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José Mojica Marins e a evocação do macabro com Zé do Caixão

Sentado num sofá na sala de estar de seu modesto apartamento em São Paulo, usando shorts e chinelo, José Mojica Marins parecia inofensivo. Ele é gentil e educado, e nada sugere que tenha feito uma carreira escrevendo, atuando e dirigindo filmes de horror provocativos com títulos como “Delírios de um Anormal”.

Mas o alter ego de Mojica no cinema, Zé do Caixão, um coveiro louco e sádico que sempre aparece vestido de perto, com chapéu, capa e terríveis unhas compridas, é totalmente outra história. Seu comportamento extremo e olhar demente, que começaram com um par de filmes preto-e-branco nos anos 60, “À Meia-Noite Levaria Sua Alma” e “Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver” – que terão versões estendidas lançadas no ano que vem em DVD com novas legendas, impressões melhores e material suplementar – tornaram-no um ícone cult para fãs e criadores do gênero de horror em todo o mundo.

Alguns admiradores veem Mojica, que dirigiu, escreveu e atuou em mais de 50 filmes, como uma espécie de Roger Corman sul-americano, um diretor de filmes B que fazia referências a Nietzsche e Dante. Outros veem seu trabalho como um verdadeiro exagero – mais na tradição de Ed Wood e “Plano 9 do Espaço Sideral” do que Luis Buñuel ou John Waters – ou simplesmente trash.

“Sou original, diferente de todos, mas é um caminho difícil”, diz Mojica. “Sei disso porque por causa de Zé do Caixão eu sou considerado louco, blasfêmio, e alguns críticos cospem em mim, mas eu mantive minha independência. Não sou ligado nem devo nada a ninguém.”

Mojica nasceu em São Paulo, a maior cidade da América do Sul, numa sexta-feira 13 em 1936, de uma família de imigrantes espanhóis. Seus pais eram artistas de circo que, cansados da vida na estrada, tornaram-se gerentes de um cinema, onde Mojica observava atentamente todos os filmes que eram exibidos, entrando sorrateiramente na sala de projeção para assistir àqueles que seus pais não queriam que ele visse.

“Sabe o menino no filme italiano 'Cinema Paradiso'?”, perguntou, em português. “Bem, eu vi o filme, e disse: 'Jesus, esse menino é igualzinho a mim'. Era a minha vida. Não tinha um filme que eu não assistisse.”

Como filho único, ele ganhou sua primeira câmera quando tinha oito anos e nunca pensou em nada a não ser uma vida no cinema. Sua grande mudança aconteceu quando ele comprou uma sinagoga abandonada e a transformou num estúdio e escola, onde treinava atores e técnicos.

Tanto “À Meia Noite Levarei Sua Alma” e “Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver” foram em parte filmados aqui, com cenas que mostravam olhos sendo cortados e cobras e outras criaturas terríveis subindo nos rostos das atrizes; filmes posteriores mostravam até canibalismo. Mas o Brasil vivia uma ditadura militar de direita, então o olhar excêntrico de Mojica e suas atividades levantaram suspeitas: em nome da autenticidade, ratos, aranhas e escorpiões andavam livres pelo estúdio, e episódios nos quais atores ou membros da equipe morreram durante a produção (embora as mortes não estivessem ligadas às filmagens) aumentaram sua reputação de macabro.

“A polícia pensava que tudo era uma fachada para esconder terroristas, e foi difícil tirar essa ideia da cabeça dela”, lembra Mojica. Mas seus maiores problemas eram com os censores do governo, que estavam chocados e enojados com sua mistura de sangue, sexo e blasfêmia, talvez mais notavelmente com uma cena de “Levarei Sua Alma” que mostra Zé do Caixão comendo carneiro enquanto zomba de uma procissão de Sexta-feira Santa.

“Este filme é de um mau gosto terrível, usa e abusa de agressão, tortura, sexo e violência extrema”, reclamou um censor num relatório que o escritor e diretor Andre Barcinski obteve para sua biografia de Mojica, “Maldito: A Vida e o Cinema de José Mojica Marins”. Como resultado, vários de seus filmes tiveram que ser “mutilados”, como diz Mojica, para poderem ser lançados; um deles foi proibido, e ele foi proibido de começar a filmar outro.

Falido e sem apoio de produtores para financiar seus projetos que corriam o risco de serem proibidos, Mojica foi obrigado a deixar de lado seus roteiros e se tornar um diretor contratado. Ele inicialmente fez faroestes de baixo orçamento, ficção científica e aventuras, mas no final dos anos 70, foi para a pornografia leve, fazendo filmes como “A Virgem e o Machão”, sob o pseudônimo J. Avelar. Quando até essas oportunidades secaram, ele trabalhou como mestre de cerimônias em festas e bailes.

“As pessoas o confundem muito com seu personagem, e isso é culpa dele”, diz Barcinski, que também é codiretor do documentário “Maldito: O Estranho Mundo de José Mojica Marins”. “Ele o usou para ganhar a vida por 20 ou 30 anos, e isso o torna um ímã para todo tipo de pessoas estranhas sempre que ele está num lugar público.”

Ao longo dos anos, Mojica também se enveredou pelas histórias em quadrinhos e pela televisão, como apresentador de programas com nomes como “Além, muito além do além”. Agora ele é apresentador de um programa de entrevistas semanal orientado para o horror chamado “O Estranho Mundo de Zé do Caixão” num canal a cabo brasileiro, mas ele admite que é desesperançosamente incompetente com seus negócios, então ele nunca ganhou muito dinheiro com nenhuma das suas empreitadas.

Mojica parecia destinado a permanecer na obscuridade, mas a tecnologia e a globalização eventualmente o resgataram. À medida que os filmes de Zé do Caixão se tornaram disponíveis, primeiro em VHS e depois em DVD e no YouTube, inquisitivos fãs do horror fora do Brasil o descobriram e, a partir de meados dos anos 90, começaram a convidá-lo para festivais de cinema na América do Norte e Europa, onde ele aparecia vestido a caráter e invariavelmente causava uma forte impressão.

“Não havia ninguém parecido com ele nos filmes de terror americanos”, explicou Michael Gingold, gerente editorial da Fangoria, uma revista líder na cobertura do gênero. “Ele conquistou muita atenção porque esses filmes eram mais extremos do que muitos dos que foram feitos nos EUA na mesma época, e Zé do Caixão era uma figura única, um precursor de personagens como Freddy Krueger e Jason, uma vez que era um ser humano que escolhia fazer o mal, e não um monstro como Frankenstein ou Drácula, por quem pode-se sentir pena. Então houve uma sensação de grande surpresa que uma rica coleção de filmes ainda não havia sido descoberta.”

Mojica disse que o jeito diferente do personagem Zé do Caixão surgiu para ele num “pesadelo horrível e violento” no início dos anos 60. Naquele ponto ele havia filmado alguns dramas e filmes de cowboy, com títulos como “Meu Destino em Suas Mãos” e “O Destino do Aventureiro”, mas o sonho fez ele perceber que o Brasil não tinha uma tradição de filmes de terror e que ele poderia facilmente transplantar o gênero dos castelos e florestas da Europa para as praças e ruas conhecidas do público que ele queria atrair.

“Eu fui levado ao cemitério para ser enterrado, mas ainda estava vivo”, diz Mojica, lembrando-se do pesadelo. “Lembro que eu estava usando roupa inteira preta, então comecei a filmar assim.”

A outra marca registrada do personagem são suas unhas impossivelmente longas. Mojica disse que de 1964 a 1999 ele não cortou suas unhas nenhuma vez, de forma que “no auge, elas tinham quase 90 centímetros de comprimento, com curvas que faziam lembrar macarrão enrolado”. Desde então ele guarda suas unhas em casa, colando-as toda vez que entra no personagem.

Zé do Caixão sempre teve uma pelo forte para os músicos, especialmente as bandas de punk e heavy-metal. Os Ramones eram fãs tão dedicados que durante uma turnê pelo Brasil, o guitarrista Johnny Ramone deu a Mojica uma jaqueta de couro autografada pelos quatro membros da banda como demonstração da estima do grupo. Membros do Cramps também procuraram Mojica quando sua agenda de turnê os levou para São Paulo, e o baterista da banda britânica Horrors até adotou Zé do Caixão como seu nome artístico.

No mundo do heavy-metal, o discípulo mais conhecido de Mojica talvez seja o cantor e diretor de cinema Rob Zombie, que usou diálogos de “O Despertar da Besta” na música “I, Zombie” do White Zombie e inseriu tributos velados a Zé do Caixão em seus próprios filmes. Grupos como Sepultura, Necrophagia e Faith No More também escreveram músicas que se referem, direta ou indiretamente, aos filmes de Zé do Caixão.

“Todos os personagens de terror vão contra a moral vigente, mas parte do apelo de Zé do Caixão é que ele se põe a atacar e desmembrar ativamente os valores sociais e religiosos tradicionais”, diz Gingold. “Então não é uma surpresa que as bandas de punk e metal, que normalmente fazem a mesma coisa, gostem dele.”

Em 2008, Mojica foi finalmente capaz de filmar “Encarnação do Demônio”, que ele havia concebido há mais de 40 anos como parte final da trilogia de Zé do Caixão. Com um orçamento de US$ 2 milhões – as partes anteriores da trilogia haviam custado menos de US$ 20 mil cada – o filme, que recentemente ficou disponível numa edição combinada de DVD e Blu-ray, provou ser tão sangrento e deliberadamente ofensivo como qualquer outro que ele já fez.

“Ele estava com a ideia de lançar um filme muito brutal e perturbador”, diz Dennison Ramalho, que escreveu o roteiro com Mojica. “Ele estava muito irritado e ressentido, cheio de fúria, por ter esperado todos esses anos para que o filme tomasse vida, então queria fazer um filme mais chocante que os anteriores. Ele continua rompendo limites.”

Fonte: The New York Times