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A nova etapa da Unasul será irreversível para a integração da AL

Ministro de várias pastas na Venezuela, Alí Rodríguez é um dos quadros políticos mais experientes da América do Sul. Enquanto se prepara para assumir a Unasul, explicou ao jornal argentino Página/12 sua ideia sobre os recursos naturais, a defesa e a integração como ferramenta e até recomendou ler Fausto, de Goethe.

Por Martín Granovsky no Página/12

Em abril de 2004, Alí Rodríguez era presidente da Petróleos da Venezuela (PDVSA) e estava de visita ao Uruguai quando o presidente Hugo Chávez disse que cruzasse o rio. "Néstor tem uma ameaça de crise energética”, disse-lhe. "Se for necessário que leve as refinarias, pode levá-las”, recomendou. Rodríguez foi recebido em Buenos Aires por um assessor presidencial de Néstor Kirchner, Rafael Follonier, o mesmo que acaba de conversar com ele nesses dias em Buenos Aires a pedido da presidenta. O venezuelano e Kirchner falaram durante uma hora, e 15 dias depois chegavam a Buenos Aires os primeiros barcos de combustível de toda a história das relações entre ambos os países.

“Nesse momento, o comercio entre nós era de 155 milhões de dólares e hoje é de 2 bilhões de dólares/ano”, disse Rodríguez, em uma reportagem concedida a Página/12, após várias entrevistas, entre elas, uma com o Ministro do Planejamento Federal, Julio de Vido. “E o importante é que não se cobra em dólares, pois é comércio compensado”. Como parte desse intercâmbio, a Argentina ajudou a Venezuela com maquinaria agrícola, ou seja, a Venezuela estimulou o desenvolvimento de suas manufaturas e os barcos foram consertados nos estaleiros de Río Santiago. São exemplos concretos de integração.

Página/12: Caracas acaba de sediar a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos, Celac…
Alí Rodríguez: A Celac é uma grande conquista. Como a Unasul. Os dois se movem com uma velocidade uniformemente acelerada. A Unasul já conta com oito conselhos ministeriais e um eleitoral. Não é qualquer coisa.

Página/12: Que objetivos tem para começar sua gestão de secretário da Unasul, em abril, quando substitua a María Emma Mejía?
Alí Rodríguez: Todos os que sirvam para responder a uma pergunta que aponta ao futuro: o que podemos fazer para que essa etapa da integração seja irreversível e não tenha a mesma sorte de tentativas anteriores. São importantes o Banco do Sul, a integração física, a Universidade da Unasul. Qual será o eixo da irreversibilidade? A região não é uma potência nuclear, militar, industrial ou tecnológica, apesar de que vários países estão se desenvolvendo nesse âmbito.

Página/12: E então:
Alí Rodríguez: O mais evidente é o que às vezes não se vê. A América do Sul tem uma gigantesca acumulação de recursos naturais. Busque os elementos da Tabela de Mendeleiev. Estão todos. Temos energia, petróleo, gás, carvão, três grandes bacias hídricas, um grande pulmão vegetal, a maior biodiversidade do mundo, 27% de água doce do planeta, talento humano que antes migrava. As exportações da América Latina foram mudando; porém, todavia falta exportar mais manufaturas. Houve uma época em que exportávamos divisas. E ficamos sem financiamento. Por isso, foi importante a conquista de Néstor Kirchner, ao livrar a Argentina do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial. Por isso, colaboramos naquele momento com a Argentina.

Página/12: O senhor fala de recursos e, entre outros cargos, foi secretário da Organização de Países Exportadores de Petróleo. Que conclusões extraiu dessa experiência?
Alí Rodríguez: Bom, a Opep é um organismo intergovernamental que defende um recurso. E sua diversidade é enorme: Irã, Qatar, Kuwait, Equador, Venezuela, Arábia Saudita… O Irã e o Iraque estiveram metidos em uma guerra durante oito anos. Morreram mais de 800 mil pessoas e não romperam com a Opep. Às vezes, há ministros que não se falam. Porém, assinam acordos. Bem, se isso é possível com a Opep, por que não em nossa América, que é zona de paz? Nada justificaria conflitos, e não parece havê-los no horizonte. Não somente vivemos em democracia; aperfeiçoamos nossas democracias com mais participação.

Página/12: Porém, sem paranóia militar, contar com recursos pode produzir tentações em terceiros…
Alí Rodríguez: Sim, os recursos sempre são uma virtude e um perigo. Os recursos vão sendo cada vez mais escassos e não são renováveis. Se esgotam. Houve guerras para garantir o acesso a um recurso escasso, como o petróleo: no Iraque, nunca apareceram as armas de destruição massiva; na Líbia jamais apareceram os aviões que Muammar Khadafi, segundo as denúncias, havia descarregado sobre populações civis indefesas. No Afeganistão, houve uma intervenção em busca de desarticular a rede de Osama Bin Laden, uma criação dos Estados Unidos contra a então existente União Soviética. As grandes guerras coloniais foram desatadas buscando recursos. A Grã-Bretanha destruiu a próspera indústria têxtil da Índia e a condenou a ser produtora de algodão. Tenhamos cuidado com as tentativas de recolonização. O colonizador Cecil Rhodes até recebeu homenagem de um país com seu nome, Rodésia. Qual país fará homenagem a Obama?

Página/12: O senhor sabe qual será?
Alí Rodríguez: Eu sei que hoje se fala de commodities para mencionar as matérias primas, que são recursos naturais. Ou seja: a riqueza real de nossos países aparece transmutada em mercados de futuro que fixam preços de acordo com processos voláteis de compra e venda. Nós sabemos isso ao lidar com o petróleo. A volatilidade produz grandes prejuízos a produtores e comsumidores.

Página/12: Como se pode reduzir a volatilidade?
Alí Rodríguez: Acordando políticas sobre a base de reconhecer que a terra onde estão os recursos impõe uma soberania dos Estados a defender, porque esses Estados adminsitram os recursos. Veja, eu nunca deixo de reler O Capital para estudar uma e outra vez como Karl Marx escreveu sobre a renda da terra. Se o Estado exerce a propriedade dos recursos, pode impor condições para explorá-los. Administra a renda. Evita que maximizem lucros privados se vão contra o interesse dos povos. Impede que se esgotem os recursos e, assim, previnem a descapitalização acelerada. Não deixa de ser uma relação de forças. Se na origem há um negócio, aparecerá um problema político. E um problema político de escala planetária.

Página/12: Nesse ponto volta a Unasul…
Alí Rodríguez: Claro. Se temos um problema planetário, como nos defenderemos melhor? Separados ou unidos? E então, voltando ao exemplo da Opep, qual é a ideologia? A defesa dos recursos. Já sabemos quais são as forças centrífugas que buscarão dificultar nossa integração. Ao invés, não há maior força centrípeta, de unidade, do que coordenar políticas para exercitar-nos melhor na defesa desse gigantesco reservatório. Não falemos somente de petróleo. Pensemos no trigo, na soja, no aço. Pensemos na Colômbia, na Venezuela, no Brasil, no Paraguai, no Peru. Por que não podemos ter um trem rápido Caracas-Buenos Aires e outro Lima-Rio de Janeiro? Por que não podemos melhorar juntos nossos aeroportos e portos? Por que nossas comunicações por internet se realizam através de Miami?

Página/12: Um documento recente da Unasul, que foi publicado em Página/12, revela que a América do Sul terceiriza fora da região 80% da conectividade…
Alí Rodríguez: Assim é. Avancemos, então, nos estudos comparados de todos esses temas, nas formas de industrialização, no estudo das tecnologias que prejudiquem menos o meio ambiente, nos direitos marítimos…

Página/12: Se há recursos e riscos e ao mesmo tempo a Unasul já conta com um Conselho Sul-Americano de Defesa, há uma doutrina de defesa específica para essa descrição que o senhor faz?
Alí Rodríguez: O argentino Alfredo Forti está estudando com muita seriedade o tema. A América do Sul não tem que defender grandes espaços desocupados; mas, seus recursos e tem que fazê-lo mediante uma doutrina que ponha ênfase na paz e no desenvolvimento. Chávez fala das empresas "grã-nacionais”, estatais ou privadas. Devem integrar-se. E o Banco do Sul deve financiá-las. Temos uma plataforma de lançamento, que é nosso mercado poderoso.

Página/12: Em uma análise realista, quais seriam os obstáculos?
Alí Rodríguez: Um subjetivo: que não vejamos o óbvio. Outro objetivo: há poderes com grande capacidade de influência, inclusive, nas mentalidades e na ação. Porém, não há poder superior ao dos povos quando tomam consciência. Quando isso acontece, a subjetividade se converte em uma força objetiva invencível. Estou acostumado a ler sobre a Venezuela quando viajo. E, muitas vezes, digo a mim mesmo: "Esse país que descrevem não é o meu país”. Porém, um processo político que começou com o triunfo de Chávez há quase 12 anos mudou a consciência do povo e foi blindando-o frente a essas visões. Por isso, temos que falar de realidades. Das nossas e das mundiais. O que faremos com a China? E com a Índia, que em dez anos superará a China em população, quando alcançar os três milhões de habitantes? O que faremos os sul-americanos com a dinâmica dos 800 milhões de habitantes da África e com o desenvolvimento da África Subsaariana?

Página/12: senhor é otimista?
Alí Rodríguez: Sim. Tenho uma visão muito esperançosa. Temos todas as possibilidades de melhorar nossa qualidade de vida e de avançar nos desenvolvimentos culturais, intelectuais, científicos, tecnológicos. Em nosso desafio, nesse momento da humanidade.

Página/12: Em sua etapa guerrilheira, nos anos 60 e 70, o senhor usava o pseudônimo Comandante Fausto. Por que esse nome?
Alí Rodríguez: Sempre fui um grande leitor de Goethe. Deveria ser leitura obrigatória para os jovens. Não se trata somente da redução habitual que aparece na frase "vender a alma ao diabo”. Não. O Fausto de Goethe sintetiza muito o ser humano com suas debilidades, suas misérias e também suas grandezas. É uma homenagem ao amor. Estou relendo esse livro agora. E também as Cartas Persas, de Montesquieu. Restam poucos nas livrarias de Buenos Aires. Acabo de comprar um para dar ao Chávez. Não me esqueço de Sófocles e, como disse anteriormente, releio sempre O Capital.

Página/12: É verdade que o governo deu de presente uma edição popular de Os Miseráveis, de Victor Hugo?
Alí Rodríguez: Sim, é verdade. Descreve maravilhosamente o poder do ser humano. E também organizamos jornadas de leitura de Dom Quixote nas praças de toda a Venezuela. Assim, acompanhamos as mudanças na América Latina. As mudanças, como você deve saber, produzem uma floração intelectual e criativa.

Tradução: Adital