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Alnef: a esquerda africana desbrava seu caminho de luta

Há muita coisa nos ares africanos além dos aviões da Otan que chacinaram o povo líbio. Neste domingo (27), em Bamako, Mali, os representantes de 19 partidos de 15 países da África concluíram, num clima unitário e combativo, a Conferência do Alnef – sigla em inglês do Fórum da Rede de Esquerda Africana. No último dia de debates, um espantoso testemunho de trabalhadores e mulheres pôs a nu uma faceta pouco conhecida das atrocidades imperialistas na Líbia.

De Bamako, Bernardo Joffily*

Oumar Mariko

Um jovem tratorista que ficou 58 dias preso, assistiu ao frio assassinato de quatro companheiros, e teve roubadas todas as suas economias (US$ 4.500,00), pelos "combatentes democráticos" pró-imperialistas da Líbia. A mãe de 11 meninos nascidos na Líbia, que há sete meses não recebe notícias e nem ajuda de seu marido que ficou retido pela guerra.

As denúncias se sucediam numa rajada de ira e luto, primeiro em bambara (a língua franca de vários povos oeste-africanos), a seguir em francês (língua oficial do Mali) e inglês. Só as penas sofridas pelas dezenas de milhares de trabalhadores malinenses colhidos pela guerra bastariam para levar os generais da Otan e seus cúmplices líbios ao banco dos réus, acusados de graves crimes de guerra.

A referência do PC Sul-Africano

Os denunciantes foram trazidos à Conferência pelo Sadi – Solidariedade Africana pelo Desenvolvimento da Independência –, o partido anfitrião da conferência, que convocou também quadros intermediários de todo o país para participar da sessão. Criado em 2001, o Sadi em 2012 concorrerá pela terceira vez à presidência do Mali, sempre com seu secretário-geral, o médico e ex-líder estudantil Oumar Mariko. Em 2002 teve 0,9% dos votos, em 2007 subiu para 2,7% e elegeu quatro deputados. No próximo mês de abril pretende dobrar a dose.

Considerado pelos presentes como o único partido de esquerda no poder na África, o Partido Comunista Sul-Africano (SACP na sigla em inglês) foi representado na conferência por seu responsável internacional, Chris Matlhako. A África do Sul sediou os dois outros encontros, em 2008 e 2010. Com seu papel na construção do regime pós-apartheid, suas fortes raíses de massas e o prestígio dos seus 90 anos de luta heroica, o SACP foi citado várias vezes, durante os debates, como referência para toda a esquerda africana.

A conferência foi financiada com ajuda do Partido da Esquerda da Suécia. Conforme a legislação de seu país, a Esquerda recebe fundos do Estado para aplicar em suas relações internacionais, e decidiu concentrá-los não em projetos isolados mas sim no apoio às forças políticas de esquerda no Terceiro Mundo. Afora o partido sueco, assistiram à reunião representações do Partido Comunista Francês, do Partido Socialista Unificado da Venezuela, do Partido Comunista do Brasil e Fórum de São Paulo – e ainda o AAPC (Corpos da Paz Afro-Americanos), dos EUA.

Tunísia e Egito – revoluções

Ao lado da agressão à Líbia, as revoluções deste ano na Tunísia e no Egito estiveram no centro da pauta de debates. Mohamed Jmour, dirigente de uma das duas organizações tunisianas presentes, estimou a transformação em seu país como "um processo revolucionário", marcado pelo seu caráter civil, pela liberdade e democracia, a dignidade e a justiça social. Mas ele foi duro sobre o papel da esquerda tunisiana: "A esquerda não percebeu esta revolução", observou. E lamentou a desunião das três forças locais de feição marxista, na eleição para a Constituinte, em outubro (que fez com que apenas uma delas, o Partido Comunista Operário da Tunísia, elegesse três deputados): "Não podemos nos dar ao luxo de nos desunir", advertiu Jmour.

Porém as atenções principais se concentraram nos princípios, no programa e nos caminhos da esquerda africana. E o debate se mostrou notavelmente franco e robusto. "Está na hora da esquerda africana assumir a sua responsabilidade", frisou Mariko. E o delegado da Guiné-Conakry citou a fala de uma das malinenses: "Tudo depende de nós". Os avanços recentes na América Latina foram uma referência constante da conferência, que aprovou moções de solidariedade ao movimento latino-americano e a Cuba em especial.

Os partidos reunidos em Bamako são de diversas origens, figurando entre eles até um inusitado Partido Social-Democrata (Marxista-Leninista) do Quênia. O nome deste último não impede que a Alnef trace uma forte linha divisória com a social-democracia, seja ela africana ou europeia. Também é desigual a base de massas de cada um, até por que não poucos continuam constrangidos à clandestinidade ou ao exílio.

* Jornalista, representou o PCdoB/Fórum São Paulo, a convite do Alnef