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João Quartim de Moraes: Tucano mentiroso

O relatório feito para a ONU por Paulo Sérgio Pinheiro sobre a situação na Síria poderá ser o pretexto para a agressão militar ao país, como ocorreu contra a Líbia. Ele merece algum crédito? João Quartim de Moraes duvida, com base na análise do estudo feito por ele do Levante de 1935, no Brasil, onde defende a tese de que fora decidido em Moscou, usada pela direita para desqualificar os comunistas brasileiros. Leia, a seguir, as anotações de João Quartim de Moraes (NR):

Por J. Quartim de Moraes*

Paulo Sérgio Pinheiro é capaz de falsificações intelectuais como a que denunciei no segundo volume de A esquerda militar, publicado em 1994. O texto é um pouco longo, mas é preciso contextualizar a impostura do tucano pedante. Quem dispensar o contexto, pode ir direto à nota 2 e verá o grau de confiança que merece o supra-referido, agora consagrado ao trabalhinho sujo de ajudar a preparar o clima para o ataque imperialista à Síria. Se um dia ele quiser vender uma carro usado, já sabem…

Para o Cavaleiro da Esperança, ao se abrirem as portas do PCB, abriram-se também as da volta ao Brasil. No início de 1935, acompanhado de sua mulher, Olga Benário, deixou a URSS e, após uma viagem de três meses, entrou clandestino no Brasil, fixando-se no Rio de Janeiro. Embora não resista a uma análise minimamente objetiva, a versão policialesca de que Prestes efetuou esta viagem já com a missão, que o Komintern lhe teria atribuído, de preparar e desencadear o levante de novembro de 1935, tem sido sustentada não somente pelos caçadores profissionais de comunistas, mas também em trabalhos aparentemente mais respeitáveis, como o do 'brasilianista' Stanley Hilton, que afirma, sem base alguma, além de confusas e sumárias especulações, que a decisão de "tentar apossar-se, pela força, do governo do Brasil" foi "tomada em Moscou, em fins de 1934" [1]. Embora não tenha sido nem o primeiro nem o último historiador a farejar o dedo de Moscou no gatilho da insurreição de 1935, Hilton, melhor do que qualquer outro, conferiu a esta versão – em nome da qual Olga Benário foi deportada, grávida, para a Alemanha hitleriana e Harry Berger torturado até a loucura por Filinto Muller e seus asseclas – o aspecto de uma pesquisa historiográfica meticulosa e bem documentada. Parece-nos portanto instrutivo verificar se as impressões digitais do Komintern estão mesmo onde ele diz.

Um historiador honesto, antes de afirmar peremptoriamente que os revolucionários de 35 cumpriam ordens de Moscou, examinaria, ou ao menos mencionaria, o depoimento em contrário do chefe do levante, Luís Carlos Prestes. Hilton, em vez disso, simplesmente cassa lhe a palavra no sumário julgamento que pronuncia sobre a responsabilidade pela trágica "rebelião vermelha". O depoimento de Prestes, com efeito, aos jornalistas D. Moraes e F. Viana é categórico: "Não houve nenhuma orientação de Moscou para que a insurreição acontecesse. A responsabilidade é do nosso partido e do secretário-geral Miranda, que transmitia informações falsas sobre o que estava acontecendo" [2]. Hilton conhecia muito bem este depoimento ao compor seu livro, tanto assim que o cita várias vezes, inclusive a passagem sobre o soco de Manuilsky na mesa, que se encontra algumas linhas antes da declaração de Prestes que acabamos de reproduzir [3]. Trata-se portanto de uma omissão deliberada, que dá a medida do facciosismo do autor.

Notas:

[1] Cf. Stanley Hilton. A rebelião vermelha, Rio de Janeiro, Record, 1986, p. 51. A linguagem de Hilton, tanto quanto o conteúdo de suas afirmações, lembram irresistivelmente um relatório policial. A abertura do capítulo III de seu livro é, neste sentido, característica: "Visando a destruir a liberal-democracia e implantar um governo[…] dominado pelo Partido Comunista Brasileiro, como primeiro passo no estabelecimento de um regime soviético, os líderes do PCB, auxiliados e orientados por Luís Carlos Prestes e outros emissários do Komintern trabalharam assiduamente[…] para preparar o movimento armado contra o governo de Getúlio Vargas" (ib., p. 51). Há uma imperial petulância por parte de Mister Hilton em tratar Prestes como "emissário do Komintern". Não por acaso, sua principal fonte inédita é, como diz a contra capa de seu livro, o "controvertido chefe de polícia Filinto Muller". Controvertido! Enlouqueceu Berger na tortura, literalmente descascou à navalha sua mulher Elisabeth Sabrowsky, deportou Olga Benário, grávida, para a Alemanha hitleriana (mesmo destino teve a mulher de Berger) etc. Compreende-se perfeitamente, como assinala a nota biográfica de Hi1ton na orelha de seu livro, que ele tenha "sido condecorado pelo governo brasileiro com a Ordem de Rio Branco, em 1972". Será preciso lembrar que em 1972, quem mandava no Brasil era o DOI-CODI?

[2] Dênis de Moraes e Francisco Viana, Prestes: lutas e autocríticas, Petrópolis, Editora Vozes, 1982, p. 59. Esta mesma frase de Prestes, que Hilton oculta, é flagrantemente deformada em “Estratégias da ilusão”, de Paulo Sérgio Pinheiro (São Paulo, Companhia das Letras, 1991, p. 289). A frase em questão e as seguintes são claríssimas. Prestes atribui a principal responsabilidade do levante ao PCB e a Miranda, "que transmitia informações falsas sobre o que estava acontecendo" (Moraes e Viana, loc. cit., p. 59). Após a palavra "acontecendo" vem um ponto final, marcando, como sabemos todos, o fim de uma frase e o começo de outra: "Berger estava aqui com a mulher porque, já em 34, a delegação que fora a Moscou manifestara o desejo de receber alguma assessoria de alto nível. Então, veio Berger. Mas ele recebeu recomendações para não se envolver nos assuntos internos do partido. Era um conselheiro" (ib., p. 59). Na citação de Paulo S. Pinheiro, inteiramente entre aspas, como se fosse portanto a formulação literal de Prestes, lemos o seguinte: "A responsabilidade é do nosso partido e do secretário-geral Miranda, que transmitia informações falsas sobre o que estava acontecendo, e de Berger (grifos nossos) (Ewert), uma 'assessoria de alto nível' solicitada pela delegação que fora enviada ao Brasil em 1934" (Pinheiro, loc. cit., p. 289; cf: também ib., p. 366, onde ele indica Moraes e Viana como fontes; de fato, neles se apoiou, mas para alterar o que escreveram). Onde há um ponto, Pinheiro coloca uma vírgula e inventa "e de Berger", de maneira a deformar a declaração de Prestes, que não somente não atribui a Berger responsabilidade alguma na funesta decisão de desencadear o levante militar, como faz questão de frisar que ele não se envolvia "nos assuntos internos" do PCB, era mero "conselheiro". Pinheiro também atropela a sequência do relato. Prestes afirma que Berger havia sido enviado ao Brasil por solicitação da delegação brasileira no Congresso do Komintern em Moscou. O texto de Pinheiro inverte esta declaração. Segundo ele, Prestes teria dito que a vinda foi solicitada "pela delegação que fora enviada ao Brasil em 1934". Podemos supor que aqui ocorreu um ato falho: o historiador cochilou e escreveu no Brasil em vez de a Moscou, isto é, atribuiu a uma delegação enviada de Moscou ao Brasil uma iniciativa que segundo a fonte que ele cita (=Prestes) foi tomada pela delegação enviada do Brasil a Moscou. Inconscientemente, portanto, retoma a tese do 'dedo de Moscou'. Muito mais difícil, entretanto, é admitir a hipótese do 'ato falho' quando coloca Prestes como acusador de Berger, deturpando o claríssimo depoimento em que o dirigente revolucionário brasileiro exime seu camarada alemão de qualquer responsabilidade decisória. Vale lembrar que durante os oito anos em que ficaram enjaulados na Casa de Correção, um ao lado do outro, mas separados por um muro, Prestes, ouvindo os gritos e lamúrias desconexas de seu companheiro irreversivelmente enlouquecido pelos beleguins degenerados de Filinto Muller, fez o que pode, mais exatamente, fez todo o pouco que pode, para mitigar-lhe o sofrimento atroz.

[3] Hilton, na nota 34 do primeiro capítulo de seu livro (p. 192), cita a p. 58 do livro de Moraes e Viana. Não é possível que não tenha lido a p. 59 do mesmo livro, que já examinamos exaustivamente, na qual Prestes nega formalmente ter havido qualquer "orientação de Moscou" para desencadear o levante. Evidentemente, isto não exclui o acordo de Moscou com o levante. Mas o que está em discussão é a iniciativa e a responsabilidade política pela tragédia de novembro de 1935.

* João Quartim de Moraes é cientista político