Sangue e créditos de carbono: a história dos Montes de María
Foram quase dez anos de violência. Primeiro com a chegada das guerrilhas; depois, foi a vez dos paramilitares, que, com a conivência ou não das autoridades, passaram a exercer um novo tipo de dominação em diversas partes da Colômbia.
Por Simone Bruno (*)
Publicado 06/01/2012 17:57

Nos Montes de Maria, uma subregião no Caribe dividida entre os departamentos de Sucre e Bolívar, isso significou a remoção de centenas de camponeses que viviam há décadas na região. Hoje, a área se transformou em um polo de projetos de compensação ambiental por emissões de poluentes, os chamados créditos de carbono.
Nos anos 70, os Montes de María eram uma ilha de pequenos produtores organizados, unidos e ligados à terra, uma anomalia em uma Colômbia latifundiária, que já vivia o conflito armado desde o final dos anos 40. Nos anos 90, porém, chegam as guerrilhas e tudo se transforma. Antes as FARC e, em seguida, o ELN e o EPL e, com eles, a extorsão e o sequestro. Com o pretexto de combatê-los, chegam os paramilitares do comandante Cadena, que entre 1999 e 2002 são autores de 56 massacres que desalojam mais de 20 mil camponeses.
Alguns desses eventos estão registrados na memória histórica do país: o “masacre del salado”, 70 camponeses torturados e assassinados no campo de futebol do povoado; Chengue, 27 massacrados com facões e depois El Cielito, Ovejas, Arenas e Santa Clara. Centenas de mortos. Os que sobrevivem dispersam. Os vilarejos se tornam cidades-fantasma, com manchas de sangue seco nas ruas e a mata que encobre os telhados.
Em 2005, os “paras” de Cadena abandonam as armas. Em 2008, o exército mata Martín Caballero, chefe da frente 37 das FARC, que atuava nos Montes de María.
Nas montanhas machadas de sangue chega a paz, retornam os camponeses, mas também empresários que começam a comprar a terra a preços muito baixos, convencendo os camponeses, endividados e muitas vezes analfabetos, que os bancos estariam desapropriando suas terras. Muitos vendem. Quase todos.
“Tenho a suspeita – conta o agricultor Carlos – que tudo o que aconteceu antes, que toda a violência e os massacres serviam para abrir o caminho ao que veio depois. Não é difícil entender que os paramilitares de antes e os empresários de agora são todos parte de uma mesma estratégia.”
Carlos sorri e fala muitas vezes em voz baixa, como se estivesse contando coisas muito confidenciais, quase secretas.
É um dos poucos camponeses da zona que tem coragem de relatar o que aconteceu no Montes de María. “Aqui vivia o paramilitar Cadena – prossegue em tom conspiratório – esta era sua base militar, se chamava o castelo do amor. Nos anos de chumbo, todos os políticos e personalidades da região vinham visitá-lo.”
Após subir uma colina, prossegue: “e esta – indicando uma terra próxima ao velho acampamento paramilitar – era nossa terra, de nossa família, meu pai e nós, os 20 irmãos. Vivíamos tranquilos, depois chegou a guerrilha e os paramilitares. Tudo se tornou muito violento, tínhamos muito medo e quando sequestraram alguns familiares partimos. Ficamos sem um tostão e, após algum tempo, tivemos de vender, quase entregar, a terra à Reflorestadora do Caribe”.
A Reflorestadora do Caribe faz parte da Argos SA, uma das maiores fábricas de cimento da América Latina e uma das empresas mais importantes da Colômbia. Do grupo, fazem parte 32 empresas colombianas e 51 estrangeiras, que se dedicam, entre outras coisas, à produção de carvão, petróleo, pecuária e, recentemente, reflorestamento.
A Argos tem conexões com as mais importantes famílias da região. Entre seus acionistas estão os Guerra de la Espriella, que vários paramilitares confirmaram serem próximos de Cadena. O atual vicepresidente de finanças da Argos é o irmão de Juan Felipe Sierra, procurado desde 2008 por paramilitarismo. O mesmo Juan Felipe fundou a Control Total, uma empresa de segurança, integrada por ex-paramilitares, que prestava serviços à Argos.
Argos é, então, dona de uma extensa propriedade na conflituosa zona dos Montes de María, onde plantou uma monocultura de teca, enquanto os donos originais reivindicam a devolução ou o pagamento de um preço justo pela terra que muitos foram obrigados a vender. Isso não seria novidade no contexto colombiano, se não fosse pela Argos ter vendido sobre essas árvores um MDL (Mecanismo de Desenvolvimento Limpo).
O mercado
Em 1997, 160 países, incluindo 38 industrializados, se comprometeram, ao firmar o protocolo de Quioto, a reduzir, antes de 2012, as emissões de gases de efeito estufa em 5% em relação aos padrões de 1990. Porém, isso não aconteceu e, ao contrário, as emissões aumentaram. Na década seguinte à assinatura do tratado, as emissões de combustíveis fósseis cresceram exponencialmente até se triplicarem frente à década de 1990.
Os integrantes da União Europeia não firmaram os acordos, mas seus negociadores tentaram introduzir uma série de propostas para criar um mercado de emissões. A ideia era que os países industrializados, quando não tivessem conseguido ou não quisessem reduzir as emissões em seu próprio território poderiam pagar outros países para fazê-lo em seu lugar.
O mercado de emissões, então, se tornou o principal mecanismo de atuação do protocolo de Quioto e, portanto, o seu fracasso. É um sistema muito complexo com um objetivo muito simples: baratear os custos destinados pelas empresas e pelos Governos para cumprir com os objetivos de redução de emissões.
Este novo mercado é apresentado com dois mecanismos principais: o sistema de limite e negociação (cap and trade) e o sistema de compensações.
No primeiro, uma vez estabelecido pelo protocolo de Quioto o limite das emissões permitidas em um país (cap) é possível comprar e vender as permissões de emissão (trade). Isso permite a governos e organismos supranacionais, como a Comissão Europeia, distribuir licenças para contaminar (ou permissões de emissão) entre as grandes empresas dos países que firmaram o protocolo de Quioto. Em vez de mudar seu comportamento, as indústrias que contaminam além de seus limites (cap) podem comprar as permissões de empresas que contaminam abaixo do limite (trade).
Essas permissões são então compradas e vendidas no mercado das emissões. Neste regime se baseia por exemplo o regime comunitário de comércio de direitos de emissão da União Europeia (RCCDE), o maior Mercado de emissões do mundo, cujo capital em 2010 chegou aos 141 bilhões de dólares.
O segundo mecanismo do comércio de emissões se baseia no sistema de compensações. Em vez de reduzir as emissões na origem, as empresas, os governos e os grupos privados financiam projetos de economia de emissões fora do território aonde deveriam ser reduzidas. O principal programa desse tipo é o MDL (Mecanismo de Desenvolvimento Limpo), administrado pelas Nações Unidas.
É a partir desta série de acordos internacionais, nascidos com Quioto para salvar o planeta, que a Argos pode vender um MDL de reflorestamento sobre a terra que era de Carlos e dos outros camponeses de Montes de María. Este MDL converge no mercado das emissões e permitirá a uma empresa europeia não reduzir suas emissões, com a promessa de que a teca de Argos reduzirá em seu lugar. Tudo isso com a aprovação da ONU.
“Agora aqui estão todas essas árvores – continua Carlos, enquanto os ventos dos Montes de María balançam as árvores – sabemos que existem organizações internacionais que pagam aos atuais donos porque as plantas produzem oxigênio. E quem sabe quanto dinheiro a mais irão ganhar quando venderem a madeira. E a nós não resta nada, a não ser uma vida como desterrados, mendigando o que antes a nossa terra nos dava de graça.”
Em cada hectare, a Argos planta até 1.200 árvores que em 15 ou 20 anos terão 40 metros de altura, “o que será da terra – pergunta-se Carlos – depois desta plantação extensiva, depois que as árvores sugarem todos os nutrientes por décadas? Como se pode chamar de reflorestamento uma monocultura de árvores que vêm da Ásia, que são pulverizados com venenos que contaminam nossos rios, matam nossos animais e nossas plantas?”
A Colômbia conta hoje com 160 projetos MDL, e é o quarto emissor desses títulos na região e o 12º no mundo. Desde 2002 este mercado rendeu ao país 100 milhões de dólares. O presidente Juan Manuel Santos pediu, porém, para dobrar o número de projetos nos próximos quatro anos.
Segundo os cálculos da ONU, o projeto de reflorestamento dos Montes de María de Argos absorve 37 mil toneladas de CO² ao ano. Para um total de 25 anos, em três mil hectares. Com esta operação, a Argos ganhará um total de 12,5 milhões de dólares até o momento em que cortará as árvores para vendê-las.
A morte de Quioto
Carbon trade Watch é um think tank que se dedica exclusivamente ao estudo do mercado das emissões. Na Holanda, sua colaboradora Joanna Cabello conta: “em Quioto decidiu-se que eram os países industrializados que teriam de realizar os investimentos para mudar os sistemas de produção. Isso porque se considerou que esses países tinham a responsabilidade histórica, com a colonização e a Revolução Industrial, de ter levado o planeta aos atuais níveis de contaminação.”
Segundo a analista, o sistema das compensações é a razão do fracasso de Quioto: “os MDL permitem romper os limites de Quioto, porque os projetos no hemisfério sul permitem aos países do norte contaminarem mais e superarem seus limites com a promessa, não comprovada cientificamente, mas muito rentável, de que este excesso seja absorvido, por exemplo, com as árvores plantadas no sul.”
Para os analistas do Carbon Trade Watch está muito claro que projetos como o de Argos na terra de Carlos permitem apenas gerar créditos para que o hemisfério norte prossiga com as mesmas práticas contaminadoras que nos conduziram à situação atual: “mas, além disso, gera uma nova série de conflitos ambientais e sociais nos países do sul, porque as monoculturas, os campos eólicos e as centrais hidrelétricas precisam de grandes territórios, geralmente nas mãos das comunidades mais vulneráveis. Não há dúvida que os MDL transferem a responsabilidade de reduzir a contaminação para os países do sul. Invertendo o conceito de dívida histórica de Quioto.”
Até hoje, foram aprovados no mundo cerca de 3.600 projetos MDL, muitos financiados diretamente pelo Banco Mundial, que é protagonista neste novo mercado. Para 2012, se prevê que mais de 2.100 milhões de toneladas de CO² serão absorvidas com estes projetos. Isso vai permitir aos países do norte emitirem na atmosfera o equivalente em gases de efeito estufa, com a esperança de que o hemisfério sul os absorva.”
“Há uma fazenda nos arredores que se chama Morrocoy – prossegue Carlos – assim se chama porque abrigava muitos Morrocoy, uma espécie de tartaruga de terra quente. Chegaram 12 escavadeiras que destruíram tudo. Animais que vivem nesta região, que estão em perigo de extinção, como o Carreto, o Guayacán, como o próprio Morrocoy, que são originários daqui, foram empilhados como pedras. As tartarugas que não exterminaram, capturaram e comeram. Observe o dano que causam não somente à região mas ao meio ambiente. As madeiras que floresciam, como o guacimo, como o trevo, o cedro, o mamão, que são nativos desta região, não se vêm mais aqui. Agora temos outra espécie… a teca.”
(*) Jornalista de Opera Mundi
Fonte: Opera Mundi