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João Batista: “Uma dor assim pungente não há de ser inutilmente”

O tempo é sempre relativo e implacável quando se trata do esquecimento de sofrimentos atrozes, como os dos pais, viúvos e órfãos das vítimas da ditadura. O único remédio é lembrar e pedir justiça. Recorde aqui os últimos momentos da vida de João Batista Drummond, mártir e herói do PCdoB assassinado pelos militares na Chacina da Lapa, há 35 anos. Parece que foi ontem. A sentença da ação que pede a retificação do seu óbito deve sair em dez dias.

Na última quinta-feira (29), o Fórum da Praça da Sé, em São Paulo, foi palco da audiência de instrução e julgamento do pedido de retificação de óbito do comunista João Batista Franco Drummond, dirigente do PCdoB torturado e assassinado em 16 de dezembro de 1976. Cinco testemunhas foram ouvidas e confirmaram a morte por tortura. Em dez dias, o juiz deverá proferir a sentença, concordando ou não com a retificação.

Egmar José de Oliveira, advogado da família, vice-presidente da Comissão de Anistia e membro do PCdoB, chama a atenção para a dimensão desse processo judicial, que abre precedentes para o resgate da verdade nas mortes e desaparecimentos mal contados de muitas outras vítimas das atrocidades da ditadura militar. Mais que isso: a retificação do óbito de Batista, até hoje atribuído a um acidente, fortalece as bases de instalação da esperada Comissão Nacional da Verdade, que poderá, enfim, identificar e penalizar os responsáveis por crimes como esse.

Oliveira afirma que o episódio que causou o assassinato do dirigente do PCdoB, no qual morreram dois outros líderes comunistas e que se tornou conhecido como Chacina da Lapa, foi uma extensão da Guerrilha do Araguaia: “Os militares já haviam acabado com todos, só faltavam Ângelo Arroyo, João Amazonas e Maurício Grabois, que eles supunham estar na casa da Lapa, por isso a invadiram. Eu penso que a ideia era aniquilar o Partido”, enfatiza.

Em um ano no qual o PCdoB rememora a trajetória vitoriosa de nove décadas, a inédita ação judicial da família Drummond, à qual Egmar está se dedicando voluntariamente, é mais um motivo de orgulho para o Partido, pioneiro na marcha pela verdade que vai exigir, além do suporte da lei, a mobilização de toda a sociedade para atingir o êxito.

Aldo Arantes, um dos depoentes na audiência pública, diz que o “escracho”, ato liderado por estudantes com o propósito de desmascarar torturadores, e o repúdio dos trabalhadores às comemorações dos 48 anos do golpe militar, demonstram maturidade da população e um aprofundamento do longo processo de democratização que o Brasil vem empreendendo desde a primeira gestão de Lula.

Arantes está otimista: acredita que os testemunhos – além do seu, constam nos autos os depoimentos do comunista Wladimir Pomar, do ex-deputado federal Haroldo Lima, do ex-ministro Nilmário Miranda e de Paulo Abrão, presidente da Comissão da Anistia – reconstituíram com fidelidade tudo o que ocorreu nos dias 15 e 16 de dezembro de 1976, comprovando a morte por tortura de João Batista.

Egmar também espera boas notícias e ressalta o fato de que a sentença pode restabelecer “não só a verdade, mas a dignidade do João, que morreu lutando dentro de instalações do Exército”.

Ao final da audiência da quinta-feira (29), Egmar entregou um documento com alegações próprias para anexar ao processo e acelerar a sentença. No documento, está retratada toda a vida de militante de João Batista e a covarde repressão dirigida ao PCdoB, como mostra o trecho a seguir:

“Ressalte-se que nesta época a perseguição aos militantes e dirigentes do PCdoB, que já era intensa, se tornou mais feroz e violenta, e, quando presos, os comunistas eram brutalmente torturados e, não raro, assassinados.”

O promotor poderá ou não concordar com a retificação, mas a sentença, que deve sair em dez dias, será definida pelo juiz Guilherme Madeira Dezem.

Anatomia de um crime

Acompanhe, a seguir, os principais trechos dos depoimentos de quatro das cinco testemunhas. Elas confirmam o assassinato por tortura de João Batista. São as tristes memórias de homens que lutaram e lutam até hoje, sob qualquer circunstância, pela liberdade e direitos humanos.

Wladimir Pomar

Saímos juntos (Pomar e João Batista, da reunião do Comitê Central do PCdoB, na Lapa) por volta de 20 horas. Uma das coisas que me chamou a atenção foi que o João Batista (Drummond) enrolou uns exemplares do jornal Classe Operária e os colocou dentro de um pacote de biscoito e isso foi essencial para que depois eu identificasse que ele estava preso comigo. Nós tínhamos um sistema de segurança que era entrar no carro de olhos fechados para não identificarmos quem nos transportava de volta para casa. O João Batista saltou primeiro e eu saltei cerca de 10 a 15 minutos depois dele. Eu percebi que estava sendo seguido, contei pelo menos oito carros policiais. Um fusca me abordou na hora em que eu estava na rua e um sujeito me perguntou onde ficava uma determinada rua em Pinheiros. Expliquei que a rua ficava à direita, mas o veículo, em vez de atender esta recomendação, atravessou a avenida. A pessoa que me pediu a informação desceu do veículo e eu (confirmei) que estava sendo seguido. Fui até um ponto de ônibus e lá identifiquei que o casal, que estava dentro do veículo já mencionado, lá estava também. Entrei no ônibus e olhei para fora, percebi outro veículo chegando para pegar esse casal. E ai foi uma questão de tempo para a minha prisão. Fui levado para o DOI-Codi na Tutoia. Identifiquei o local porque eles colocaram em mim um capuz com um pequeno furo, o que me permitiu enxergar durante o trajeto. Num primeiro momento fui vítima de muita pancadaria, chutes, socos e eles queriam que eu me identificasse. Mais tarde chegou o comandante da operação, que chamava a si mesmo de Dr. Marcos. Ele levantou o meu capuz, fechou os meus olhos e me identificou para os demais como sendo Wladimir Pomar. Chamou um médico para verificar o meu estado, pois tinha rompido o meu supercílio e havia uma suspeita de que eu pudesse ter fraturado a costela. Então eu fui colocado em um cubículo ao lado do local da tortura, onde havia um colchonete. Depois de um tempo eu descobri que o Drummond tinha sido preso, pois os carcereiros que tomavam conta de mim fizeram referência a alguém que tinha sido preso com um pacote de biscoitos contendo exemplares da Classe Operária. Depois de um tempo houve um enorme barulho, ouvi a movimentação de policiais descendo e subindo e vozes gritando "chama o Doutor " e que ainda diziam "esse aí caiu" e mais tarde vim a descobrir que se tratava da morte do Drummond. No dia seguinte, quando foram me interrogar novamente, me mostraram um álbum com todas as pessoas que tinham participado de Ibiúna e fizeram questão que eu reconhecesse a foto de Drummond, que eu tive dificuldade de identificar porque ele estava muito branco e na verdade ele era moreno. Só depois eu vim a entender que esta foto tinha sido tirada depois da morte dele. Creio que o branco seria maquiagem para disfarçar as lesões.”

Aldo Arantes

“Estávamos reunidos para a avaliação da guerrilha do Araguaia, não conhecíamos o local. Eu vi o Drummond colocar um exemplar do jornal Classe Operária num pacote de biscoito. Ele saiu antes de mim, eu depois saí e fui preso na estação Paraíso do metrô. Fui levado para o DOI-Codi e lá colocado em uma sala — nu e encapuzado — onde fui vítima de tortura. De repente a tortura cessou. Fui levado para outra sala, fiquei algemado ao pé da cama e ouvi um barulho intenso de uma reunião polêmica que ocorreria e que, depois fui entender, era uma reunião para se decidir o que fazer após o assassinato do Drummond. No dia seguinte pela manhã, fui levado para o Rio de Janeiro. Na viagem pude perceber que estavam presentes Elza, Haroldo e Wladimir. E Drummond, a esta altura, já estava morto. Ao me reencontrar com Wladimir e Haroldo no presídio Tiradentes, o Wladimir me contou que ouviu referências de que havia um preso com um pacote de biscoitos com o jornal Classe Operária, que era o Drummond, e que teria sido assassinado.”

Nilmário Miranda
(relator do processo de Drummond na Comissão de Mortos e Desaparecidos)

“Fui ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República de 2003 a 2005. Fui o proponente da criação da comissão de direitos humanos na Câmara dos Deputados e a presidi por duas vezes. Esclareço que, com a minha experiência como relator de 80 casos e por ter sido conduzido ao DOI-Codi por quatro vezes, a versão de que (o Drummond) pulou da torre é absolutamente inverossímil, pois não seria possível um preso escapar e subir na torre. Também deixo claro que a versão de que ele faleceu num acidente de carro foi desmontada na comissão à medida que se reconheceu de maneira unânime que aquela versão oficial era o chamado ´teatrinho´”

Haroldo Lima

“Os primeiros a sair foram Wladimir Pomar e o João Drummond. No segundo grupo fomos eu e Aldo. Eu me dirigi à minha residência na Pompeia e hoje percebo que fui seguido o tempo todo, mas na época não percebi. No dia seguinte, quando estou saindo de minha residência, eu sou preso. Eu fui jogado no carro com um capuz, já sofrendo pancadaria, e só depois vim a saber que fui levado para o DOI-Codi da Tutóia. Sofri espancamentos ao longo do dia, mas a tortura mais forte ainda estava para acontecer na Rua Barão de Mesquita no Rio de Janeiro. Naquela madrugada fui levado junto com outros companheiros para o Rio de Janeiro de avião e no avião pude identificar que estavam comigo o Pomar, Aldo e Elza Monerrat. No Rio de Janeiro fomos torturados por 11 dias e 11 noites com choque elétrico, cadeira do dragão, “geladeira” e, acredito que se a pessoa não tivesse um físico preparado, ela não aguentaria, acho que foi o que pode ter acontecido com o Drummond em São Paulo. Voltamos para São Paulo e ficamos no DOI-Codi durante algumas semanas e, quando foi quebrada a incomunicabilidade, fomos para o presídio do Hipódromo. Lá começamos a nos encontrar e a conversar. O que vou dizer agora eu ouço e repito há 36 anos: o Wladimir me contou a história que ele acabou de contar e o Aldo disse que quando ele estava sendo torturado de repente a tortura foi suspensa e não se retomou a tortura dele e houve uma movimentação muito grande mostrando que algo estranho tinha acontecido. Juntando uma coisa com a outra só posso concluir pela tortura. Porque eu queria dizer que naquela noite o Pomar e o Arroyo foram exterminados e o Drummond tinha sido preso junto com o Wladimir, então só pode ter sido a morte do Drummond (que causou a comoção no DOI-Codi). Queria complementar dizendo que, pela experiência que eu tenho da prisão e espero que tenha sido a última vez, não há a menor possibilidade de alguém fugir daquele lugar. Havia tantas pessoas fortes que é absolutamente fantasiosa qualquer versão de fuga.”