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Rui Namorado Rosa: que representam aqueles que nos governam

Consultando a página oficial do atual governo português [1] verifica-se que, no total de 11 Ministros e 36 Secretários de Estado, se contam 15 ministros/secretários de estado com formação e/ou experiência profissional em Direito, 8 em Economia, 7 em Finanças, 3 em Educação, 3 em Gestão, 3 em Ciências, 3 em Engenharia, 2 em Saúde, 2 em Agricultura e 1 em Letras.

Por Rui Namorado Rosa*

Assinale-se que 30 dos 48 governantes (63%) tem formação em Direito ou Economia ou Finanças; as restantes formações e experiências estão dispersas. Deste elenco, 23% são doutorados e 13% reportam experiencia de gestão empresarial. O peso excepcional do Direito parece refletir algumas das vias preferenciais de intromissão (expressa e subterrânea) do poder econômico sobre a vida política do país [2].

O que tem esta composição a ver com as linhas programáticas ou o estilo de governação; ou como reflete ou não a composição e qualificação da força de trabalho do povo português? Qual o eventual paralelismo com outros países? A resposta não é fácil, todavia, alguns sentidos de resposta emergem dessa comparação, como se verá.

Para começar, a organização política difere de país para país, e o exercício do poder não está concentrado num só órgão. Por outro lado, os levantamentos da composição dos órgãos de governo em diferentes países não estão sempre acessíveis e posto que, quando existem, os critérios de classificação são diversos e não sobreponíveis, a viabilidade de comparação fica comprometida. Pois, não é possível construir um quadro comparativo de interpretação imediata e segura.

Todavia é interessante procurar identificar contrastes ou semelhanças entre países, e procurar as razões sociais, econômicas e políticas a elas subjacentes. E bem assim perscrutar como essas diferenças podem atuar ou de fato actuam sobre o sentido da acção política dos órgãos de governo respectivos.

Se formos examinar a composição do Congresso – House of Representatives plus Senate – dos EUA [3], constatamos que o recente 111º Congresso (2009-10) foi constituído por 541 eleitos os quais se identificaram, quanto à respectiva ocupação/profissão, com Serviço Público/Política 40%, Direito 38%, Empresariado/Negócios 37%, Educação 17%, Saúde 4%, Ciências e Engenharia 2% e Agricultura 2%; de notar que diversos congressistas indicam mais do que um atributo profissional, pelo que a soma de percentagens excede 100% no seu conjunto.

Neste universo, no que se refere ao nível de educação formal, 95% tinham um grau superior, sendo 23 doutorados (4,3%). Quanto a filiação religiosa, 55% eram protestantes e 30% católicos, um único ateu expresso; 17% eram mulheres; 121 eram veteranos das forças armadas; e a idade média no início da legislatura era 58 anos. Observa-se uma lenta progressão das qualificações dos congressistas ao longo das últimas décadas e uma lenta elevação da sua idade média. Importante assinalar que 50% dos congressistas haviam já sido legisladores em estados da União; e que 23% haviam feito carreira como membros de staff do Congresso ou da Casa Branca; o que reflecte a prevalência da “carreira política” no acesso ao exercício da representação popular.

Na democracia ao estilo dos EUA, o sector firmas de advocacia detém grande influência e desempenha uma função primordial ao serviço do grande capital industrial e financeiro. A advocacia engloba uma variedade de interesses relacionados com o direito, e compreende quer empresas que promovem legislação no interesse de determinadas corporações ou indústrias as mais influentes, quer dirigentes de firmas prestigiadas (incluindo anteriores legisladores ou altos funcionários governamentais) profundamente envolvidos na elaboração e na decisão política. Os membros destas firmas de advocacia, que são virtualmente parte integrante do estabelecimento político, encontram-se na base de dados do “Center for Responsive Politics” [4].

Assim sendo, o caminho mais direto dos potentados industriais e financeiros para o Congresso é através de uma “porta giratória” (“revolving door”) que converte ex-funcionários federais em delegados de propaganda (“lobbyists”), consultores e estrategistas ao serviço dos interesses empresariais (e outros), ao passo que ex delegados de propaganda são transferidos para carreiras no executivo ou funções influentes no Congresso. Enquanto funcionários do poder executivo, membros e altos funcionários do Congresso comutam entre os sectores público e privado, assim também privilégios, poder, e naturalmente dinheiro circulam a favor desses potentados.

As firmas de advocacia trabalham para promover os interesses econômicos mais poderosos e facilitam o fenômeno da porta giratória. O grande peso relativo das profissões do Direito no Congresso dos EUA, quer os eleitos quer o staff, reflete essa interdependência e simbiose em que se suporta o presente sistema político desse país. Contribuições financeiras das firmas de advocacia para candidatos federais e comités políticos têm aumentado ao longo dos últimos 10 anos e são consistentemente maiores nos anos de eleição presidencial; as firmas de advocacia contam-se entre os mais generosos doadores para as eleições federais (Congresso e Presidência) [4].

Este artefato da “democracia” tem sido replicado noutros países ocidentais e facilitado o avanço do pensamento e da prática política neoliberal, em que valores individualistas são exaltados e a separação entre interesse público e privado é dissimulada para que mais forte e livremente se exerça o poder do grande capital.

Passando à Europa, vejamos o Reino Unido, a câmara baixa – House of Commons – conta 650 eleitos. A composição emergente das eleições de 2010, no que respeita a formação e/ou ocupação profissional, foi: Empresariado 25%, Políticos 15%, Empregados 14%, Direito 14%, Educação 8%, Comunicação Social 6%, Trabalhadores Manuais 6%, Serviço Público 3% [5]. A grande maioria (90%) tem formação superior, sendo que mais de um quarto estudou em Oxford ou Cambridge – 103 em Oxford, 58 em Cambridge e 25 em London School of Economics.

Além disso, todo o percurso escolar dos futuros parlamentares confirma a persistência da seletividade elitista de classe no acesso à vida política no Reino Unido [6]. O grande peso do mundo dos negócios, da oligarquia e aristocracia na representação parlamentar parece evidente.

Passando à França, a Assembleia Nacional de 577 membros eleita em 2007 regista a predominância de empregados e executivos de Empresas, Comércio e Industria 18%, Funcionalismo e Serviço Público 15%, Educação 14%, Saúde 12%, Direito 8%, Empresariado 5%, Engenharia 4%, etc. [7]

Quanto à Alemanha, o parlamento Alemão – Deutscher Bundestag – conta com 622 eleitos. As eleições de 2009 conduziram à seguinte composição: Direito 18%, Engenharia e Arquitetura 14%, Funcionalismo Público 13%, Educação 7%, Ciência 6%, Política 6%, Teólogos 4%, Artes e Letras 3%, Comunicação Social 3%, etc. [8]

A disparidade entre estes dois países não parece explicável simplesmente por diferença de critérios de classificação, refletindo também a persistência de diferenças culturais importantes. Entretanto, identifica-se um maior distanciamento destes dois países relativamente ao Reino Unido, país onde a influência econômica e política do capital surge mais expressamente representada.

A Leste, quanto à Federação Russa, o atual governo é constituído por 27 ministros (incluindo o primeiro-ministro). Consultando a página respectiva [9] encontramos, classificando por formação/ocupação profissional: Economia e Finanças 40%, Ciências Políticas e Relações Internacionais 18%, Direito 15%, Ciência e Engenharia 15%, Diversos 11%. No total, 7 são doutorados (26%), e 5 reportam experiência em gestão/administração.

De relevar a o peso predominante de formações mais diretamente relacionadas com a administração do estado, e o peso das qualificações acadêmicas.

Olhando a Oriente, a Índia dispõe de duas câmaras das quais a “casa do povo” – Lok Sabha – totaliza 545 eleitos. Nela se verifica uma elevada concentração em dois grupos profissionais: Trabalhadores Sociais 48% e Agricultura 46%, a que se seguem Empresariado 20%, Direito 14%, Educação 10%, Artes e Letras 5%, Saúde 4%, Economia 4%, etc. [10] Nota: nesta contabilidade a soma excede 100% em razão de diversos parlamentares se identificarem com mais do que um atributo profissional. Neste universo, 77% dos parlamentares têm formação superior, e 30 (5,5%) são doutorados.

Trata-se de uma realidade social muito diferente do “mundo ocidental”, refletida na sua representação política. Todavia, no que toca a nível de qualificações formais, esta representação não se distancia muito das potências econômicas e políticas ocidentais.

Quanto à China, temos o Conselho de Estado que governa o país, sob a alçada da Comissão Política do PC China [11]. O Conselho de Estado é constituído por 35 elementos, que incluem 27 ministros, e é coordenado pelo Comité Executivo de 10 membros. Actualmente, entre esses 35 altos dirigentes, a larga maioria tem assento no Comitê Central do Partido, e 6 integram a respectiva Comissão Política. Examinando a formação dos ministros do Conselho de Estado, encontramos 26% de Economia e Gestão, 26% de Ciências Políticas e Direito, 22% de Engenharia, 7% de Relações Internacionais, 7% de Filosofia, etc. Ainda 85% deles tem graduação universitária e 26% são doutorados.

Já quanto à experiência e especialização profissional reportada, relevam igualmente Trabalho Rural, Trabalho Industrial, Relações Internacionais e Investigação Científica. A idade média é cerca de 60 anos, e a percentagem de mulheres é 11%.

Na China, nas décadas recentes até ao presente, tem havido proeminência de engenheiros e cientistas na liderança do país. No anterior comitê permanente da Comissão Política todos os nove elementos haviam sido educados como engenheiros. Os atuais Presidente e Primeiro-Ministro são engenheiros de formação, e entre os cargos de topo no governo do país, o maior contingente é de cientistas e engenheiros; porém essa predominância tende a nivelar-se para o futuro; o próximo comité permanente da Comissão Política prevê-se venha e ter uma composição muito diversificada nesse respeito.

Numa outra vertente, é já muito significativa a presença na alta hierarquia política de nacionais que adquiriram formação e/ou experiência profissional no estrangeiro (diáspora, migrantes e estudantes em mobilidade); presença que tende a acentuar-se; mas ao passo que decresce a proporção dos que tiveram essa formação na URSS e noutros países socialistas, vai crescendo a proporção dos que são oriundos do Ocidente e Japão.

No atual Comité Central do PC China 10% dos membros viveram, estudaram e/ou trabalharam no estrangeiro, proporção que se prevê continuará a aumentar no próximo XVIII Congresso (2012). Esses nacionais regressados representam já 21% no actual elenco de 193 ministros, vice-ministros e ministros-adjuntos; e a sua presença é já maioritária no topo da administração da Ciência e da Finança [11,12].

É de assinalar a diversidade de formações e de experiências profissionais no seio do Conselho de Estado e altos funcionários, bem como o elevado nível de graduação acadêmica. E contrastando com os EUA e outros países ocidentais, parece muito significativa a formação e experiência dos líderes políticos para a consistente e acelerada marcha para a industrialização do país (incluindo novas e avançadas tecnologias).

Em Portugal, a pesada predominância do Direito, Finanças e Economia, face à realidade da estrutura de capitais e da política econômica prosseguida, sugere uma deslocada e negativa proeminência do capital financeiro, explorando um país submerso em artifícios legislativos e disputas jurídicas estéreis, e amordaçado em contabilidade orçamental cega sem visão de futuro.

Ao passo que a debilidade da representação de competências em Ciências e Engenharia, e de experiência em gestão/administração empresarial, atestam a fragilidade para que foi remetido o aparelho industrial, e produtivo em geral. Um país vulnerável aos artifícios de “porta giratória” e suas sequelas de exploração do trabalho e do contribuinte, de desvio de recursos públicos, investimento improdutivo a favor de terceiros, especulação financeira.

Bibliografia

[1] Governo de Portugal, http://www.portugal.gov.pt/pt/o-governo/ministros.aspx http://www.portugal.gov.pt/pt/o-governo/secretarios-de-estado.aspx
[2] Poder & Associados, Paulo Morais, Correio da Manhã, 10 Janeiro, 2012.
http://www.cmjornal.xl.pt/detalhe/noticias/opiniao/paulo-morais/poder–associados
[3] CRS Report for Congress, Membership of the 111th Congress: A Profile, Jennifer E. Manning, December 27, 2010, http://assets.opencrs.com/rpts/R40086_20101227.pdf
[4] OpenSecrets.Org, Interest Groups, February 13, 2012
http://www.opensecrets.org/lobby/index.php ; OpenSecrets.Org, Lobbying Database, February 6, 2012 http://www.opensecrets.org/industries/index.php
[5] Social background of MPs, SN/SG/1528, Feargal McGuinness, 14 December 2010, www.parliament.uk/commons/lib/research/notes/snsg-01528.pdf
[6] The Educational Backgrounds of Members of Parliament in 2010, Research Report, The Sutton Trust, 10 May 2010, http://www.suttontrust.com/research/the-educational-backgrounds-of-mps/
[7] INTER-PARLIAMENTARY UNION, FRANCE, Assemblée nationale (National Assembly), http://www.ipu.org/parline-e/reports/2113_E.htm
[8] INTER-PARLIAMENTARY UNION, GERMANY, Deutscher Bundestag (German Bundestag), http://www.ipu.org/parline-e/reports/2121_E.htm
[9] Senior Russian Government Officers, http://government.ru/eng/gov/
[10] INTER-PARLIAMENTARY UNION, INDIA Lok Sabha (House of the People)
http://www.ipu.org/parline-e/reports/2145_E.htm ; The Indian Parliament as an Institution of Accountability, Devesh Kapur and Pratap Bhanu Mehta, January 2006, http://casi.ssc.upenn.edu/system/files/Indian+Parliament+-+DK,+PBM.pdf
[11] China’s Midterm Jockeying: Gearing Up for 2012 (Part 2: Cabinet Ministers), Cheng Li, China Leadership Monitor, Spring 2010
http://www.brookings.edu/~/media/Files/rc/articles/2010/0517_china_cabinet_members_li/0517_china_cabinet_members_li.pdf
[12] China’s leadership, fifth generation, Brookings Institution, Cheng Li, December 2007. http://www.brookings.edu/articles/2007/12_china_li.aspx

*Rui Namorado Rosa é colunista e escritor.

Fonte: ODiario.info