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Celso Lungaretti: O mundo está prenhe de revoluções

Os Bancos Centrais executam movimentos desesperados, tentando evitar que o colapso de grandes companhias arraste toda a economia para o buraco de 1929. Os investidores se refugiam em ativos menos inseguros. O crédito escasseia e encarece. Investimentos produtivos são adiados sine die. Já não se discute se haverá retração econômica no futuro imediato, mas sim a amplitude dessa retração.

Por Celso Lungaretti*

Existe até quem compare nossa situação atual à dos passageiros do Titanic, logo após o choque com o iceberg: o navio está afundando, mas ainda não nos demos conta.

A que se deve este tsunami que devasta a economia mundial, após tantos anos de crescimento significativo?

Os expertos sentenciam que os Bancos Centrais das nações desenvolvidas foram coniventes com operações mirabolantes, ultrapassando de tal maneira os ativos reais nos quais deveriam estar respaldadas que o desabamento do castelo de cartas era pura questão de tempo.

Mas, será que tudo se reduz mesmo a um mero desleixo das autoridades que deveriam evitar a transformação do mercado financeiro em cassino?

Ora, a alternância de fases de expansão e retração econômicas marca o capitalismo desde o seu início. Por que desta vez seria diferente? De onde os doutos economistas tiraram a idéia de que o crescimento agora seria ininterrupto? Isto me parece mais expressão de desejo do que análise isenta.

Segundo Marx, o pecado original do capitalismo é a mais-valia: como os assalariados não recebem de volta o valor total dos bens que produzem, estão impedidos de adquiri-los todos, daí o descompasso entre o estoque de produtos oferecidos e o poder aquisitivo dos consumidores.

Até a metade do século passado, isto se reequilibrava de formas dramáticas: desde as queimas de café para evitar a queda do preço internacional do produto (distribui-lo aos carentes estava fora de cogitação!) até as guerras, que geravam um mercado cativo para a produção excedente, na forma de armamentos.

Com o advento das armas nucleares, entretanto, os conflitos entre potências passaram a ter o pequeno inconveniente de poderem extinguir a espécie humana. Então, desde 1962, ano da crise dos mísseis cubanos, tais situações passaram a ser administradas com mais cautela. Os gigantes nunca mais se enfrentaram, passando a não intervir quando algum deles surrava um nanico da sua esfera de influência.

A desigualdade, entretanto, continuou caracterizando o capitalismo, com a agravante de que os formidáveis avanços científicos e tecnológicos das duas últimas décadas criaram plenas condições para proporcionar-se a cada habitante do planeta o suficiente para uma existência digna.

Em vez disso, o que houve foi um incremento ad absurdum das atividades parasitárias, totalmente inúteis para o ser humano, cuja expressão mais conspícua, claro, são os bancos, amos e senhores do capitalismo atual.

E, para que os bens e serviços continuassem sendo consumidos independentemente do poder aquisitivo insuficiente dos consumidores, expandiu-se a oferta de crédito também ad absurdum. Então, desde as nações até as famílias passaram a operar com as contabilidades mais insensatas, em que as contas nunca fecham e os débitos, impagáveis, são sempre empurrados para o futuro.

É sobre esse pano-de-fundo de artificialidade básica que se projeta a atuação dos grandes especuladores do mercado financeiro, cujo campo de ação foi enormemente ampliado pelo advento da internet.

Atribuir-lhes (ou às autoridades que não os policiaram suficientemente) a responsabilidade pela recessão anunciada é tão falacioso agora quanto, p. ex., na quebra da Bolsa em 1929. O nome do vilão sempre foi outro: capitalismo.

A indústria cultural, hoje totalmente a serviço dos poderosos, incute em seus públicos a noção de que a realidade presente é a única possível e as opções existentes são apenas as oferecidas dentro do sistema. Então, termos de conformarmo-nos com a etapa de vacas magras que se avizinha, como preço a pagarmos pela fase anterior, em que as vacas nem sequer foram realmente gordas, com o espetáculo do crescimento deixando muito a desejar…

Mas, salta aos olhos estarmos, isto sim, pagando pelas mazelas do capitalismo, que se torna mais nocivo à medida que aumenta o potencial (criminosamente desperdiçado!) para construirmos uma sociedade igualitária e livre, em que ninguém mais seja limitado pela necessidade.

Talvez o estímulo à diferenciação e à busca do privilégio tenha sido essencial no passado, como motivação para o homem dominar a natureza e alcançar a atual capacidade de geração de riquezas.

Hoje, entretanto, já temos tudo de que precisávamos. O que nos aflige não é mais a insuficiência de recursos, mas sim seu mau aproveitamento, com a desigualdade obscena condenando nações inteiras e parcelas da população de outros países a existências subumanas; e a prevalência de interesses particulares sobre o bem comum levando à dilapidação insensata dos recursos finitos do planeta.

Estamos recebendo mais um alerta de que o capitalismo, com sua irracionalidade intrínseca, torna-se cada vez mais uma força destrutiva direcionada contra a humanidade, podendo tanto infligir-nos a penúria, quanto fazer com que se abata sobre nós a fúria da natureza.

Mas, não há nenhum mandamento divino ou lei natural que nos obrigue a manter o rumo atual até o mais amargo fim. Tudo depende de vontade e consciência, corações e mentes. “Onde vivem os homens, a ajuda só pode vir dos homens”, disse o grande Brecht.

Observação

Se a algum leitor atento ocorreu já haver lido este texto, parabéns! Palavra por palavra, trata-se do artigo Pesadelo globalizado, que escrevi quanto da última crise capitalista, em setembro de 2008.

Novamente, a perspectiva é de uma recessão, que vai sendo imposta a país após país; e o fantasma a rondar o mundo, o de que ela evolua para uma recessão global e, pior ainda, para uma grande depressão.

E os Delfins Nettos da vida têm a desfaçatez de sustentar que as teorias econômicas marxistas caducaram! Pelo contrário, estão mais vivas do que nunca. Como eu já dissera em 2008, o que estamos vendo não passa das velhas crises cíclicas do capitalismo em versão século 21.

E, como o capitalismo está agora em estágio de putrefação avançada, o intervalo entre as crises já não é de 10 anos, como nos tempos de Marx, mas sim de três. Se as peças do dominó não caírem todas desta vez, quando será a próxima crise? Daqui a dois anos? Um ano? Seis meses?

O mundo está prenhe de revoluções.

*Celso Lungaretti é jornalista e escritor.

Fonte: Blog Náufrago da Utopia