Sem categoria

A Revolução dos meninos (*)

Por Luiz Manfredini

No momento em que Lau se voltou para o Coati, uma lufada do vento frio que varria a grande avenida alvoroçou-lhe os cabelos. Em vão procurou ajeitá-los. O vento era forte e fustigava a manhã. Lau perguntou as horas.

Dez.

Temos tempo.

Gastavam o tempo caminhando pelas ruas de São Paulo, apesar do frio úmido.

Coati…
… não me chame assim. Podem nos escutar.

Está bem. Pedroso.

Sim, Floriano.

Riram comedidamente.

Podia ter arrumado um nome mais simples.

Floriano é simples.

É meio pomposo.

Dá efeito. Diga Flo-ri-a-no. Enche a boca.

É. Mas é pomposo.

Sorriram. Mantinham os olhos em torno, ora para a frente, ora pelos lados, de quando em quando para trás.

Estão nos seguindo?

Acho que não.

Obedeciam à norma de segurança de caminhar sempre em ziguezague, duas quadras para a frente, duas à direita, duas à esquerda e assim por diante. Em cada esquina, lufadas de vento frio. A multidão trombava pela calçada. Trabalhadores, gente apressada atropelando o caminho. Zoeira de automóveis e ônibus buzinando e cuspindo fumaça negra. O frio parecia aumentar e, pela cara amarrada do céu, garoa à vista.

Um brucutu chispou pela rua. Os dois fitaram o pesado carro verde de combate com um misto de curiosidade e temor.

Brucutu assustador.

Possui mangueiras para espirrar água com areia contra manifestações de rua.

Os caras estão preparando a visita do Rockfeller.

Você viu as patrulhas com cães pastores?

São as operações pente-fino. O Orestes caiu numa dessas.

Que fim deu ele?

Não sei. Deve estar trancafiado. Se não deram sumiço.

Era um bom sujeito.

Não fale era. O cara não morreu.

Tomara.

Não é mole, professor! É o AI-5!

Dia cada vez mais cinzento. O frio úmido gelava os ossos de Lau, o mais magro dos dois. Era com o inverno assim, casmurro e rabugento, que ele sentia aumentar a sensação de isolamento que a vida reclusa e oculta lhe impingia. A coriza constante umedecia-lhe o fiapo de bigode. A todo instante limpava as gotículas com a manga da camisa. Fechou o botão da gola, meteu as mãos nos bolsos e se encolheu.

Lanchonetes abarrotadas de gente se atracando com médias e pães com manteiga, os mais afortunados devoravam coxinhas, empadinhas, quibes. Lau ficou com vontade.

Coati apertou os braços em torno do corpo, também ele sentia o frio recrudescer. Expeliam nuvens de vapor pela boca. Desejavam, por vezes, movimentar-se mais, apressar o passo. Mas, para quê, se o tempo era largo?

Numa loja de discos, o som de uma orquestra de metais. Lau pensou no Moonlight Serenade. Uma dorzinha cutucou o peito e uma onda morna cresceu do estômago para a garganta. Saudade.

Saudade difusa, indefinível, um quê de nostalgia logo tragado pela balbúrdia da cidade na medida em que se afastavam da loja.

E o casamento?, perguntou Pedroso.

A Lúcia está tratando do papelório.

Mas quando vai ser?

Ela vai me avisar.

Lúcia fora trazida ao grupo por Sebastião. Estabanada, olhos irrequietos, vestidos longos, escuros, antigos, densa cultura cevada por estudos e leituras que a roubaram da infância e da adolescência, larga sensibilidade que a fazia amuada frente às misérias humanas, tornou-se a mais nova sensação do grupo. Todos os rapazes se apaixonaram, até mesmo o Coati, com sua capa impenetrável de reservas e temores.

Ao cabo de renhidas disputas quase sempre veladas, dois contendores restaram a disputar o coração de Lúcia. E, entre Lau e Coati, o primeiro levou vantagem e o namoro se estabeleceu. Quando Lau, tempos depois, decidiu propor-lhe casamento, o persistente Coati desvestiu-se de suas naturais precauções, abandonou as reservas, perdeu a timidez e atirou-se a mais uma investida. O combate final.

Você vai à casa da Lúcia, propôs Lau. Fala com ela, vê se ela topa ficar com você. Se topar, tudo bem. Se não, vou eu.

O Coati, que aguardava terçar armas com Lau em torno do amor de Lúcia numa peleja demorada, histórica e definitiva, ficou pasmo diante da proposta do amigo. Mas seguiu-lhe a recomendação.

Vai lá que eu te espero aqui no chalé, insistiu Lau.

Por mais de duas horas, Lau vagou pelo quintal, diante da floresta do seu Cajá, entre os cheiros do mato, o pio dos pássaros e as dolorosas mortificações da alma. Coati voltou sem graça, pálido e pesaroso. O combate que imaginara pujante e heróico tornara-se pífio e, além do mais, perdido. Lúcia não se tocara com sua investida. Lau então acertou com ela os detalhes preparatórios do casamento e, dias depois, viajou com o Coati para São Paulo.

Perto do meio-dia, o Coati avisou que deveriam seguir para o encontro a que deveriam comparecer.

Uma ruela de casas antigas desfolhadas pelo tempo. Uma padaria, uma banca de jornais, um açougue, a oficina de um sapateiro. Em frente à padaria, o ponto de ônibus.

Não tem ninguém com a porra da revista, inquietou-se Coati. Alguém portando uma revista do Tio Patinhas era o combinado.

E Lau, calma.

Na padaria o espanhol berrava um português arrevesado enquanto, com a camisa de mangas arregaçadas e um pano de prato no ombro direito, servia pingados para uma clientela barulhenta.
Sentiram o cheiro gorduroso do churrasco grego. Pararam no ponto.

Só temos dez minutos.

Entre os que chegavam, ninguém com a revista. Um negro de corpo avantajado, cara lustrosa e mal barbeada derrubava os olhos sobre a beldade que arrumava a maquiagem diante do espelhinho de bolso. Uma velha impaciente reclamava do atraso dos ônibus. O tempo passava. Um ônibus chegou, a velha e a mulher entraram, o negro mandou um muxoxo para a moça. E riu e passou a retirar sujeira debaixo das unhas com um palito de fósforo. Outro ônibus, o galanteador entrou. Outros chegaram ao ponto. Ninguém com o Tio Patinhas.

Há dias Lau e Coati compareciam a pontos. Quando o contato aparecia, era para dizer sempre o mesmo, nada ainda havia sido resolvido.

Esse cara não vem. O Coati estava impaciente.

Claro que vem, devolveu Lau, cuja atenção desviava-se para uma colegial no outro lado da rua.

O sujeito com o Tio Patinhas chegou no limite da tolerância de dez minutos. Encostou-se numa coluna da padaria e escancarou a revista diante dos olhos. Lau aproximou-se.

É aqui que passa o ônibus para o Limoeiro?

E o outro, aqui passa para Farinhas.

Pensei que Limoeiro fosse perto de Farinhas.

O contato estava estabelecido.

Ainda não tenho nada pra vocês, disse o rapaz com o Tio Patinhas.

Era um jovem magro de pele amarelada. Devia ser esquistossomose, essa turma do Nordeste tinha muito disso, pensou Coati, logo simpatizando com o que lhe pareceu um herói da resistência, abnegado e faminto como todos. Percebeu, por trás do semicírculo das olheiras, duas bolinhas negras irradiando um viço incomum.

Houve problemas, explicou, e não conseguimos trazer as informações que pretendíamos. Quem sabe amanhã na mesma hora, aqui.

Coati e Lau olharam-se, decepcionados. Mais cansaço que decepção. Outras vinte e quatro horas de espera sem saber, afinal, as tarefas que lhes seriam atribuídas. Era de amargar o ritmo lento em que as coisas se arrastavam, o prolongamento das indefinições, sem falar nos riscos de ficar zanzando pelas ruas.

Despediram-se, sumários, como convinha. O rapaz do Tio Patinhas tomou um ônibus, em seguida os dois embarcaram noutro e a manhã – com suas esperanças – estava dissolvida.

Vamos pegar uma bóia, sugeriu Coati.

Lau atracou-se ao prato feito que fumegava diante de si. A gororoba nem de longe lembrava a comida de casa.

Tinham pela frente a tarde inteira. Depois, cada qual voltaria para onde estavam hospedados, para na manhã seguinte começar tudo de novo.

Onde você está parado?, quis saber Coati.

Na casa de um casal de japoneses.

É bom, lá?

Quase nem fico. Durmo na sala, debaixo da mesa. Tenho que sair de manhãzinha pra não dar na vista para os vizinhos.

Tem escrito?

É o que me salva, e Lau suspirou longamente.

Caminhavam com a fome sossegada. Feijão, arroz, farinha, batata, essas coisas levantam um boi e ajudam a conter o frio. Fumavam com gosto enquanto seguiam pelo marasmo do início de tarde. Foi quando uma pequena multidão desembestou às carreiras de um edifício caindo aos pedaços, trombando uns nos outros, aos tropeços, bufando sons ininteligíveis. Lau e Coati foram apanhados pela turba e arrastados quase ao meio da avenida. Assustados, voltaram à calçada para entender a confusão, quando ouviram uma voz esganiçada berrar a poucos metros de onde estavam:

Não percam! Aqui, a mulher que se transforma em gorila!

Defronte de uma portinhola comercial que dava diretamente para a calçada e ao lado de um grande cartaz desenhado a mão em que se fundiam a imagem da mulher atraente e do gorila horripilante, o anunciador, um anão mascando um palito, animava o público.

Não acreditam? Quem não acredita? Entrem e vejam com seus próprios olhos!

Coati olhou, surpreso, para Lau, que lhe devolveu um olhar ainda mais perplexo. O anunciador não dava folga.

A mulher que se transforma em gorila!, berrava. A bela que se transforma na mais horrível das feras!!! Aqui, só dois cruzeiros. Venham, não vão se arrepender!

Vamos?, indagou Coati.

Lau em silêncio. Dúvida.

Vamos?, repetiu o amigo.

Você acha?, Lau ainda indeciso.

Vamos ver esse negócio.

Entraram, desconfiados, tocados por uma ponta de vergonha. Com eles, pequena multidão de trabalhadores suarentos, excitada mais pela perspectiva de ver a mulher desnuda do que pela transformação em gorila, acotovelava-se naquela espécie de garagem desprovida de qualquer móvel, diante de uma enorme jaula vazia e debaixo de luz mortiça.

Logo que o público entupiu o lugar, tornando o ar quase irrespirável e o ambiente carregado do fedor de sovacos e hálitos pestilentos, algumas lâmpadas foram apagadas. A iluminação tornou-se de um amarelado turvo. Um refletor despejou sobre a jaula um feixe de luz encarnada. O apresentador oculto lascou pelo alto-falante:

Senhoras e senhores, temos a honra de lhes apresentar Zo-rai-de, a mais bela entre as belas.
E não mais perdeu-se em prolegômenos. Calou-se. A mulher, de biquíni, surgiu de um cortinado negro e meteu-se na jaula rebolando com exagero, debaixo de berros e assobios da platéia que erguia os braços, pisoteava o chão e, como que desejando tocá-la com as palavras, arremetia uma saraivada de gracejos rudes. A porta da jaula foi trancafiada. O alto-falante cuspia uma trilha sonora ordinária.
Lau e Coati apertavam-se no meio da platéia, calados, respiração suspensa, olhos presos na mulher. Zoraide excedia-se nos bamboleios, simulando versão tosca da dança do ventre, forçando gestos de sedução e lançando, para delírio do público, olhares fogosos de lascívia. Mulher jovem. Volumosos cabelos negros, lábios espessos escandalosamente pintados de um vermelho sanguíneo e uma engenharia de traços e sombras conferindo aos olhos castanhos um fulgor ordinário. Gordurinhas marcavam o corpo com uma topografia irregular.

Em poucos minutos, no entanto, Zoraide passou a desafinar a dança e os gestos intencionalmente sensuais foram se tornando bruscos, quase convulsivos. A música se alterou para tons rascantes. A platéia substituiu os apupos por um silêncio de convento. Então Zoraide agarrou as grades, sacudindo-as cada vez mais fortemente. O apresentador oculto proclamou:

Senhoras e senhores, muita atenção! Este é o ponto alto do nosso espetáculo.

A assistência, em silêncio, olhos pregados na jaula.

Atenção, senhoras e senhores, muita atenção!, berrava, procurando mostrar-se, ele próprio, estupefato. Percebam as transformações na bela Zoraide. Observem os pelos que vão cobrindo os braços de Zoraide, as pernas de Zoraide. Vejam os pelos que começam a surgir no tórax e no pescoço de Zo-rai-de!!!

De fato, aos olhos perplexos de Lau e Coati e do público que ali se apertava, a mulher foi-se cobrindo de uma pelugem longa, negra e crescentemente espessa, enquanto assumia gestos e uivos simiescos. Na platéia, uma quietude de assombro.

Senhoras e senhores, nossa bela Zoraide tornou-se um baita gorila.

Toda a mulher era um gorila enorme, balançando-se de um lado para outro na jaula que parecia subitamente miúda para o corpanzil do animal, agarrando e sacudindo com patas as grades rangentes, expelindo um uivo entre lamurioso e feroz. Seu pisotear sobre o chão da jaula produzia ruído pavoroso. Todo o pequeno recinto tremia. Quando o sacolejo do animal pareceu quase espasmódico, acompanhado de batidas de pés e rugidos estrondosos, o apresentador ressurgiu, apresentando menos perplexidade do que pavor.

O que é isso? Mas o que está acontecendo?

De súbito, a um murro do gorila, a porta se escancarou e, diante da platéia, surgiu o animal portentoso, grunhindo e extravasando gestos largos com patas, braços e cabeça. A platéia soltou um urro de pavor e se precipitou para a rua com uma fúria de manada em estouro. Prensados entre a massa em fuga, Lau e Coati corriam assustados. Foram despachados na claridade da avenida, suados, ofegantes, olhando-se incrédulos. Havia, em seus olhos esbugalhados, surpresa, medo, exaustão e, no fundo, a mesma vergonha de quando pisaram o minúsculo recinto, minutos antes.

Não pode ser! Não pode ser! repetia Coati.

Lau estava sem voz, pálido e interrogativo.

Rapaz, não pode ser!, voltou Coati, sacudindo o amigo pelo braço.

A multidão se dispersava, ofegante, muitos ostentando um sorrisinho desenxabido de quem fora pego de surpresa. Logo o anão voltou a conclamar os passantes para o espetáculo da mulher-gorila.

É preciso tirar isso a limpo!, disse Lau, ainda não refeito do susto.

Voltaram à espelunca. Nova assistência, mas os mesmos odores de hálitos e suores, o mesmo palavreado rude, a mesma balbúrdia de homens feito crianças. A mesma Zoraide rebola e dança, o apresentador mostra seu espanto com os pelos que começam a cobrir a mulher, o gorila ruge nervoso, bate nas grades, a porta se abre, a multidão corre. Empurrados pelo tropel, Lau e Coati são novamente cuspidos para a calçada surpresos e amedrontados.

Porra, esse negócio é maluco!, desabafou o Coati.

E Lau, tem alguma coisa errada aí!

Bem que desejavam voltar para decifrar o mistério. Mas, sem dinheiro, afastaram-se resignadamente da portinhola que dava acesso à exígua arena. Esquecidos das normas de segurança, do ponto transferido para o dia seguinte, do tempo a gastar em andanças cansativas, dos rigores do inverno, da fome e da desolação da vida subterrânea, seguiram para o entardecer ruminando o espetáculo da pavorosa transmutação. Enquanto caminhavam, trocavam olhares, primeiro de susto, depois de vergonha, por fim renderam-se ao cômico e o dia minguou sob o riso solto dos dois.

(*) Título da Redação. Trecho do romance Memória da Neblina. Luiz Manfredini. Curitiba, Editora Ipê Amarelo, 2011