Sem categoria

Jaime Sautchuk: Vladimir Carvalho e o rock em Brasília

O festival de cinema de Brasília, este ano na sua 44ª versão, foi aberto com um documentário do cineasta Vladimir Carvalho, com título “Rock Brasília – Era de Ouro”. O filme reafirma a importância cultural da Capital Federal e resgata momentos de bandas que, depois, ganharam destaque nacional e até mundial.

Por Jaime Sautchuk

Paralamas do Sucesso, Legião Urbana, Capital Inicial, Plebe Rude e tantas outras. Brasília, aliás, é um celeiro de artistas musicais, não só no rock. É difícil, por exemplo, ver algum grupo de choro no Brasil que não tenha alguém formado na escola do Clube do Choro de Brasília, criada por Reco do Bandolim ainda na década de 1990.

Já escrevi bastante sobre esse tema, inclusive na revista Afinal, numa matéria de 12 páginas, com o título “Explosão do Rock em Brasília”, anos atr’as, e conheço o trabalho de Vladimir. O que ele fez agora, em verdade, foi pegar arquivos que ele tinha, com entrevistas com Renato Russo e muitos outros, lá no começo, tudo em 35mm, e montou um belo documentário.

O filme estará nos cinemas e em outros meios a partir de agora. Mas, o que eu queria mesmo era falar de Vladimir. Por isso, reproduzo um perfil dele, que escrevi para o jornal “O Pasquim” há alguns anos:

Vladimir Carvalho: um cineasta velho de guerra

Ao filmar, agora, a história do escritor José Lins do Rego, Vladimir Carvalho volta à temática nordestina, como um guerreiro, um eterno militante do cinema. Assim, ele, que é o grande nome de Brasília no cinema, reencontra o homem nordestino, temática que o consagrou nacionalmente como cineasta.

Vladimir é a cara de Brasília, mas é, também, a mais pura imagem do Nordeste. Essa dualidade, refletida em sua densa obra, confunde-se com sua própria trajetória pessoal. Uma trajetória em que vem tangendo sonhos e espalhando rastros desde a década de 1950, quando deixou o interior da Paraíba.

O seu mais notável filme (até agora) talvez seja Conterrâneos Velhos de Guerra, cuja versão final é de 1992, justamente porque une essas duas faces. É a saga da construção de Brasília, na visão dos operários, daqueles que não estavam nas páginas de jornais, nem nas festas da novíssima capital. E que eram, na maioria, nordestinos.

Os filmes de Vladimir têm o tom da denúncia, retratam realidades amargas, histórias duras, injustiças. Mas não ficam na superfície. Vão fundo, lá dentro da alma das pessoas cujo retrato nos mostra, e consegue fazer delas personagens de suas próprias vidas. Seus documentários parecem ficção.

Aliás, na juventude, quando lia e debatia a Revista do Cinema, editada em Belo Horizonte (BH), ele acreditava que o verdadeiro cinema era o de ficção. Até que, em 1956, numa viagem a Recife (PE), assistiu ao Homem de Aran, do legendário documentarista norte-americano Robert Flaherty. E mudou de idéia: poderia haver arte em documentários.

Essa descoberta ficou martelando em sua cabeça, mas ele seguia trabalhando como jornalista na imprensa paraibana. Até que, em 1960, foi protagonista de um dos momentos históricos do cinema brasileiro. Escreveu o roteiro do longa Aruanda, filme dirigido por Linduarte Noronha, e tido como a obra que inaugurou o Cinema Novo.

Ainda na Paraíba, já como diretor, em 61, rodou o curta Romeiros da Guia, que mostra uma romaria anual dos pescadores de João Pessoa. No ano seguinte, decidiu se mudar para Salvador (BA), e ingressou no curso de Filosofia, onde conheceu Caetano Veloso, seu colega de curso.

Salvador era um burburinho em todas as artes, mas em especial no cinema. Ali, havia um forte movimento, liderado por Glauber Rocha, e Vladimir já chegava com Aruanda no currículo, o que o colocou na roda de imediato. Passou a integrar o Centro Popular de Cultura, da UNE – secção Bahia.

O CPC resolveu fazer um filme sobre a morte de João Pedro Teixeira, um líder das Ligas Camponesas que havia sido assassinado. Era Cabra Marcado Para Morrer, que seria dirigido por Eduardo Coutinho, com Vladimir como assistente de direção.

O filme começou a ser rodado no Pernambuco, com apoio com o então governador Miguel Arraes, mas foi interrompido pelo golpe militar de 1964 (e foi realizado em 1980). A permanência em Salvador ficou difícil, e Vladimir foi para o Rio de Janeiro, onde foi assistente de direção em Opinião Pública, de Arnaldo Jabor, com quem trabalhou em outros filmes.

Em 65, voltou para a Paraíba e retomou o jornalismo, como meio de coletar matéria-prima para novos filmes. Filmou o curta A Bolandeira, sobre os engenhos de cana à tração animal, e começou a preparar seu primeiro longa solo, O País de São Saruê. Era a estética da seca levada para a tela com uma carga de poesia e realismo que incomodava.

Com poucos recursos financeiros, dificuldade que o persegue até hoje, Vladimir levou quase quatro anos para chegar à versão final do filme, em 35 mm. A obra foi inscrita e programada para o Festival de Brasília de 1971 – mas teve sua exibição proibida pelos poderosos de então.

A essa altura, ele já morava em Brasília. No ano anterior, a convite do fotógrafo Fernando Duarte, ele foi parar na Universidade de Brasília (UnB), da qual virou professor. Eles recriaram o curso de Cinema, que ali existira antes do golpe militar (foi o primeiro do Brasil), mas a empreitada durou apenas dois anos – o suficiente para iniciar a formação de gente como Tizuka Yamazaki.

A causa do fechamento era o tipo de produção que começava a nascer ali. Já no ano que chegou, Vladimir dirigiu Vestibular 70, documentário que revelava as injustiças que marcam o caminho da juventude brasileira à universidade. Nascia, porém, seu encantamento por Brasília – e ele resolveu colocar seu talento a serviço da reconstrução histórica e, assim, ajudar a construir a nova Capital.

Voltou-se para as origens da ocupação do Planalto Central, filmando, em 74, Vila Boa de Goyás, um precioso curta sobre a antiga capital de Goiás. Em 79, dirigiu Brasília segundo Feldman, reproduzindo, de modo criativo e forte, a obra do artista plástico Eugene Feldman. E Perseghini, relato de um massacre de operários praticado pela mal-afamada Guarda Especial de Brasília (GEB), na época da construção.

Há alguns anos, Vladimir concluiu o longa /68 (“Barra-meia oito”), que relembra os episódios de 1968, na UnB, com o cerco policial, prisões e violências. Este, como vários outros de seus filmes, foi premiado em inúmeros festivais e por entidades ligadas à defesa dos direitos humanos.

Entre as aulas na UnB, em disciplinas relacionadas com o cinema, que manteve por 30 anos, Vladimir insistiu em falar do Nordeste e fez vários outros curtas. Agora, volta à carga, filmando aos poucos, com paciência, a biografia de Zé Lins do Rego. E assim volta a Itabaiana (PB), onde nasceu, em 1935. Remexe o baú da memória e a sua própria história.

Seu pai, Luiz Martins de Carvalho, era moveleiro de ofício, artista plástico amador e comunista de carteirinha. Ele havia sido colega de escola de Zé Lins e, à noite, lia para os três filhos obras do amigo escritor. Vladimir herdou do pai a convicção política (“fui do Partidão desde criança”, lembrava ele semana passada) e a paixão por Zé Lins.

Em sua casa, na histórica avenida W-3, em Brasília, ele armazena documentos, equipamentos e fotos que contam a história do cinema na Capital. Sua casa inteira é o Memorial do Cinema Brasiliense, um museu que presta homenagem a grandes nomes, como Paulo Emílio Salles Gomes e Nelson Pereira dos Santos, que coordenaram o primeiro curso da UnB, ou a simples cineastas amadores. “Guardo isso até que possa doar a alguma cinemateca que venham a criar”, diz.