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Cap. XV – Faça autocrítica…

Encontrando-se com Caetano, Xisto dava notícias de sua rotina, informações fantasiosas, o esforço para ocultar o drama do desalento. Madrugadas sem conta, numa das mesas do Maconhão, ouvindo músicas arrastadas, apreciando matronas sós, escutando-lhes a versão de como chegaram aos 40, 45, 50 anos. Estimulando o sonho de mulheres estreantes na menopausa, crendo-o um mago indultando-as de supostos erros.

Conheceu Darlene, passada dos 40, tímida, temerosa do que seria de sua vida depois que o marido a deixara. Na noite pela primeira vez, depois da separação. Bebera além da conta, porque o amigo recente, para exercitar a palavra, acreditar-se outra vez útil, defendera o uso da bebida como se estivesse numa conferência; charlatanice brega. Darlene cheirava a pó-de-arroz com álcool.

– É impossível o ser humano confinar-se nos aposentos que não seja sob o impulso da bebida ou do sexo. Para viver, a rua tem que ser a extensão do próprio lar. O combate ao tédio terá que ser diuturno. O bar deve ser freqüentado para que o lar não seja esquecido, seja objeto de saudades. A bebida é o combustível necessário ao trânsito entre a casa e o bar; a bebida não é a celebração da relação entre o casal, o sexo é que é a celebração; com espasmos porque tem a ajuda da bebida.

– Você vive sob o signo da bebida e do sexo – provocou-o Darlene.

– Não exatamente. Sou geminiano apaixonado, versátil em descobertas.

– Descobre sabores e saias, imagino…

– Melhor dizer que vivo de circunstâncias, não me recuso a elas.

O cretino convencera-se de que estava no exercício da mais pura e conseqüente dialética. Não era um discurso esnobe, mas um argumento novo para Darlene. O então marido nunca fora tão didático. Ela estava bêbada, queria ir para casa. Xisto chamou um táxi; depois, entrou com ela no portão. Quando ela girou a chave e a porta se abriu, acendeu a luz da sala. No claro, abraçou-se a ele. Ele pensou que fosse o abraço do pré-coito. Chorou, ela, como uma infeliz no ombro dele. Mesmo bêbada, dera-se conta de que estava separada há pouco; e o marido ainda tinha um bom lugar na sua memória. Chorou com remorsos, arrependeu-se mais do que se fosse estuprada. A Xisto, seu conhecido e ainda estranho, suplicou:

– Vá embora, vá por favor!…

Perplexos, sem a brisa remoçante que a beira-mar lhes soprara, os dois se olharam. Identificaram-se nos olhos o sofrimento comum aos desvalidos; queriam-se distantes, só isso. Ela espreitou na fluência dele, o discurso balofo do amante sem amante; fingira que tinha ouvidos para machos pretendentes. A alegria fora mantida com as fichas que Xisto pusera na radiola. Despediram-se desolados, solidários sem amor para dar.

A madrugada, madrasta, revelou-lhes as fraquezas.

– Droga! – ela resmungou antes de se deitar.

– Porra – queixou-se Xisto, de volta ao Maconhão.

Pediu outro daiquiri, fumando seguidos Gauloises que comprara de um marujo francês no cais do porto. Ofereceu ao garçom, esperando que lhe perguntasse sobre as propriedades do fumo europeu; ajudaria a esconjurar os butes da alma. O garçom deu dois tragos, tossiu, chorou, foi beber água.

Outro gole, mais tragos no Gauloise. Cruzou as pernas, insistindo em esconjurar os butes. O corpo entorpeceu, a alma se espreguiçou. Fora abandonado pela amiga, nada disso o arreliou. Ela se fora por coerência com sua linhagem no candomblé. Ogum lhe dera o livramento condicional; poderia arrepender-se. Não fora anistiada pelo orixá. Ele deixara o Partido, não fora às reuniões; e tinha um discurso pronto para fazer autocrítica; puxaria-o com a negação da deserção. Não o acusariam de traição porque sucumbira a uma crise de descrença na revolução. Creu-se, no delírio, esperto; como fora com Darlene. Cruzaria as mãos sobre a mesa de reuniões, contrito, ninguém suspeitando que o gesto fora herdado da liturgia batista, sua primeira escola. “Certo”, diria; nada como um sonoro advérbio para minguar uma crítica. A crítica hostil da camarada Gertrude.

A ex-amiga não era militante, mas carecia de fundas explicações sobre os segredos das divindades; logo se submeteria à disciplina na oferenda servil a Ogum.

Perdeu, ele, a conta de quantos daiquiris bebera; delirava como um narciso sob o efeito de uma infusão de cogumelos. Fora o guia de Chica, quase se tornara seu amante; nada oficial, por isso defendido pelo Partido, junto com outros caraminguás de liberdades. Programa porreta, o do Partido; abrigara-se nele e ninguém desconfiara da mistura de opiniões em sua cabeça.

“Quem poderá me acusar de pequeno-burguês? Gertrude? Ela foi solidária quando me viu surrupiado da mulher numa noite escura, flagrou o amante numa guerrilha anarquista, emboscando uma filha do povo.” Maújo, ateu, incensara o misticismo de Chica, encantara-se; deixou Gertrude. “Ah, o oportunista, abandona o compromisso selado no batismo de fogo, para tirar proveito de mulheres inocentes, indecisas. É preciso puxar-lhe o tapete, apeá-lo do Guadalupe, deixá-lo tonto na ladeira de São Francisco.” Xisto enxergava Maújo no banco dos réus, julgado por um tribunal clandestino.

A baba rala escorregou em fios no canto da boca. Não via imagens na taça de daiquiri. Inclinara a cabeça para um lado, o lado direito; a saliva abriu um círculo de umidade na calça escura de fios de algodão. O delírio balbuciado continuou na memória errante; continuaria pelo resto do dia, não fosse a interferência do garçom. Acordou ouvindo a voz longínqua do moço de calça azul-marinho, camisa branca, chamando-o. Demorou alguns segundos para distinguir a silhueta do garçom, da do babalorixá de branco, que conhecera no Pelourinho.

– Obrigado…

– Não tem de quê. – O garçom entendeu o rogo de desculpas no agradecimento.

Voltou a balbuciar. O garçom deixou uma xícara de café, a colherinha, um saquinho de açúcar e guardanapos; guardanapos para remover a baba do queixo lambuzado. A mancha na calça enxugara depois de quinze minutos de o sol ter nascido. Pagou a conta, agradeceu outra vez como se estivesse pedindo licença para voltar.

No cruzamento do Carmo, foi surpreendido pela buzina de um caminhão na sua frente. O sinal estava amarelo, não houve tempo de atravessar para a praça do outro lado. Sinal vermelho, a buzina acordou-o de vez, destrambelhando os sentidos avariados. Conseguiu chegar à fonte na praça, quis sentar-se para se recompor. Quando inclinou os quadris, caiu de lado, o lado no qual apoiava a cabeça; caiu sacudindo o corpo, estremecendo, tiritando os dentes; entrou em convulsão. O ataque epiléptico vitimou-o na primeira hora da manhã. No ponto do ônibus, o ajuntamento olhou curioso. “Está bêbado…” – “Caiu de sono…” – “Foi derrubado por um pivete…” – “O ladrão levou seu dinheiro…”

Caetano contornara a esquina da Praça da Preguiça; em vez de ir à parada do ônibus, seguiu em direção aos três homens que observavam os últimos estremecimentos de Xisto. “Santo Deus!” Esperou que ele recuperasse os sentidos para sentá-lo na amurada da fonte; tirou do bolso do próprio Xisto um lenço, limpou sua camisa, removeu a baba espumosa. Já sentado, com a memória em fragmentos, entendeu quando Caetano chamou-o para repousar na casa de Gertrude, ali perto.

Xisto dormiu até o fim da tarde. Caetano ficara para lhe ensinar o caminho do banheiro, dar-lhe toalha, sabonete, papel higiênico. Gertrude, trabalhando, deixara os meninos na escola. Sentado na latrina, Xisto demorou feito uma mulher parida. Caetano estranhou, empurrou a porta mal fechada; viu-o sentado, a calça arriada, a cabeça nos joelhos, num choro silencioso. Palavra nenhuma.

O episódio tirou da pauta assuntos urgentes. Reuniam-se para tratar de futuros estopins, guardados, conforme eles, na incubadora do Guadalupe. Estavam convencidos de que uma multidão incerta ocuparia, impaciente, o largo do Amparo, desceria a estreita rua ao lado da igreja, subiria à Ribeira para tomar a prefeitura; nem que fosse por duas breves horas em negociação com o prefeito.

Caso incomum o de Xisto; dormira, defecara, soluçara lágrimas nos aposentos de um aparelho do Partido, nos arredores do Distrito Policial, perto da casa de generais de pijama. Evadira-se das reuniões, agora voltava trágico, agourento.

Depois do asseio, agradeceu a Caetano apertando-lhe a mão sem olhar de frente. Foi para sua casa, encafuar-se até sublimar os vexames com Darlene
Xisto era uma ameaça à estabilidade do aparelho do Guadalupe. Quando estava com Chica, fruíra, ao lado dela, as dezenas de hipóteses que faziam do casal.

À noite, Caetano, Gertrude e Maújo reuniram-se.

– Não pode ser tão frio assim, Maújo. Ele caiu feito um molambo sujo. Eu não seria camarada se não parasse para ajudar. Além disso, não está formalmente desligado do Partido, não rompeu relação conosco. Não acredito que tenha apagado da memória, tudo que aprendeu conosco.

– Ele é um perigo para nós! – advertiu Maújo.

– Também não sei como teria agido…
Gertrude dera dois tragos no cigarro de palha antes de intervir. Maújo virou o rosto, recostou-se à cadeira. Acostumara-se ao cheiro da palha queimada, mas o instinto preveniu-o de que uma opinião contrária a sua estava a caminho.

– … se estivesse no lugar de Caetano. O que temos que saber é se Xisto está incuravelmente instável. Saber se ele representa um perigo para nossa segurança. Alguém terá que falar com ele. É cedo para sentenciar.

– Vi sua alma quando estava sentado no sanitário. Parecia o inferno. Pedindo socorro sem admitir o sofrimento. Está mais para a morte do que para a vida. Ele pode se suicidar.

– Não acho provável. A mãe está viúva, não se equilibra bem das pernas, precisa da ajuda dele. Acho que ele pensa em suicídio, sim, mas não tem a coragem. – Acudiu-se, Maújo, ajuizando-se o responsável pelo distúrbio de Xisto.

Gertrude, soltando tragos escassos, percebeu que os dois esperavam sua decisão; era a chefe da base, suas opiniões sempre foram acolhidas. Caetano a cobiçava como mulher, julgava-a com fogo na alma, entre as pernas. Maújo deixara-a com um rogo que não a convencera. Ela sentira, mas não vazara nenhum sinal de constrangimento. Caetano a estimou mais ainda.
Ela olhou para Maújo com os mesmos olhos com que o olhara no instante em que puseram fim à relação de casal:

– Você vai falar com ele. Não pedirá desculpas, mas fará autocrítica!