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Causos: Formações arqueológicas e camadas do saber popular

O encantamento pela palavra coexiste com o aparecimento do ser humano. Com as narrativas orais, diferentes visões de mundo foram constituindo-se. Nessas, os conflitos humanos, sociais e a busca de explicações para os fenômenos, até então considerados inexplicáveis, abasteciam pelo viés do imaginário as interrogações da humanidade.

Por Aparecida Brandão*

Narrar fatos, histórias ou causos tornou-se, ao longo do tempo, uma arte recorrente para crianças e adultos na medida em que esses superavam os dramas, que atravessavam a existência humana, numa fase da história em que os meios de comunicação de massa inexistiam.

Contudo, a salutar prática de narrar causos -gênero, que ora nos interessa, ainda continua viva em diferentes culturas por trazer, entre outros componentes, o chiste -o riso. Esses, como uma das formas de carnavalização da sociedade, estão situados no eixo ordem e desvio, provocando, assim, a quebra das hierarquias e das diferenças sociais, mesmo que momentaneamente, fazendo-nos fugir dos lugares comuns e das visões monocromáticas de mundo, homem, sociedade e história, para atingirmos aquilo que Tolstoi via como universal e polissêmico ao subverter a ordem estabelecida pelos setores mais conservadores da academia: conta a história de tua aldeia e estarás contando a história do mundo.

Assim sendo, a coletânea de causos "Conto porque me contaram" (Causos do Sivuca, de Domingos Sávio Brandão) traz de forma especial, a tradução do imaginário popular, através de variados ingredientes temáticos, que, ao longo do tempo, vêm compondo, com uma considerável profundidade, a história e a trajetória do povo ribeirinho do Vale do São Francisco e, mais especificamente, daqueles que formam a comunidade petrolinense.

Com um estilo ágil e leve de narrar, o autor consegue imprimir no leitor elementos próprios do processo em que trilha criatividade ao tempo em que vai sinalizando a importância daquilo que, originalmente, tem preservado a façanha de manter viva a memória de sua comunidade. Com efeito, FREITAG (1991), atesta. que "o narrador é ao mesmo tempo inventor e repetidor de estórias e acrescenta: "elas são verdadeiras formações arqueológicas, compostas de camadas e camadas de saber popular, em que dificilmente se distingue o que cada narrador posterior acrescentou, omitiu ou distorceu do conto" original".

Como professora de Literatura da Universidade de Pernambuco, tenho insistido na ampliação de um currículo escolar voltado também para os referenciais de uma literatura local. Isso não invalida a construção de conhecimentos científicos e socialmente acumulados pela humanidade, pois, ao partir de sua realidade, a escola, em seu papel de formar leitores, estaria garantindo a formação de um público leitor efetivado pelo prazer, pela fruição, pelo encanto e pela ampliação dos saberes necessários a esse novo milênio.

A obra traz uma coletânea de causos, que traduzem, de forma enxuta, uma significativa gama de narrativas, a visão do povo ribeiririho e seu cotidiano em diferentes momentos de sua formação. O autor, ou melhor, o compilador desses causos joga sutilmente com as palavras, tecendo uma visível rede de diálogos com o passado, com as experiências, com as emoções e com a busca de superação dos conflitos e embaraços que, corriqueiramente, queiramos ou não, nos surpreendem dia a dia, proporcionando-nos, graças ao poder da imaginação, as saídas mais surpreendentes e inesperadas -nessas residem o risível, o bom-humor e o controverso mundo da palavra.

Leia abaixo alguns dos Causos do Sivuca:

A Copa do Mundo na Procissão

Um fato pitoresco ocorrido em Petrolina na Copa de 1958: Naquela época, os padres celebravam missa, debulhando ladainhas e orações em latim e de costas para os fiéis. Na procissão de Corpus Christi, em pleno desenrolar da Copa em que o país do futebol conquistou, pela primeira vez, a Taça Jules Rimet, até na igreja, a única alternativa para acompanhar os jogos era através do rádio. O padre mantinha ligado seu aparelho na sacristia de forma que pudesse ouvir a explosão do gol. Na procissão, não foi diferente. Nosso saudoso Padre Américo deu um jeitinho de colocar no ombro de um fiel, seu inseparável rádio de elementos (pilhas). Assim, quando da passagem do cortejo pela Coletoria Estadual, Pelé, surgindo para o mundo, marcava um belíssimo gol para o Brasil, motivo suficiente para o nosso vigário largar o andor e sair pulando. Sacudindo a batina, gritou euforicamente para surpresa e delírio dos fiéis:
-Gooooooo1lll111 do Brasiiiiiiiill1ll1!

Brasil x França

Na Copa do Mundo de 86, o sincretismo religioso, pelo menos em Petrolina, funcionou a todo vapor com uma torcida entre minha tia de criação Toinha Silva (Toinha de Maricola) e sua irmã Belinha. A fmal antecipada da copa, entre Brasil e França, fatalmente eliminaria um favorito, que, lamentavelmente, foi o Brasil. Durante a peleja entre brasileiros e franceses, a cada lance, aumentava a expectativa, e não deu outra: jogo empatado no tempo normal e na prorrogação. A sorte seria decidida nos pênaltis, quando Toinha premeditou:
-O Brasil vai ganhar porque Dom Avelar (nosso ex-bispo) é brasileiro e está torcendo pelo Brasil.
Belinha alertou-a de maneira inteligente:
-Toinha, Toinha, lembre-se de que Dom Malan (nosso primeiro bispo) é francês! Não deu outra: a França tirou o Brasil da copa.

Namoro Avançado

O petrolinense Otomar de Souza Pinto foi, por três vezes, governado de Roraima e proporcionou a muitos conterrâneos a oportunidade de trabalho em suas profícuas gestões. Um dos que deixaram Petrolina para desbravar as matas do Norte foi o ex-atleta Júlio Nascimento, mais conhecido por Julhão do Capim. Muito tempo longe do convívio urbano, Julhão ressentia-se de um aconchego a cafuné. À procura de carinho, Julhão interessou-se por uma jovem índia, que frequentava o bar onde ele, costumeiramente, tomava sua cervejinha. Como não conhecia os costumes locais, procurou saber do dono do bar sobre o que fazer para conquistar o coração da jovem nativa. Sem muita recomendação do comerciante, Julhão partiu para o tudo ou nada e perguntou à índia:
-Por acaso, a menina já namora?
Para sua surpresa, a índia respondeu:
Oxente, eu até já fudo.

Semente Chocha

Um casal de gringos veio visitar Petrolina na década de 60, ficando hospedado no N euman Hotel, um dos poucos existentes na cidade e de propriedade do Sr. Adelino Bandeiraum. O casal fora atraído pelo Projeto Piloto de Irrigação, Patronato Agrícola, da Diocese de Petrolina, criado pelo Bispo Dom Avelar Brandão Vilela. Em nossa cidade, o casal fez amizades com pessoas influentes e, também, procurou conhecer personalidades populares. Foi aí que entrou em cena nosso saudoso "Cícero Doido", pessoa despachada e sem papas na língua. Levado a conhecer o casal visitante, Seu Cícero foi apresentado e relatou um pouco da sua vida e das suas atividades e ficou curioso por conhecer a vida dos visitantes. O gringo falou que estava ali para conhecer o Projeto de Irrigação e levar a tecnologia para sua terra e que era casado já há um bom tempo, mas ainda não tinha filhos. Esse fato gerou curiosidade de Cícero Doido, que examinou a mulher bem vistosa de cima a baixo e sentencioü:
-O terreno é muito bom! A semente é que deve ser chocha!

Um Real e Dois Poemas

Hélio de Souza Padilha é filho do saudoso escritor e poeta Antônio de Santana Padilha. Aposentado, do pai herdou o gosto pelas letras e, costumeiramente, realiza suas andanças pela cidade, parando sempre em pontos tranquilo para escrever seus poemas. Numa de suas paradas na orla, nas proximidades do Círculo Militar, Hélio foi surpreendido por um 'trombadão', que levou sua inseparável bolsa, fugindo em direção à ponte Presidente Dutra, rumo a Juazeiro. Operários que trabalhavam numa obra, ali próxima, iniciaram uma perseguição no sentido de retomar a bolsa do poeta. Nesse momento, também os soldados do exército, que preservam o Círculo Militar, passaram a perseguir o ladrão e, por meio de um rádio, comunicaram o fato à ROCAM, que entrou em cena e acionou a polícia de Juazeiro, sendo montada uma verdadeira operação de guerra. O ladrão entrou na Ilha do Fogo, sendo cercado por dezenas de policiais das duas cidades. O bandido foi capturado pela polícia baiana, portanto, conduzido à delegacia juazeirense para onde Hélio se deslocou a fim de fazer o reconhecimento da bolsa onde guardava sua fortuna. Ao ser interrogado pelo delegado, se reconhecia a bolsa como sendo sua, sem se dar conta do alarido que acabara de provocar, respondeu taxativamente:
-É minha, Doutor. Pode conferir, que aí dentro, está todo o meu dinheiro: um real e
dois poemas.

* Aparecida Brandão é professora de Literatura da Universidade de Pernambuco -UPE