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Guilherme Sena:A constitucionalidade do direito à livre coligação

O livre direito de os partidos políticos se associarem em coligação para disputar eleições majoritárias e proporcionais foi incluído explicitamente na Constituição no Parágrafo 1º do artigo 17, a partir da Emenda 52, em 2006. No âmbito da atual reforma política, várias forças políticas vêm manifestando o propósito de revogar esse direito de coligação para as eleições proporcionais, mas mantendo esse direito para as eleições majoritárias.

Por Guilherme Sena*

O direito constitucional à livre coligação – tanto as majoritárias como as proporcionais – decorre do princípio da liberdade partidária, contido no artigo 17 da Constituição Federal, como também do direito à livre associação, presente no inciso XVII do artigo 5º, este último uma cláusula pétrea. A livre coligação, por se tratar de direito fundamental, não pode ser expurgada da Constituição, mesmo que por Proposta de Emenda Constitucional (PEC), sob pena de violar direitos considerados intocáveis pela Constituinte de 1988.

O artigo 17, § 1º, da Constituição Federal estabelece a liberdade partidária nos seguintes termos: “É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações eleitorais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária”.

Liberdade partidária

Diante do dispositivo, emergem duas noções basilares para o caso em tela. A primeira, bastante óbvia, é o fato de que a Carta Magna prevê expressamente que os partidos políticos tem assegurada autonomia para se coligarem de acordo com seus critérios. Não há, como se pode ver no texto constitucional, nenhuma restrição às coligações, nem há especificação se elas devem ser majoritárias ou proporcionais.

Aqui se trata de algo óbvio. Se há liberdade partidária – e trazemos aqui a segunda e mais importante noção decorrente do dispositivo citado –, não há que se falar em restrições para as atividades partidárias legítimas, salvo, obviamente, quando se tratar de atividade ilícita ou paramilitar, o que, nitidamente, não é o caso das coligações.

Significa dizer, em outras palavras, que não há meia liberdade partidária; não há que se falar em liberdade partidária para coligar em eleições majoritárias, mas não nas proporcionais.

Acreditar nessa possibilidade seria uma verdadeira promiscuidade hermenêutica meramente utilitária, voltada para a consecução de interesses específicos e digna das argumentações mais tacanhas e autoritárias. Combater as coligações (seja qual for a sua forma) é, portanto, combater a liberdade partidária.

A liberdade partidária é um princípio basilar de qualquer regime democrático. Sendo um princípio, não pode se dobrar a argumentos de utilidade como os expendidos para combater as coligações proporcionais, sob pena de se estar lesando um valor tão importante para a democracia.

Liberdade de associação

A Constituição Federal de 1988 estabelece em seu artigo 5º, inciso XVII, que “é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar”. É importante destacar que essa liberdade não se restringe apenas à associação de pessoas físicas. Trata-se nitidamente de direito fundamental extensível às pessoas jurídicas.

Esse, inclusive, é o entendimento que prevalece no Supremo Tribunal Federal (STF). Na publicação A Constituição e o Supremo, em que se podem ver decisões do STF referentes a dispositivos constitucionais, há trecho que evidencia a posição aqui defendida.

Segue colacionado: “… sob a égide da vigente Carta Política, intensificou-se o grau de proteção jurídica em torno da liberdade de associação, na medida em que, ao contrário do que dispunha a Carta anterior, nem mesmo durante a vigência do estado de sítio se torna lícito suspender o exercício concreto dessa prerrogativa”.

Importante assinalar que a liberdade de associação tem uma dimensão positiva, pois assegura a qualquer pessoa (física ou jurídica) o direito de associar-se e de formar associações.

Também possui uma dimensão negativa, pois garante a qualquer pessoa o direito de não se associar, nem de ser compelida a filiar-se ou a desfiliar-se de determinada entidade. Essa importante prerrogativa constitucional também possui função inibitória, projetando-se sobre o próprio Estado, na medida em que se veda ao Poder Público a possibilidade de interferir na intimidade das associações e, até mesmo, de dissolvê-las, ( Disponível em http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/constituicao.asp (portal acessado em 2 de
junho de 2011) compulsoriamente, a não ser mediante processo judicial.

Fica evidente o entendimento de que o direito fundamental à liberdade de associação se aplica às pessoas jurídicas e também aos partidos políticos. Ora, se estes são titulares da liberdade de associação, o que isto significa se não que podem se coligar livremente?

Parece-nos impossível defender que a livre-associação se refira somente a coligações partidárias para a disputa de eleições majoritárias. Não há sequer um vestígio na Constituição que permita tamanho absurdo hermenêutico.

Igualmente, não há nenhuma possibilidade de considerar a liberdade de associação pela metade, restringindo-a as coligações majoritárias.

Além disso, a ideia da livre-associação, como se pode depreender de seu próprio nome, não significa que há a necessidade de se associar. Da mesma forma, coligação deve ser livre e cabe aos partidos políticos decidir se vão ou não compor alianças e se coligar, como estabelece o já explorado princípio da liberdade partidária. Com isso, nota-se que não se defende a obrigação de coligar, mas tão-somente a possibilidade de fazê-lo de forma autônoma.

Liberdade política

A própria natureza de qualquer atividade política em um contexto democrático deve incluir a autonomia dos agentes políticos para definirem suas estratégias de forma livre. Isso, obviamente, deve incluir a possibilidade de estabelecerem alianças, o que inclui coligações. É dizer, se os partidos creem que a estratégia mais acertada para atingirem seus objetivos é recorrer às coligações, nada deve haver que possa, de forma legítima, obstar essa forma de aliança.

O argumento faz parte do voto do ministro Celso de Mello, relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade, julgada em 10 de agosto de 2005, com acórdão publicado em 1º de junho de 2007. E está presente na página 90 da publicação A Constituição e o Supremo.

Nada do que foi exposto se refere a qualquer inovação. Trata-se, isso sim, de decorrência lógica e necessária dos princípios constitucionais e democráticos da liberdade partidária e da livre-associação, que são complementares. Não se trata, diga-se de passagem, somente das liberdades partidária e de associação, mas, mais que isso, de liberdade política.

A partir de uma avaliação constitucional cuidadosa e comprometida com princípios, conclui-se que a liberdade política de associação e a autonomia partidária, para que sejam devidamente preservadas, não podem prescindir da liberdade assegurada aos partidos para que formem alianças e coligações em conformidade com suas estratégias específicas. Em outras palavras, o direito à livre coligação é um direito fundamental.

Isto posto, é necessário compreender que o direito à livre coligação não depende de sua previsão expressa no artigo 17, § 1º, da Constituição Federal. Dessa forma, sua exclusão do referido dispositivo – além de inconstitucional, pois configuraria violação de cláusula pétrea, nos termos do artigo 60, § 4º, IV da Carta Magna – é inócua e insuficiente para fazer com que o direito à livre coligação seja extinto do nosso sistema constitucional.

*Guilherme Sena é Mestrando em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e assessor técnico da Liderança do PCdoB na Câmara dos Deputados