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Pavão : Um socialista da ciência, do Recife para o mundo

O professor e cientista Antonio Carlos Pavão é uma das referências da Química no Brasil e no mundo. Paulista radicado no Recife, ele me fala em entrevista sobre a qualidade ótima da ciência praticada em Pernambuco. Essa é uma notícia que não atinge os jornais e a tevê, mas não por falta de esforços do cientista, como veremos.

Por Urariano Mota

Pavão não se pavoneia. Diretor do Espaço Ciência, no Recife, e professor da UFPE, o cientista fala de química, dá exemplos do cotidiano com naturalidade, com absoluto respeito à ignorância de quem o entrevista. Ameniza até as mancadas do entrevistador, que confunde nanotecnologia com anõezinhos correndo em laboratório de Física. É honesto em confessar fracassos, modesto em relação aos sucessos, dos quais retira qualquer talento maior. Pelo que ele insinua, os sucessos vêm como fruto da paixão pelo conhecimento, em lugar de virem de algum gênio.

Estas foram as lições que aprendemos com ele nesta entrevista.

Urariano Mota:
Apresente-se, por favor.
Pavão: Depois que me configurei como um ser social, eu me coloco na perspectiva de fazer a revolução socialista. Nesse período todo eu fui percebendo, eu superei aquela doença infantil do comunismo, como diz o Lênin, não é?, e aquele imediatismo. Hoje pra mim está muito claro que isso é um processo, mas eu tenho cada vez mais a certeza de que esse é o caminho que deve ser seguido, que a revolução socialista é cada vez mais necessária, e urgente, e ela vai acontecer. Então essa é a perspectiva que eu tenho seguido. Então, tudo que eu faço tem a ver com isso. Aí, desde a minha atividade científica, como divulgador de ciência, e também no meu dia a dia, não sou socialista utópico. Nasci no interior de São Paulo, em Quintana, onde vivi até os 18 anos, uma cidade pequena, de uma família… meu pai, quando casou com minha mãe era roceiro, capinava café, minha mãe lavava roupa pra fora, e eu vivi toda essa dificuldade, embora depois meu pai melhorou de vida, no final da vida era um pequeno fazendeiro. Até a faculdade, na Universidade de São Paulo, eu ainda trabalhava na roça. Como eu queria um dinheirinho, trabalhava.

Urariano Mota:
Como é você no interior de São Paulo, você não era um menino de classe média, como é que você despertou pros livros, pro conhecimento, para a Química?
Pavão: Tem um negócio interessante. Nós recebemos influências na vida, não é? Eu tive professores que me estimularam pra isso. Me lembro muito de uma professora que ainda mora lá na cidade, que ela me motivava. Ela possuía um método de ensinar que é hoje o que eu defendo, que tirava a gente da sala de aula, dizendo: “Ô menino, vai catar borboleta! Vai catar pedra!”. E a gente criou um pouco de ciência, que não se limitava às aulas. Eu também vivi uma época em que a tecnologia começou a influenciar muito as pessoas, começava a televisão, e tinha a história que me chamava a atenção, eu era curioso com a bomba atômica. Isso acabou influenciando muito as pessoas no Brasil. Aí eu comecei com isso a me interessar. Eu ganhei um prêmio numa feira de ciência, na escola, eu devia ter 14 anos. E fui o aluno premiado de ciências. Depois, quando eu fui fazer o científico, me lembro de ter também aí a motivação de feiras de ciências, me lembro de outro fato marcante: eu participei de uma feira de ciência de Pompeia, uma cidade próxima à minha, de Quintana. Me integrei com os colegas lá e pegamos o terceiro lugar e guardo a medalha até hoje. Por isso hoje eu sou um incentivador de feiras de ciências. Eu uso a frase do José Reis, que foi um grande divulgador da ciência: “Feira de ciência é uma revolução pedagógica”.

Eu uso essa frase. Nós temos, por exemplo, aqui uma feira de ciências que o Espaço Ciência promove, já há 17 anos. Hoje, Pernambuco é o único estado que tem uma feira de ciências estadual, que acontece há 17 anos, ininterruptamente.

Urariano Mota: E como do curso colegial, científico, você chegou à escolha de Química?
Pavão: No começo, eu queria fazer Física. Vim lá do interior, sem fazer cursinho, e prestei vestibular na USP para o curso de Física. Fiquei entre os excedentes, não entrei. Então passei um ano fazendo cursinho em São Paulo, e nesse espaço de um ano eu mudei de ideia, evoluí da Física para a Química. Porque eu tive um professor muito bom, que me mostrou o que era a Química: Carmo Gallo Neto, do Colégio Equipe, Equipe Vestibulares, de quem depois fui colega. Aí, sim, eu passei em primeiro lugar lá na USP. E lá continuei até o doutorado. Aí na minha tese de doutorado, o professor Ricardo Ferreira, que é daqui de Pernambuco, participou da banca. Eu era já amigo do professor Ricardo Ferreira. Ele é um humanista, você tem que ir lá conversar com ele, está com 84 anos… ele é um cientista reconhecido internacionalmente, amigo de Linus Pauling, Prêmio Nobel de Química. Eu já interagia politicamente com o professor Ricardo, eu era como ele militante do que se chamava, naquele tempo, Liga Operária, que era um partido político clandestino. Eu estava na Liga Operária desde 1974, mas o meu contato com o professor Ricardo foi em 1978.

Abrindo um parêntese: nós éramos um partido político, trotskista, ligado à Quarta Internacional, e nós tínhamos uma linha política de atuação nos sindicatos, diferente da linha da luta armada. Então, o que é que eu fazia? Eu ia dar aula a operários lá na zona sul de São Paulo, na Vila Maria, usando o guarda-chuva da Igreja, para o Madureza (o supletivo de hoje). Então eu incentivava para que os operários se sindicalizassem. Na aula de matemática, eu dizia pros alunos: “Vamos ver percentagem. Quanto é que você ganhava no ano passado? E agora?” . Respondiam “tanto”. Aí eu voltava: “Pô, tantos por cento só de aumento?… Vá pro sindicato”. Era assim.

Fechando o parêntese, o professor Ricardo Ferreira foi um fator muito importante pra eu vir pro Recife. Porque eu queria trabalhar na minha área, como primeiro doutor em Química Teórica do Brasil, que não existia essa área, hoje já tem. Com o professor Ricardo Ferreira eu já tinha outros contatos, porque ele participava de algumas reuniões clandestinas do partido também.

Urariano Mota: Ah, essa de Ricardo Ferreira ninguém nunca soube até hoje.
Pavão: Isso mesmo. Aí, quando me perguntam assim, “por que você veio parar no Recife?”, eu respondo que por três razões: uma de ordem acadêmica, que é essa, do professor Ricardo Ferreira, que desejava montar um grupo de Química Teórica em Pernambuco, e só tinha ele – e hoje temos aqui o maior grupo de Química Teórica do Brasil. Nós somos um centro de conhecimento de nível reconhecido internacionalmente. Isso foi determinante para que, a partir desse grupo de Química Teórica, a gente fundasse o Departamento de Química Fundamental. Nele há um grupo de Espectroscopia, liderado de modo brilhante pelo professor Oscar Malta.

A segunda razão de eu vir pro Recife foi de natureza política, porque a gente queria, o partido estava crescendo muito, e foi criada a Convergência Socialista, que era o braço legal do nosso partido. O nosso partido, clandestino, tinha mudado de nome, de Liga Operária passou a PST, Partido Socialista dos Trabalhadores. Então a gente precisava do partido no Nordeste, aí havia as opções de Salvador e Recife, que juntando com outros atrativos, escolhi aqui. E a outra, a terceira razão, foi digamos assim mais pessoal, porque o meu orientador de doutorado, o Newton Bernardes, um dia me falou assim: “Olha, Pavão, se você quiser ser um grande cientista, só tem duas alternativas: ou você nasce em Pernambuco (aí se referindo a Mário Schemberg, Leite Lopes, Luiz Freire, Leopoldo Nachbin), ou casa com uma pernambucana”. Quando ele falava isso, ele estava de brincadeira, porque ele mesmo, paulista, era casado com uma pernambucana. Mas, brincadeira à parte, o Newton Bernardes era de fato um grande cientista. Ele sempre falava, ao se referir à supercondutividade como “aquele prêmio Nobel que era meu”. Porque ele trabalhou no grupo que ganhou o Nobel de Física em 1972. A ideia dos pares de elétrons, na supercondutividade, que deu o Prêmio Nobel, é do Newton Bernardes.

Bom, mas depois eu descobri que a frase do Bernardes era do César Lattes, que também era casado com uma pernambucana. Então eu vim pra cá. E casei com uma pernambucana…

Urariano Mota: De onde você conclui, fora do folclore, que existe uma ciência de valor em Pernambuco, que os próprios pernambucanos desconhecem?
Pavão: Primeiro que tudo, é preciso ver que Pernambuco, historicamente, se constituiu como um polo de conhecimento, desde o domínio holandês. Vou citar aqui um exemplo, que é do Ricardo Ferreira. O Linus Pauling publicou um livro, que eu acho o livro mais importante da Química no século 20, que é “A natureza da ligação química”, The Nature of the Chemical Bond. São três edições desse livro. A segunda edição, que é a mais importante, o Ricardo Ferreira comprou aqui no Recife em 1945, no original em inglês. E me disse ele que num simpósio em Paris, o professor Daubel lhe disse: “olha, esse livro que você comprou no Recife em 1945, aqui em Paris ele não existia na época”. É impressionante, não é? …

Urariano Mota: Hoje, a ciência em Pernambuco, o que é que ela tem?
Pavão: Em termos de Química Teórica, Química Quântica, essa é uma área que temos aqui e podemos mostrar e temos mostrado para todo o mundo. Temos recebido visitas de pesquisadores importantes, inclusive de Prêmio Nobel. Eu me lembro de ter vindo aqui o Roald Hoffmann. Ele é Prêmio Nobel de Química em 1981, e teve um congresso aqui no Brasil, em Caxambu, e eu apresentei um trabalho com uma coisa que ele não havia percebido: na absorção do monóxido de carbono, ele previu uma absorção com molécula linear, em pé na superfície, e eu previ a molécula inclinada, que depois a experimentação comprovou ser verdade. E ele ficou muito interessado. Sei que depois disso ele foi convidado para um congresso no Rio de Janeiro, e ele disse: “Eu vou, mas eu quero passar uns 4 ou 5 dias com o professor Pavão lá no Recife”. E teve uma outra vez que ele veio ao Brasil, em 2004, para o desfile da escola de samba Unidos da Tijuca, que celebrou o tema Ciência. E eu, como consultor – não sei se posso me chamar assim – de Paulo Barros, que interajo com ele até hoje… Por exemplo, o ano passado ele tinha um problema com o desfile, que era esconder o tubarão lá, não é?

Urariano Mota: Ele queria esconder o tubarão, e aí?
Pavão: E aí, ele tinha uma piscina, para o desfile na avenida, e o tubarão só podia aparecer na hora de sair e pegar o nadador lá. Ele me liga: “E agora, como é que eu faço, pro povo não ver antes da hora? Me diga aí”. Eu disse: “Peraí, Paulo, eu vou pensar um pouquinho e te ligo”. Eu pensei e disse a ele: “Paulo, faz o seguinte: bota leite em pó na piscina”. E ele, duvidando: “Pavão, onde vou encontrar tanto leite? são 18 mil litros d’água…”. E eu: “Rapaz, experimenta aí. Vá, faça esse negócio”. Daqui a pouco ele me liga: “Pavão, com duas latinhas de leite em pó resolvi o problema”. Ele não sabia, a água fica turva.

Bom, em 2004, a Unidos da Tijuca saiu com tema Ciência, e Paulo Barros procurou a Casa da Ciência lá do Rio de Janeiro, que é um Museu de Ciência parecido com o nosso Espaço da Ciência. E eu também assessorei. E Paulo Barros veio um dia conversar comigo, então dei algumas idéias pra ele. Ele preferiu um Carro da Alquimia, com minhas sugestões. E na conversa com ele eu disse: “Ô Paulo, era legal que tivesse um Prêmio Nobel aqui no desfile. Posso convidar um Prêmio Nobel?”. Ele respondeu: “Convide!”. Aí eu chamei o Roald Hoffmann, que topou e veio.

Urariano Mota: Botou Hoffmann pra sambar na avenida?
Pavão: Isso. Aí desfilamos na avenida, ele e eu. A gente fantasiado de Santos Dumont. Aí foi bom, porque o Hoffmann escreveu um artigo e deu uma boa divulgação na revista Nature, falando da escola de samba. O artigo foi “Science to a samba beat”, de 4 de março de 2004.

Urariano Mota: Com a sua idade, experiência e trabalho, que conselho você daria hoje a um jovem estudante, a um menino de escola pública?
Pavão: Ele tem que estudar. Agora eu acho que ele deve buscar, se interessar por qualquer problema. E pesquisar em cima disso. Se especializar nisso. Da mesma forma como eu ia catar borboleta lá na minha cidade, hoje qualquer menino, se despertado para um interesse real, em pouco tempo ele se torna especialista, e vai se arranjar na vida. Você vai aqui em nosso laboratório de biologia (no Espaço Ciência), você vai encontrar uma coleção aí de insetos, que foi de um menino que apresentou em nossa feira de ciência. Ele catava insetos, e classificava e botava em uma caixinha. E esse menino está aí hoje, está seguindo a área de bIologia, ele vai ter um bom papel na vida. É uma das promessas.

Urariano Mota: Mas para um menino, um jovem estudante, o que seria mais essencial pra ele, fundamental? Ter a curiosidade de ler literatura, poesia, ou pegar matemática e física?
Pavão: Não, todas as alternativas são boas. Agora, o hábito da leitura é fundamental, porque hoje, com a internet, essas pílulas rápidas acabam desestimulando cada vez mais a leitura mais cuidadosa, ler um livro, um texto mais completo. Eu acho que o hábito da leitura é fundamental. Tem que ler. Eu ensino hoje, por exemplo, estou ensinando História da Química, eu pergunto assim na turma, na base do zero ou dez: “Que livro você está lendo?”. Impressionantes as respostas dos meus alunos: mais da metade não está lendo livro nenhum. E o rapaz que está lendo um livro, que já leu 2 ou 3 livros este ano, eu dou 10 pra ele. Porque esse rapaz, que leu 2 ou 3 livros, ele tem muito mais coisas pra fazer. Entendeu? Ler é fundamental. Você tem que se interessar por qualquer assunto.

E terminamos a entrevista, Ou melhor, fizemos uma pausa até a próxima, porque esse homem que não para é um divulgador de ciência melhor que Carl Sagan. Não pela força de séries mundiais na tevê, mas pela força de suas pesquisas e pela admiração que transmite o lado risonho da ciência.