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Crack: Câmara de SP debate internação compulsória para usuários

A prefeitura de São Paulo planeja adotar uma medida para internar compulsoriamente usuários de drogas que vivem na cidade, projeto semelhante ao que já vem ocorrendo no Rio de Janeiro. O debate, que vem gerando polêmica e divide a opinião de especialistas, médicos, defensores de direitos humanos, advogados e lideranças de movimentos sociais, durou cerca de quatro horas e contou com opiniões favoráveis e contrárias à proposta.

Por Fabíola Perez

cracolândia

O médico e diretor do programa de Orientação e Assistência a Dependentes da Unifesp, Dartiu Xavier da Silveira, alertou que é preciso enxergar além da proposta. “Os grandes defensores da internação compulsória são os que vão ter ganhos diretos com a internação compulsória. Há interesses escusos por trás”, alertou.

Silveira que integrou a mesa de debate organizada, nesta segunda-feira (15), pela Comissão de Direitos Humanos, Cidadania, Segurança Pública e Relações Internacionais da Câmara Municipal de São Paulo, afirmou que existe “um abuso de poder” por parte dos médicos envolvidos. “Não podemos chegar a uma medicalização de um problema social”.

Dartiu citou as dificuldades enfrentadas pela luta antimanicomial – contra o tratamento dado aos que sofrem de transtornos mentais e pela extinção de manicômios – como exemplo de interesses médicos por trás do problema. “Essa luta esbarrou aonde? No poder dos donos de hospitais psiquiátricos”, ressaltou.

“Precisamos contribuir para resolver o problema de saúde desses dependentes químicos. Eles não têm casa, não têm família, estão numa situação dramática nas ruas e precisamos buscar uma solução, que não é recolhê-los por meio de corporações policiais e colocá-los num depósito de gente”, disse o vereador Jamil Murad, presidente da comissão.

“Sou totalmente contrário a internação compulsória. Trabalho há 24 anos atendendo dependentes químicos e essa experiência me ajudou a acabar com alguns mitos. A literatura médica e a vivência científica mostra que 98% das pessoas internadas contra a própria vontade recai nas drogas”, relatou Silveira. Segundo ele, mesmo quando a internação é voluntária, o sucesso no tratamento não é garantido.

Para Silveira, a proposta, ainda em estudo pela Prefeitura de São Paulo, representa um retrocesso. “É preciso ter cuidado e não apenas retirar os dependentes químicos do campo de visão e jogá-los em um depósito”, explicou.

De acordo com o médico, outro equívoco é atribuir a questão da miséria social às drogas. “A droga não é a causa, é a consequência disso tudo. O que deve ser feito é um trabalho de resgate da cidadania, dar condições de vida minimamente decente a essas pessoas e, aí, o problema da droga vai se tornar em um problema secundário na maioria dos casos”, afirma.

Também presente a mesa, o membro da Associação Juízes para a Democracia, Luis Fernando Vidal, acrescentou que a medida fere um direito constitucional do usuário ou do dependente químico, o direito à autonomia. “Não se pode fazer o bem desrespeitando o direito a vontade de uma pessoa. Abordar questões relativas às drogas implica em colocar em discussão o próprio espaço público.”

Vidal contestou o argumento apresentado pelos defensores do projeto – de que o direito à saúde é mais importante que o direito à autonomia – e arrancou manifestações de concordância dos que estavam acompanhando o debate. “Parece-me que este é um tipo de argumento que relativiza direitos fundamentais para dizer que nenhum deles deve valer. Mas esta técnica está errada. A Constituição diz que você tem direito à moradia. Mas, alguma vez, alguém do Poder Público apareceu querendo executar um programa de habitação compulsória?”.

Ainda na esteira dos que se manifestaram contrários ao projeto, a doutoranda em psicologia social pela Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP), Juliana Graciani, destacou que o trabalho de enfrentamento às drogas deve envolver a formação e capacitação de profissionais que vão trabalhar com os dependentes. “O psicólogo, o assistente social e o enfermeiro não estão sendo capacitados de forma adequada para conhecer o marco legal, político e social dessa temática”, afirmou. “Recolher não é acolher. O atendimento deve ser feito com sentido e com significado, e isso não está ocorrendo nem na durante a formação profissional”, criticou.

Quem defende a internação compulsória

O promotor Eduardo Ferreira Valério declarou que há cerca de 30 dias a prefeitura procurou o Ministério Público para abordar a questão da internação compulsória. O objetivo é implantar em São Paulo um sistema semelhante ao que está ocorrendo no Rio de Janeiro. Segundo ele, a medida seria adotada tanto com crianças e adolescentes dependentes de drogas, como com adultos. “Esta questão foi discutida pelas promotorias envolvidas, mas o Ministério Público decidiu aguardar o projeto impresso e concreto para assumir uma posição: se somos contrários ou favoráveis àquilo que pretende a prefeitura”.

 Durante seu discurso, Valério ressaltou que o Ministério Público não considera a proposta inconstitucional, mas é contrário a qualquer iniciativa em que a internação seja o único meio a ser usado pela prefeitura no tratamento do dependente químico. “O Ministério Público não concordará com as internações compulsórias sem que haja um projeto completo, que contemple um tratamento amplo, sobretudo ambulatorial, e que propicie um projeto de profissionalização, renda e moradia e que se refaçam os laços parentescos”.

Segundo Rosangela Elias, coordenadora técnica de Saúde Mental da Secretaria de Saúde do município, é preciso entender a diferença entre as internações. “Tem a internação voluntária, a involuntária – que é quando o médico define que a pessoa necessita de internação, e a compulsória – que é aquela que é determinada por um mandado judicial, a partir de um laudo médico”, explicou.

De acordo com ela, todas as internações têm importância clínica e são um instrumento para que seja oferecido um tratamento de saúde aos pacientes. “Os resultados clínicos da internação voluntária são infinitamente maiores que a de outros tipos de internação. Mas temos que pensar na questão de proteção à vida e o resgate à saúde. Este é o olhar que temos que ter”, disse. A coordenadora defendeu, no entanto, que a internação não fere a legislação. “Esses três tipos de internação são preconizados dentro da legislação”.

Rosangela Elias declarou que nos últimos dois anos, quatro mil moradores de rua foram encaminhados para atendimento médico. Isso resultou em 1,7 mil internações, sendo que 111 delas foram involuntárias ou compulsórias. “A maior parte delas, de adolescentes. O que acontece, na maior parte das vezes, é que o adolescente procura ajuda. O médico avalia e o interna. A partir do primeiro dia, o adolescente ainda quer o tratamento. Já no segundo dia, vem a fissura, e ele não quer mais. Aí o médico atesta que ele precisa ficar mais algum tempo”, explicou.

Ao fim do debate, o vereador Jamil Murad (PCdoB), que no começo do debate afirmou estar aberto a opiniões, concluiu que “não há nenhum fundamento para a internação compulsória”. Após ouvir especialistas, Jamil concordou que a internação compulsória representa “uma volta ao passado”. Jamil afirmou será criado um grupo de estudos para voltar a estudar a questão. A ideia é que seja elaborado um projeto de enfrentamento às drogas na cidade e que ele seja depois encaminhado para o Ministério da Saúde.