Francisco Hardman: O poder do escracho

Apontar os torturadores é legítimo e eficaz, como comprovam Argentina, Chile e Uruguai.

Por Francisco Foot Hardman, escritor ensaísta, crítico literário, professor titular do Departamento de Teoria e História Literária da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

Escracho ou esculacho? Você decide. Porque, de repente, eles estavam por toda parte. Cartazes, pichações, faixas, imagens desenhadas ou pintadas no asfalto da rua. Pois é das ruas que se trata, de uma nova significação do espaço público normalizado pela "boa vizinhança" e pela operação sistemática de produzir o esquecimento para apagar, das memórias individuais e coletivas, os últimos traços de medo que teimavam em sombrear a alma vazia desses homens sinistros.

Pouco importa, nesse caso, a privacidade do "lar, doce lar", a solenidade do local de trabalho. É preciso botar a boca no trombone e assinalar essa geografia do "antilugar", do "não lugar", desvelar esse inconsciente de uma história que teima em reaparecer quando muitos a imaginavam sepulta.

Os espectros dos desaparecidos são o GPS real que guia essas alegres levas do Levante. Boa parte das centenas de jovens e representantes de familiares de desaparecidos da ditadura que se espalharam em manifestações políticas contra o esquecimento e a impunidade de torturadores e outros responsáveis pelas ações do aparato de terrorismo do Estado durante a ditadura militar em cidades como São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte, Belém, Fortaleza, não viveu aqueles anos. Isso é tanto mais notável quanto virou ideia fixa repetir que o Brasil é o país da desmemória. Quantos Harry Shibatas precisarão ser ainda desmascarados? Porque é certo que esse médico-legista coqueluche da "legalização" dos extermínios praticados por agentes da Oban e do Deops não foi caso único no amplo aparato do terror instalado pelos serviços da inteligência do regime militar. Quantos mais foram cúmplices dos perpetradores, administrando a ciência médica a serviço da "otimiza ção" das dosagens de tortura? Quantos juramentos de Hipócrates rasgados sem nenhuma punição dos conselhos regionais ou nacional de medicina?

O escracho é uma manifestação legítima e eficaz. Comprovou-se isso na Argentina, no Chile e no Uruguai. Não deve pretender a violência física da invasão de domicílios ou ataques diretos aos homens sinistros. Apenas desmascará-los em praça pública, in absentia. Não pode, de modo nenhum, ser um movimento a substituir ou a se sobrepor à Comissão da Verdade, que certamente em breve iniciará seus tão relevantes trabalhos. É, na verdade, um livre momento de expressão e desabafo da sociedade civil organizada. A informação precisa e atualizada, a rapidez e leveza de sua estrutura de mobilização, em que a internet joga, como em outros exemplos recentes de democracia direta, um papel decisivo, bem como a imaginação criadora de suas variadas formas, esses são seus ingredientes de sucesso.

Pode-se dizer que, defronte à decrépita sessão nostalgia do Clube Militar, no dia 29 de março, ensaiou-se igualmente um escracho.

Evitar o confronto e a violência física, no entanto, deve ser sempre um objetivo no sentido de ampliar seu entendimento e simpatia pela opinião pública. Os homens sinistros sempre foram mestres na arte da provocação: não é o caso de entrar no seu jogo, nem de lhes oferecer pretextos banais. Os matadores dos porões da ditadura não merecem nenhum pedestal da fama, mesmo que perversa. Mereceriam, sim, a imputação nos crimes contra a humanidade em que estão diretamente envolvidos, conforme o entendimento assentado pelo direito humano internacional e pelos tratados e acordos da ONU e da OEA dos quais o Brasil é signatário. Mas tal questão é objeto de outras instâncias, e a Comissão da Verdade é passo significativo no sentido de sua desejável revisão. Jamais o escracho deve se impor
tarefas que lhe são de todo impróprias ou inalcançáveis. Sua força maior reside, justamente, em sua completa extraoficialidade. É um ato político. É uma prática pedagógica. E isso por si só é muito.

Lembre-se de que nem só de apontar a geografia "normalizada" dos homens sinistros é feita a agenda criativa do escracho. Em Buenos Aires, por exemplo, tiveram peso considerável na revisão da história os escrachos feitos diante da tenebrosa Garagem Olimpo e da oficina mecânica Automotores Orletti, ambos centros clandestinos de detenção, tortura e extermínio (CCDTEs) da ditadura argentina, placidamente instalados no bairro de classe média Flores. Eu, quando passo ainda hoje ao lado do lugar que abrigou a infernal Oban, no plácido bairro do Paraíso, em São Paulo, sinto o coração gelar.

Mas quantos moradores saberão que lá também terá sido o cenário do maior CCDTE do Brasil? Pouquíssimos, certamente. O mesmo se poderia dizer, para ficar em outro exemplo emblemático, a respeito da "Casa da Morte" em Petrópolis, até hoje mantida como propriedade privada.

Os espectros dos mortos e desaparecidos da ditadura continuam a assombrar, como anjos da memória, a incúria e a arrogância dos que se julgaram deuses da vida e da morte nos bastidores da ditadura. Os escrachadores de hoje não pretendem ressuscitá-los. Apenas inscrever seus nomes à luz do dia e da história. E com alegria jovial, contra os homens sinistros, repor cada uma das imagens sobreviventes possíveis de nos restituir verdades do tamanho de cada uma daquelas vidas dilaceradas.