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Índia vai digitalizar dados de 1,2 bilhão de habitantes

Ankaji Bhai Gangar, um agricultor de subsistência de 49 anos, permaneceu na fila em um vilarejo remoto da Índia até que, pela primeira vez na sua vida, ele olhou com olhos semicerrados o brilho suave de um monitor de computador.

Seu nome, data de nascimento e endereço estavam registrados. Um funcionário orientou os dedos calejados de Gangar até a superfície verde brilhante de um scanner para gravar suas impressões digitais. Ele olhou para o scanner de íris, na forma de binóculos, para capturar os padrões únicos de seus olhos.

Com isso, Gangar receberia um número de 12 dígitos, a primeira prova oficial de que ele existe. Ele pode usar o número, assim como sua impressão digital, para se identificar em qualquer lugar no país. Ele lhe dará acesso aos benefícios de bem-estar social, abrir uma conta bancária ou comprar um celular longe de seu vilarejo natal, algo que ainda é impossível para muitas pessoas na Índia.

“Quem sabe receberemos alguma ajuda”, disse Gangar.

Por toda esta grande nação caótica, funcionários estão criando aquele que será o maior banco de dados biométrico do mundo, uma coleção desconcertantemente complexa de 1,2 bilhão de identidades. Mas ainda mais radical que seu tamanho é a escala de sua ambição: reduzir a desigualdade que corrói a ascensão econômica da Índia, ligando digitalmente cada pessoa na Índia ao crescimento do país.

Por décadas, a vasta e ineficiente burocracia da Índia gastou bilhões de dólares tentando tirar as pessoas da pobreza. Mas grande parte do dinheiro é desperdiçada ou simplesmente acaba prendendo os pobres em aldeias como Kaldari, em um canto remoto do Estado de Maharashtra, no oeste, dependentes de benefícios locais que podem perder caso se mudem.

Agora o país está tentando algo diferente. Usando a mesma tecnologia poderosa que transformou a economia privada do país, o governo indiano criou uma pequena empresa minúscula, composta de administradores e programadores hábeis, para ajudar a transformar –ou contornar– a burocracia debilitante que é um legado de seu passado socialista.

“O que estamos criando é tão importante quanto uma estrada”, disse Nandan M. Nilekani, o magnata bilionário do software a quem o governo pediu para criar o banco de dados de identidades da Índia. “É uma estrada que, de certo modo, liga todo indivíduo ao Estado.”

O novo sistema baseado em números, conhecido como Aadhaar, ou fundação, seria usado para verificação da identidade de qualquer indiano no país em oito segundos, usando dispositivos manuais baratos ligados à rede de telefonia móvel.

Também pode servir como um atalho para desenvolvimento de uma cidadania real em uma sociedade onde a identidade é quase sempre mediada por um grupo –casta, parentesco ou religião. O Aadhaar pela primeira vez identificaria cada indiano como um indivíduo. A Índia pode ser a segunda economia que mais cresce no mundo, porém mais de 400 milhões de indianos vivem na pobreza, segundo números do governo.

Seus caros sistemas públicos de bem-estar social são tão ineficientes que depósitos ficam sobrecarregados de grãos que acabam apodrecendo, apesar dos níveis de desnutrição que rivalizam os da África sub-Saara, e grande parte deles são desviados para o mercado privado antes de chegar às bocas famintas. A tecnologia, acreditam seus defensores, poderia resolver esses problemas ao fornecer às pessoas uma forma de interagirem com o Estado, sem dependerem de autoridades locais, que são os principais porteiros para os serviços públicos.

Para construção do banco de dados, o governo indiano criou uma instituição híbrida altamente incomum: uma pequena elite de burocratas que está trabalhando com veteranos do Vale do Silício e as empresas de tecnologia mais respeitadas de Bangalore. Quando atingir seu pico, não mais do que poucas centenas de pessoas trabalharão no projeto e empresas privadas se encarregarão de grande parte do trabalho de cadastrar os cidadãos. Custa ao programa aproximadamente US$ 3 para emissão de cada número Aadhaar, disse Nilekani, e mais de 30 milhões já foram emitidos até o momento.

O processo é gratuito e voluntário, e o banco de dados de identidade da Índia será de uma ordem de magnitude maior do que o maior banco de dados biométrico existente no mundo, o do programa de vistos americano, que já conta com dados de aproximadamente 100 milhões de pessoas. Para o registro de todos os 1,2 bilhão de indianos, o sistema terá que coletar 12 bilhões de impressões digitais e digitalizar 2,4 bilhões de íris. É um projeto de proporções épicas –não diferente do desafio de governar a maior democracia do mundo.

Uma nova empresa em espírito

O projeto lembra o de uma nova empresa, porque o homem encarregado é Nilekani, cofundador da mais famosa nova empresa da Índia. Em 1981, ele levantou um capital de 10 mil rupias, algo entre US$ 1.100 e US$ 1.200, com seis colegas para abrir a Infosys, a gigante de terceirização. Dois anos atrás, quando o governo decidiu criar o banco de dados de identidade, Nilekani deixou o cargo de presidente da Infosys para supervisionar o esforço, abrindo um caminho incomum na vida pública indiana, do meio empresarial para o governo.

Mas uma profunda suspeita em relação ao empreendimento privado, resultado de décadas de políticas socialistas, permeia a vida pública. Os partidos políticos são intensamente hierárquicos e formados seguindo divisões familiares, religiosas e de casta, o que praticamente impossibilita que alguém de fora como Nilekani possa vencer uma eleição.

Mesmo assim, ele desejava servir de alguma forma, e sua chance surgiu quando o Partido do Congresso foi reeleito e formou uma forte coalizão de governo em 2009. Rahul Gandhi, o herdeiro da principal família política da Índia, interessado por tecnologia e um candidato potencial a primeiro-ministro, queria que Nilekani ingressasse no governo.

Inicialmente Gandhi pediu a Nilekani que transformasse a disfuncional burocracia da educação, segundo um alto funcionário do governo familiarizado com o pensamento de Gandhi. Mas Sonia Gandhi, a mãe de Rahul e líder do Partido do Congresso, juntamente com o primeiro-ministro Manmohan Singh, concluiu que essa decisão causaria alvoroço demais.

Quando o governo decidiu criar um sistema único de identidades, Nilekani se ofereceu prontamente para administrá-lo. Apesar de ocupar um cargo de nível ministerial, ele estaria encarregado de um órgão público pequeno e aparentemente misterioso. Ninguém notaria seu trabalho em um projeto revolucionário, concluíram os Gandhis e Singh.

“As pessoas não percebem plenamente o que pode ser feito com isso”, disse um alto funcionário do governo que trabalha no projeto de identidade, que pediu anonimato devido à amplitude do projeto ser um assunto delicado. “As pessoas não familiarizadas com a tecnologia não entendem quão grande isto é.”

A resistência

Sem causar surpresa, algumas pessoas veem a ideia de um banco de dados centralizado de identidades como sendo um pesadelo distópico. Defensores da privacidade argumentam que o governo o usará para rastrear cidadãos, uma preocupação séria em um país onde o governo realiza um vasto trabalho de interceptação de comunicação e vigilância na caça de terroristas potenciais.

A Índia carece de leis robustas para proteção da privacidade, apesar de Nilekani e outros pedirem pela aprovação de uma legislação rígida para regular o uso da informação coletada pelo governo. O banco de dados foi projetado para conter o mínimo de informação possível –apenas nome, data de nascimento, gênero e endereço. Quando alguém tenta confirmar a identidade de uma pessoa usando o número, o banco de dados fornece apenas uma resposta sim ou não.

Muitos críticos influentes do sistema de identidade argumentam que ele é caro –sua verba para o próximo ano fiscal é de US$ 326 milhões e o projeto levará uma década para ser concluído– e desnecessário, porque há modos mais fáceis de checar corrupção nos programas antipobreza. O Estado de Chhattisgarh, na região central da Índia, reduziu drasticamente a fraude e o desperdício em sua entrega de grãos subsidiados por meio de um sistema de cartões inteligentes.

Mas o projeto conta com um grau de apoio incomum das maiores autoridades da Índia. Quando o programa foi inaugurado, o primeiro-ministro Singh e Sonia Gandhi, a líder de esquerda do Partido do Congresso, estiveram na cerimônia. Vários membros influentes do Conselho Consultivo Nacional, uma espécie de minigabinete que aconselha Gandhi a respeito de políticas sociais, se mostraram profundamente desconfiados do projeto, mas ela os rejeitou.

“A sra. Gandhi normalmente consente com as discussões de vários assuntos que levantamos”, disse Harsh Mander, um ativista e membro do conselho. “Mas neste caso ela disse: ‘Não, nós vamos prosseguir com a ideia’.”

O homem invisível

Sob uma ponte próxima da margem fétida do Rio Yamuna, à sombra de Nova Déli, os moradores de rua faziam fila para serem contados.

Mohammed Jalil, um puxador de riquixá vestindo sua melhor camisa, com cabelo recém lavado e bem penteado, se sentou de modo desconfiado atrás da tela do computador, aguardando para se registrar para obtenção de seu número Aadhaar.

Apesar já morar em Déli por mais da metade de sua vida, Jalil pode não existir. Ele é um morador de rua. Ele não tem conta bancária, o que dificulta economizar dinheiro. Quando um de seus filhos adoece, ele toma um empréstimo junto a um agiota a uma taxa de juro exorbitante. Pessoas pobres como ele têm direito a ajuda para alimentação, moradia e atendimento de saúde, mas ele não tem acesso a elas.

Jalil espera que o Aadhaar permita a ele abrir uma conta bancária. Ele poderia conseguir uma carteira de motorista e um celular.

“Isso me dará uma identidade”, ele disse, gesticulando para o computador onde tinha concluído sua inscrição. “Ele mostrará que sou um ser humano, que estou vivo, que vivo neste planeta. Ele provará que sou indiano.”

O número de Jalil ainda não chegou, mas ele está esperando.

Publicado originalmente no The New York Times.