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A parceria estratégica entre Brasil e China

Um dos acontecimentos mais relevantes em curso na história atualmente é o progressivo deslocamento do dinamismo industrial e do poder econômico mundial do chamado Ocidente para o Oriente, com destaque para o declínio da liderança dos EUA e a vertiginosa ascensão da China. É o pano de fundo da visita que a presidente Dilma Rousseff faz a Pequim, acompanhada de 250 empresários, onde deve assinar 20 acordos comerciais.

Por Umberto Martins

A decadência do império estadunidense e o avanço chinês são fenômenos objetivos, determinados pelo desenvolvimento desigual das nações em associação com o crescente parasitismo de Tio Sam. Exibindo um crescimento anual médio de 10% do PIB nas três últimas décadas (1980 a 2010), a China se transformou na segunda maior economia do mundo e já ultrapassou os EUA em pelo menos dois setores fundamentais: comércio e indústria. O país registrou um crescimento significativo do PIB per capita (em preço corrente) que saltou de US$ 205,1 em 1980 para US$ 4.282,9 em 2010.

Participação do valor da produção chinesa (em US$) no PIB global
1980 1,90%
2000 3,70%
2010 9,30%

Fonte: FMI

Em 2009, o país passou a liderar o ranking mundial das exportações. No ano passado, destronou os Estados Unidos na indústria e se tornou a maior potência manufatureira do mundo, segundo um estudo do centro de pesquisas econômicas IHS Global Insight. A produção industrial da China representou 19,8% da produção manufatureira mundial no ano passado, enquanto a parcela dos Estados Unidos representou 19,4%.

Evolução da participação da China no comércio internacional

  Exportações (A) Importações (B) Corrente comercial (A+B) – % comércio mundial
2000 3,9  3,4 3,7
2010* 10,4 9 9,7

*Dados do primeiro trimestre

Fonte: FMI e Ipea

Maior parceira

Os efeitos deste movimento são sensíveis em nosso país. Em 2009, a China subiu à posição de maior parceira comercial do Brasil, deslocando os EUA. No ano passado, as exportações brasileiras para o país asiático somaram US$ 30,8 bilhões, equivalendo a 15,2% do total, enquanto a participação da maior economia capitalista do planeta, declinante, ficou em 9,6%.

O Brasil importou US$ 25,6 bilhões da China em 2010. O saldo foi um lucro macroeconômico (superávit) de US$ 5,2 bilhões. Com os EUA, o resultado no mesmo período foi um déficit de US$ 8 bilhões (vendas no valor de US$ 19 bilhões para os Estados Unidos e compras de US$ 27 bilhões).

Conflitos

Exportações brasileiras para a China
2000 US$ 1,1 bilhão
2010 US$ 30,8 bilhões

Fonte: Ipea

O comércio, conforme notou Karl Marx, é uma via obrigatória da realização do capital produtivo na qual circulam os interesses da indústria. Tem uma importância vital para o crescimento e o desenvolvimento das economias e, quando cessa ou contrai, rompendo a unidade entre produção e consumo, denuncia a superprodução e dá lugar às crises cíclicas do capitalismo.

As relações entre os dois países neste terreno não são isentas de contradições e conflitos, que se acentuam no cenário de acirramento da concorrência em função da crise mundial do capitalismo. Entre os 250 empresários brasileiros que acompanharam a comitiva presidencial, proliferam as queixas sobre a composição das trocas no comércio sino-brasileiro. Apesar do superávit, as exportações brasileiras são compostas basicamente por commodities, ao passo que o grosso das importações são de industrializados.

Divisão social do trabalho

Em outras palavras, o país vende mercadorias com pouco valor agregado e compra produtos intensivos em tecnologia e conhecimento, que agregam maior valor às cadeias produtivas. Em 2010, segundo estudo do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), as commodities responderam por 83% da pauta de exportações do Brasil para a China, enquanto produtos industrializados representaram 97% das importações.

Isto sugere a reprodução da divisão internacional do trabalho imposta pelas potências capitalistas a suas colônias e ex-colônias, fundada na troca de industrializados por matérias-primas. A inusitada mudança nas relações de troca (ou nos preços relativos de commodities e manufaturados), decorrente da demanda chinesa, fonte do superávit comercial brasileiro, alivia o problema, mas não resolve os conflitos com a indústria nacional, que vem perdendo espaço nos mercados interno e externo para empresas chinesas.

A assimetria da competitividade industrial relativa entre os dois países não é culpa exclusiva dos chineses, já que está associada à política cambial, carga tributária, tecnologia, infraestrutura, tarifas sobre importações e outros fatores. Mas o tema será abordado nas audiências de Dilma com autoridades de Pequim.

Investimentos diretos

Embora importante, o comércio não é tudo. A China se transforma rapidamente em grande investidora internacional, condição até há pouco desfrutada com exclusividade pelo grupo de potências capitalistas reunidas no antigo G-7. A próspera nação asiática liderou os Investimentos Diretos Externos (IDE) realizados na América Latina em 2010. Aplicou por aqui cerca de US$ 30 bilhões. O Brasil foi o principal destino desses investimentos.

As estatísticas oficiais subestimam o valor dessas inversões, de acordo com o Ipea, porque as empresas estatais chinesas (que respondem por mais de 80% do IDE) enviam os recursos para o Brasil a partir de bases em outros países. Segundo estimativas da Sobeet (Sociedade Brasileira de Estudos de Empresas Transnacionais e da Globalização) e do professor Antônio Correa de Lacerda, o IDE chinês no Brasil em 2010 deve ter ficado entre US$ 13 bilhões e US$ 17 bilhões, valores bem acima dos registrados pelo Banco Central.

É um terreno promissor para as relações entre os dois países. Convém ressaltar que, ao contrário do que ocorre com o capital de curto prazo que flui ao Brasil para aplicação no mercado de capitais e em títulos do governo, estimulando a sobrevalorização do real, os investimentos diretos, destinados à produção, tendem a alimentar a taxa de investimentos, que determina o crescimento econômico. Desta forma, dão uma contribuição predominantemente positiva para o desenvolvimento nacional.

Sob o comando do Estado

Um fato digno de nota, enfatizado no estudo do Ipea, é que as corporações de propriedade estatal correspondem ao núcleo duro do processo de internacionalização chinês. De acordo com as estimativas da OECD (2008), a participação das estatais chinesas sob a administração do governo central, no estoque total de IDE fora do país, foi de 84% em 2005 e, em termos de fluxos, de 83,7% no biênio 2004-2006. O restante desses investimentos foi realizado por empresas estatais sob a administração de governos locais ou não estatais de vários tipos de estruturas societárias (privadas nacionais, privadas estrangeiras, entre outras).

É o Estado, dirigido pelos comunistas, quem controla o fluxo de investimentos externos, ao contrário do que ocorre com as potências capitalistas, onde a exportação de capitais fica a cargo principalmente dos grandes monopólios privados. Isto faz diferença e significa que a estratégia de investimentos do país não precisa se guiar exclusivamente pela busca do lucro máximo, como ocorre com as multinacionais capitalistas, e que o governo chinês pode ser mais flexível na colaboração com o desenvolvimento brasileiro.

Os investimentos realizados pela China estão associados principalmente à produção de matérias-primas e aquisições de terra, o que desperta preocupação e críticas. O governo Dilma leva a Pequim a reivindicação de que os recursos sejam alocados principalmente às áreas ligadas à infraestrutura e tecnologia. Seria uma ajuda mais efetiva ao desenvolvimento nacional e à elevação da competitividade industrial.

Interesses convergentes

Objetivamente, a ascensão da nova potência asiática, em sintonia com a mudança da política externa promovida pelo governo Lula (rejeição da Alca, promoção do comércio Sul-Sul e integração latino-americana), favorece os interesses do Brasil na medida em que reduz a dependência comercial e financeira do país em relação aos Estados Unidos e União Europeia.

A crise ajudou a evidenciar este ponto. “As exportações brasileiras para a China saíram de pouco mais de US$ 1 bilhão em 2000 para US$ 30,7 bilhões em 2010, sendo que, diferentemente das exportações do Brasil para o resto do mundo, esse crescimento não foi afetado pela crise de 2008. Ou seja, além da rápida expansão das exportações brasileiras para a China, esse país contribuiu para minimizar as perdas comerciais derivadas da significativa queda dos fluxos de comércio em nível global” (Comunicado 85 do Ipea).

Nova ordem mundial

Consideradas em conjunto, as relações entre os dois países, que compreendem economia, política, ciência e cultura, configuram uma parceria estratégica. É grande a convergência de interesses no plano da diplomacia e as posições assumidas no âmbito da ONU e outras instituições multilaterais em geral são coincidentes.

Perspectiva para o crescimento em 2011
China 9,40%
EUA 2,80%
América Latina 4,70%
Brasil 4,50%

Fonte: FMI

Brasil e China, ao lado de outros países em desenvolvimento (no interior dos Bric, que agora ganha um reforço com o ingresso da África do Sul), têm muito a ganhar, por exemplo, com a mudança da ordem econômica e política mundial e, em particular, do Sistema Monetário Internacional (SMI). Neste sentido, os dois governos estão trabalhando juntos, no G20, para encontrar uma alternativa ao padrão dólar, já que os déficits imperiais e o poder de emissão daquela moeda, que ainda faz as vezes de dinheiro mundial, condenam os mercados cambiais a uma instabilidade crônica e levam ao mundo guerra cambial e inflação.

O deslocamento do poder econômico internacional empurra a geopolítica ao delicado caminho da transição, que certamente não terá um desfecho em curto prazo nem será resolvida sem luta por novas hegemonias ou por uma ordem mais mundial democrática, sem poder hegemônico. O lugar do Brasil neste processo é na trincheira dos países em desenvolvimento, no hemisfério Sul, cujas perspectivas, nos marcos do desenvolvimento desigual, são de forte crescimento, em contrapartida à anemia das potências capitalistas, conforme prevê o FMI na tabela acima.