação física e moral.

A burguesia havia tomado o poder e, juntamente com a nobreza, se tornara a classe dirigente da França; a pequena burguesia e o operariado, no entanto, eram ignorados pelo poder dominante. A miséria era violenta, o salário dos trabalhadores mal dava para sobreviver, as lutas em favor da democracia e da igualdade social foram se acirrando, alimentados pela difusão das ideias socialistas.

Ao mesmo tempo, essa abordagem política e social é humanizada pelo estudo das reações das pessoas diante de sua situação. Os acontecimentos descritos são permeados por paixões e conflitos humanos, em seu estado mais puro, o amor, a fome e a miséria, as lutas entre grupos de pessoas de classes sociais diferentes, que marcam um período de grandes agitações sociais em toda a Europa, em especial na França. Nesse meio tempo, tanto a progressiva industrialização como a situação de descontentamento eram gerais também em toda a Europa.

Emile Zola narra a dantesca jornada dos mineiros até as profundezas de seu local de trabalho. Amontoados uns contra os outros, eles embarcavam nos vagonetes dos elevadores, que subiam e desciam com seu deslizar de animal noturno, tragando homens que a goela do buraco parecia beber. No interior das minas, a escuridão era vencida apenas pelas lâmpadas Davy que os trabalhadores carregavam consigo. Naquela quase obscuridade, os novatos como Etienne sentiam uma grande desorientação ao caminhar pelo estreito labirinto que levava os operários até os veios de extração. Além das saliências da rocha a lhes machucarem seguidamente os membros, havia também a impressão de estar adentrando em um mundo completamente distinto daquele conhecido. Pior do que as trevas e a umidade excessiva eram, sobretudo, as bruscas mudanças de temperatura. No fundo do poço estava muito fresco e na galeria de tração, por onde passava todo o ar da mina, soprava um vento gelado, cuja violência parecia uma tempestade. À medida que se penetrava nas outras galerias, o vento diminuía e era substituído por um calor sufocante, pesado como chumbo. A rotina dos trabalhadores levava-os, assim, a habitar um ambiente inóspito onde as dificuldades do ofício tornavam-se muito maiores graças às condições fustigantes do local.

Na Voreux a mina em que Etienne e seus companheiros extraíam carvão as durezas do ofício eram intensificadas pelo modo de pagamento adotado. Nelas se trabalhava por empreitada, sistema que fazia com que os mineiros trabalhassem quase sem parar por várias horas seguidas, pois dava a impressão de que era a vontade dos operários e não o mando do capital que ditava o ritmo de extração do carvão. Mesmo quando interrompiam o trabalho para comer, não chegavam a descansar o suficiente. Muitas vezes apressavam o almoço para não perderem o calor do corpo. Deitados de lado, golpeavam mais forte, com a ideia fixa de completar um número elevado de vagonetes, os mineiros iam além dos limites humanos num movimento contínuo e obsessivo direcionado para a realização das tarefas que lhes foram designadas. Dentre elas a de recolher o carvão retirado das paredes da mina e colocá-lo nos vagonetes, trabalho geralmente destinado às moças, mas que a empresa proprietária da mina queria substituir por rapazes. Zola afirma que esse projeto de retirar as mulheres da mina repugnava aos mineiros, que temiam pelo emprego das filhas.

A greve foi uma das mais importantes armas dos trabalhadores. Sua deflagração tinha o mérito de desorganizar o capital, mas também possuía suas contrapartidas negativas para o proletariado, principalmente quando ele ainda não estava preparado de forma adequada para o longo jogo de paciência com os burgueses.

A história de Germinal termina com a partida de Etienne rumo a Paris. Ele acreditava que, apesar de tudo, no valor de seus atos e de seus companheiros. Eles mostraram aos burgueses que os trabalhadores não seriam subjugados para sempre. Um dia, a revolução aconteceria para destruir a velha sociedade. A imagem do exército negro cuja germinação faria rebentar a terra representa essa esperança no nascimento de um novo mundo.

As colheitas do século seguinte ocorreriam mais ao Leste, na Rússia, onde o czar, o mais autoritário dos déspotas, perderia o trono através da luta de um outro exército, que fora tingido de vermelho pelo sangue derramado na grande guerra. E durante muito tempo esse exército, o sustentáculo de uma utopia, faria tremer os governos da Terra e os alicerces do mundo do trabalho.

Zola estaria tentando mostrar aos burgueses, que a exploração desmedida do trabalho alheio, embora criadora de riqueza, levaria cedo ou tarde à sublevação de forças que eles não seriam capazes de conter.

O livro
Zola, Émile. Germinal. São Paulo: Cia das Letras, 2000

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