Leon Karlos: A greve das federais e a negação inconsequente ao Governo Dilma

Grande parte das instituições federais de ensino, entre universidades e institutos tecnológicos, pararam suas atividades. Nas UF's, professores ainda ministram aulas, mas os técnicos-administrativos já aderiram à greve.

Estima-se que há mais de cem mil grevistas entre os servidores federais do campo da educação. É o maior movimento de greve desde 2005. A pauta de reivindicações dos servidores é justa e necessária, a postura do governo até aqui tem sido dúbia, enquanto investe na educação, por outro lado tem restringido o diálogo com os sindicatos. Na internet, disseminou-se a tag #FederalEmGreve, com todos os seus impactos, positivos e negativos. Um impacto positivo é distribuir por aí a notícia de que algo está acontecendo, impedindo, assim, que a greve se restrinja aos grevistas, nos muros fechados de suas instituições. Um impacto negativo – típico de instrumentos como o Twitter – é a ausência de reflexão quanto às circunstâncias que estão postas, o que leva o público a procurar o diagnóstico mais fácil: o de que o Governo Dilma é nocivo para o país. Vamos analisar algumas nuances, antes de nos atermos a conclusões precipitadas, sobretudo tão precipitadas como afirmar isso. À margem do que possa parecer, contudo, esse texto não se presta a ser contrário a greve, mas apenas a discutir elementos políticos e históricos que estão incluídos nela.

O povo brasileiro vive, no âmbito político e econômico, uma defensiva histórica que vem desde os anos 1990, quando as inconsequentes privatizações, desmandos, conchavos, compras de votos por emendas constitucionais, agressão do governo ao funcionalismo público e o sucateamento de escolas técnicas e universidades foram aplicadas sem a menor cerimônia, gerando uma herança que, não nos enganemos, até hoje se faz presente. Os protagonistas daqueles desmandos, hoje fora do poder central da República, continuam à espreita, mantendo a firma perspectiva de voltar à Presidência e recolocar seu projeto de entreguismo em prática. Como reagir diante dessa situação?

Neste ponto, as esquerdas entraram em conflito. Enquanto havia uma oposição unificada no país até a Era FHC, a ascensão do Lula em 2003 gerou um conflito que até então inexistia. Uma crise de identidade e de reflexão em sindicatos e movimentos sociais, que era, na verdade, uma crise teórica, um pegar-desprevenido a que muitos foram submetidos: como deveriam, os sindicatos, DCE's, grêmios, associações de moradores, organizações camponesas e outras entidades representativas, agir diante de um governo que agora era seu aliado? Enquanto antes havia sempre um discurso de oposição ao governo, onde todos eram, em massa, contra as medidas postas, como agora atuar diante de um governo que se apresentava como representante daquelas classes outrora excluídas do processo político? Continuar sendo contra? Ser a favor? Manter independência – é possível?

Algumas organizações não compreenderam bem qual a tática correta a ser aplicada neste momento. O Governo Lula – que não era um governo somente da esquerda, mas sim de coalizão, trazendo, inclusive, em seu seio, elementos retrógrados da política brasileira – nos provou que não é somente a via eleitoral, pura e simplesmente, que deve guiar as transformações de que o país precisa. Não bastava o Lula vencer a eleição para que medidas fossem tomadas em favor dos necessitados, em favor do povo brasileiro. Os que não compreenderam isso, passaram a negá-lo. Chamaram-no de traidor, de inimigo dos trabalhadores. Utilizaram-se do discurso vago de que o poder acometeu aqueles que lá chegaram: o presidente e seu ministério, seus líderes no parlamento. Não bastava que muitos tivessem uma digna biografia de atuação ao lado do povo; no Ministério de Lula (e até hoje, no de Dilma), estão ex-líderes do MST, da UNE, da CUT e de outras centrais, muitos ícones do enfrentamento ao neoliberalismo irresponsável dos anos 90. Não bastava. Ainda assim, eram tidos como uma contraparte. E os que o negavam, passaram a fazer um jogo de oposição. O problema é que ser oposição ao Governo Lula não significava defender um governo melhor, mais à esquerda. Pelas circunstâncias dadas, ser oposição ao governo significava fazer uma campanha indireta pela volta daqueles que foram alijados do poder pelo povo – o tucanato, o PFL (hoje DEM), os herdeiros da ditadura militar, os entreguistas, prontos como sempre estiveram a obedecer as ordens de Washington e continuar a permitir que o Brasil seja o país que tira os sapatos quando entra no território ianque.

Em todos os momentos, um olhar dado acerca do momento em que vivemos não pode se restringir somente a ele. É preciso que tenhamos um parâmetro histórico do que viveu o País para compreender o potencial e as limitações do Brasil de hoje. Nesse momento, é conveniente lembrar de um lema que os chilenos utilizavam nos anos 1970, em defesa do governo de Salvador Allende: és un gobierno de mierda, pero és mi gobierno (é um governo de merda, mas é meu governo). Essa inusitada sentença é mais profunda do que se pode imaginar à primeira vista. Os chilenos – como nós, brasileiros – queriam que seu governo transformasse o país de uma hora pra outra. Não bastava que existissem contratos, pressões internas e externas, classes sociais que queriam manter seu status quo, uma mídia que se postava ativamente contrária ao governo. Queriam que Allende fizesse milagre, mas ele não fez, nem poderia fazer. Contudo, os chilenos compreendiam o momento histórico vivido. Sabiam que o governo, apesar de seus lapsos, deveria ser criticado, mas jamais negado. Sabiam que aquele era o melhor governo possível. Era o governo que agregava os maiores quadros do país, os mais progressistas, mas que recebeu de bandeja para si uma herança maldita de séculos de colonialismo. Tanto os chilenos estavam certos em defender seu governo que, quando ele foi derrubado (não no voto, mas nas armas, nos bombardeios), o Chile viveu décadas de repressão, torturas e mortes que até hoje tem seus efeitos sendo sentidos (um exemplo são os protestos que hoje estão ocorrendo por lá).

Não há exagero em ligar aquele momento histórico vivido no Chile ao que vivemos hoje no Brasil. Não é preciso listar aqui medidas aplicadas por este governo para defendê-lo. Desnecessário citar as políticas afirmativas, a reestruturação das universidades e da rede tecnológica, o estancamento das privatizações, a postura altiva do país no âmbito internacional, a promoção de políticas públicas até para os catadores de lixo. Tudo isso é pouco, tão pouco que não deixa de ser um governo de merda. Mas é nosso governo; tão nosso que pela primeira vez o povo brasileiro é recebido em seu palácio, pela primeira vez essa instituição chamada Presidência da República marca sua presença em eventos de massa, de estudantes, trabalhadores do campo e da cidade.

A incompreensão de alguns setores da esquerda, sobretudo aqueles encastelados nas universidades federais, não vem por acaso. Enquanto parte da parcela progressista do país atualizou seus métodos de atuação, seus programas e perspectivas, alguns continuaram a ver a política como um objeto maniqueísta.

Voltando à questão

Por que fazer todo este panorama para depois adentrarmos na questão da greve em si? Porque o que aqui se pretende não é apenas tecer uma nota crítica ou positiva dela, não é apenas mencioná-la, destacá-la, mas, sim, analisá-la, compreender seus potenciais e suas contradições. Entender um pouco desse histórico nos oferece parâmetros para compreender a natureza desse movimento, e compreender a natureza, a essência, é algo que não podemos conseguir analisando apenas sua aparência, ou seja, apenas a forma como ele se manifesta hoje, suas pautas, etc.

Vamos elencar alguns pontos críticos a respeito do movimento que ora está sendo tocado pelos sindicatos e negligenciado pelo governo:

A rodada de negociações não havia acabado antes da deflagração da greve. O sindicato nacional deflagrou a greve antes que a rodada de negociações com o governo tivesse sido encerrada. Ao contrário do que se diz – que o governo se nega a receber -, na verdade o governo vinha sim recebendo as centrais; há inclusive vídeos gravados das próprias centrais que provam isso. A questão é que as contrapropostas do governo não satisfaziam aos que reivindicavam. Então, a questão não é silêncio do governo ou a não-recepção deste, e sim o fatod e a proposta do governo ser inviável. A partir do momento que a greve é deflagrada, contudo, a rodada de negociações não pode mais ser mantida no mesmo ritmo, e o governo – como era de se esperar – não aceita dialogar nessas condições. É certo? Não. É errado? Deveria ser, mas demarca um erro de cálculo dos sindicalistas. Ao invés de primar pelas ações de massa, prefere partir direto para a paralisação das atividades.

O estudante não pode ser refém da greve. A greve em si não destaca nenhuma mudança na natureza de qualquer movimento. Ela presume, na verdade, a paralisação das atividades laborais para que todos os trabalhadores se dediquem única e exclusivamente à luta que está sendo encampada. O discurso da greve não pode ser a própria greve. Deve ser as atuações de massa, agregando estudantes e comunidade em seu apoio. Usar o simbolismo da greve, com suas consequências negativas, como o discurso preponderante só fará o movimento morrer de inanição, meses depois.

O governo não pode ser visto como inimigo. Algumas das discussões paralelas à greve têm passado irresponsavelmente pela negação ao Governo Dilma, como s o caráter do governo fosse agressivo para com os servidores, e não um governo que prima e defende o serviço público por seu caráter estratégico. Logicamente, o governo não é perfeito, e há pressões de lado a lado. Os conservadores fazem do lado de lá, os progressistas fazem do lado de cá. É isso que a greve tem que ser: um movimento de pressão para quer o governo atenda uma categoria que sempre esteve em seu apoio. Negar o governo, querer transformar a Dilma em vilã, em inimiga do funcionalismo público é a tática mais incorreta possível. Chega a ser inconsequente e inadmissível, diante da correlação de forças posta.

O sindicato precisa atualizar seus métodos e seu discurso. As forças que dirigem os sindicatos que estão em debate nesse texto se autodenominam oposição de esquerda ao governo Lula/Dilma. Mas existe oposição de esquerda no Brasil? Por que ela está encastelada em alguns sindicatos mas não se afirma enquanto uma corrente representativa, por que não consegue espaço político maior do que as migalhas que lhes cabem? Oposição de esquerda no Brasil é uma lenda (da qual falarei mais em outro artigo), mas essa lenda ainda tem respaldo justamente nesses setores, que, não por acaso, têm um histórico de se fecharem em si próprios, por diversas circunstâncias. Essa pretensa oposição não cresce porque seu discurso – um discurso maniqueísta, por vezes anticientífico – não serve para a atuação política no momento presente. Ser oposição de esquerda a FHC é fácil. Sê-lo a Lula e Dilma não; há muitas nuances a se superar. Na medida em que este é um governo dirigido por parte da esquerda consequente, qualquer discurso que se pretenda ir mais à esquerda tem que resolver contradições que dariam um almanaque de reflexões. O PSTU, PSOL e forças afins (que estão guiando esta greve) ainda não conseguiram, e não parecem que vão conseguir.

Os erros das últimas greves devem ser corrigidos. 2005 e 2006 foram os últimos anos de greve nos institutos federais, então Cefets. Desde antes de ela ser deflagrada, o movimento estudantil já apontava o caráter político daquela greve, de maneira que fizeram pressão contrária à sua deflagração que durou mais de dois meses; toda semana, havia assembleia do sindicato para convocar greve, e em toda semana a proposta era derrubada. A greve somente foi iniciada quando o próprio movimento estudantil decidiu dar uma carta de crédito. Mas não adiantou: tal como era previsto, a greve morreu de inanição, durou mais de 100 dias e o resultado foi um termo de conduta que o próprio sindicato desrespeitou para lançar a greve no ano seguinte, com um discurso surreal de que o governo não havia atendido ao acordado, quando na verdade o prazo ainda estava em vigor. Naquela ocasião, eu – diretor de assuntos institucionais do DCE – disse, invocando inclusive Marx: "A história acontece duas vezes; a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Até aqui, em pequena escala vemos isso. A greve de 2005 foi uma tragédia, comparando os ganhos com as consequências. A deste ano, por sua vez, não passa de uma farsa. Uma greve com conteúdo político e eleitoreiro, que se aproveita do moribundo discurso do ano passado para se sustentar". Esse diagnóstico estava tão correto que a greve não durou nem três semanas, pois não conseguiu qualquer respaldo.

A greve não pode ter caráter político. Essa recomendação é dúbia em sua essência. Todo movimento social, afinal, é também um movimento político. Mas a ressalva se deve ao uso pragmático desse movimento político, em geral comum em anos eleitorais, que não é o caso deste ano, mas que também tem um processo eleitoral em vista: é ano de eleição para reitorias e direções dos IF's, de maneira que tais atos podem ser demarcações de espaço das seções sindicais, que geralmente lançam candidatos aos cargos eletivos. É preciso compreender até onde a greve mantém o elemento motivador classista, para que não se transforme em oportunismo.

A greve deve tomar as ruas. Essa é a maior crítica aos movimentos de greve que ocorrem na educação federal. Ela não pode se restringir à atuação interna, às assembleias e aos cronogramas convencionais que buscam apenas manter os grevistas próximos, mas não avançar na construção de um movimento massivo e que alcance repercussão. Enquanto a greve se restringe aos muros de cada instituição, ela se torna um engodo, e não um impulso para as conquistas. A mudança só se conquista nas ruas, nas lutas, nas manifestações do povo de apoio ao movimento e de pressão a um governo que tem condições de jogar do mesmo lado, mas que tem até aqui sofrido mais pressão do outro.

A greve deve centrar sua luta na essência do problema. O problema, por assim dizer, do Governo Dilma é o mesmo do Governo Lula; a manutenção de uma política macroeconômica que persiste vendo na elevação da taxa de juros e na contenção de investimentos o controle da inflação. A greve deveria encampar a luta pela mudança dessa política, exigindo que o governo se paute pelos esforços primando a elevação do consumo do brasileiro e os investimentos do Estado na infraestrutura. Somente isso fará com que a expansão das universidades e dos institutos federais esteja casado com a valorização do profissional, seja o professor, sejam os servidores técnicos-administrativos.

Enquanto a greve e os grevistas apontarem o movimento como um duelo dos certos contra os errados, enquanto tratar o governo como inimigo, e não como um braço aliado no espaço institucional, incorrerá no mesmo erro que caíram as entidades que perderam respaldo de sua própria base. A pressão deve existir, mas não deve se transformar em oposição. A greve de hoje não pode ser usada como objeto de debate em 2014, senão ela terá perdido seu cunho de classe e se transformado nisso, numa negação ao Governo Dilma que não surtirá efeito para uma candidatura dos trabalhadores nas próximas eleições, e sim será apenas munição para a direita ânsia de poder voltar ao Planalto e aplicar seu programa – este sim seria um retrocesso para todos os brasileiros, para o serviço público e para nosso próprio desenvolvimento enquanto nação.
 

                            *Leon Karlos Nunes é diretor de comunicação da União da Juventude Socialista e Coordenador de Formação do Diretório Central dos Estudantes da UFRN