Globo enfrenta ação por cena de abuso sexual

O Ministério Público Federal em São Paulo, por meio da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, ajuizou ação civil pública contra a TV Globo e a União, com pedido de liminar, para que a emissora deixe de transmitir durante o “Big Brother Brasil”, seja em TV aberta ou em TV a cabo ou por qualquer outro meio, cenas que possam estar relacionadas, mesmo que em tese, à prática de crimes.

À União, o MPF requer que a Justiça Federal determine a obrigação de fiscalizar o reality show por meio da Secretaria de Comunicação Eletrônica do Ministério das Comunicações.

Ao final do processo, o MPF requer, além da manutenção das eventuais liminares concedidas, que a Rede Globo seja condenada a elaborar e divulgar campanha de conscientização à população acerca dos direitos das mulheres, visando a erradicação da violência de gênero, além de adotar as medidas necessárias para monitorar as condutas praticadas pelos participantes do reality show com o intuito de impedir a exibição de imagens atentatórias aos valores éticos e sociais ou a imediata reparação dos danos causados pela eventual exibição dessas imagens.

Em 17 de janeiro deste ano, o Ministério Público Federal em São Paulo, após milhares de manifestações de telespectadores nas redes sociais e reportagens de jornalistas especializados, abriu procedimento visando apurar a violação de direitos da mulher no BBB 12.

O fato que causou essa comoção social foi a exibição, na madrugada de 15 de janeiro deste ano, de imagens de um suposto estupro de vulnerável ocorrido no programa, constatado por telespectadores da atração em sistema pay-per-view, que desconfiaram da prática do abuso pelo fato de que enquanto ambos estavam na mesma cama ocorreram movimentos característicos de sexo entre os participantes Daniel e Monique, sendo que ela aparentemente dormia em razão de excesso de consumo de álcool.

A cena de abuso

As imagens do suposto abuso sexual foram exibidas durante 9 minutos e 29 segundos da versão pay-per-view do BBB12. Um pequeno trecho da cena foi exibido na versão do programa, em TV aberta, no mesmo dia 15, na edição que trouxe um resumo da festa na véspera.

Pela análise das cenas exibidas no pay-per-view, pode-se interpretar a possível ocorrência de abuso sexual, uma vez que Monique aparece parada na mesma posição todo o tempo em contraste com a intensa movimentação de Daniel, com conotação sexual. Ainda, pela análise da cena, pode-se observar que a movimentação do rapaz só termina após a intervenção de Monique, que o afasta com a mão, no que pareceu ser um ato de defesa.

O MPF, é bom deixar claro, não está acusando Daniel de abuso sexual. A ação civil visa tão somente a adequação do programa para impedir que cenas, que dêem margem a interpretações do gênero, aconteçam novamente, e, pior, sejam exibidas em qualquer modo de transmissão. O caso foi investigado na esfera penal pela Polícia Civil do Rio de Janeiro, mas que foi trancado em virtude de, em depoimento, Monique ter declarado que os atos foram consensuais.

Entretanto, as cenas exibidas, independentemente do alegado por Daniel e Monique à polícia, deram margem a esse tipo de interpretação de sexo não consensual e, no mesmo dia, o assunto tomou proporções gigantescas no Twitter, sendo um dos assuntos mais comentados da rede social e em sites jornalísticos ou não, naquele dia e nos seguintes.

Omissão

Entretanto, na avaliação do MPF, mesmo após a advertência do público, a direção do programa nada fez para remediar os danos do suposto crime e da veiculação das imagens. Pior, “de forma imprudente, realizou a exibição de trecho destas imagens no programa transmitido na noite do mesmo dia 15 de janeiro”. A cena aparece aos 09 minutos e 40 segundos da gravação enviada à Justiça Federal pelo MPF como prova. Logo em seguida, o apresentador Pedro Bial comenta: “O amor é lindo”.

Para o Procurador Regional dos Direitos do Cidadão em São Paulo, Jefferson Aparecido Dias, autor da ação, a direção do BBB e a Rede Globo só adotaram providências após a instauração do inquérito policial (que abriu a investigação após uma representação externa), quando decidiu expulsar Daniel do programa, por infração ao regulamento do reality show, conforme informado por Bial na edição de 16 de janeiro.

“A expulsão de D.E. demonstra que os diretores do programa e a Rede Globo também reconheceram, mesmo que tardiamente, a potencialidade abusiva da conduta deste participante em detrimento de M.A.”, afirma Dias na ação.

Submissão da mulher

Entretanto, para o MPF, mesmo após reconhecer o abuso e o potencial crime na conduta de Daniel e a consequente expulsão dele, “a Rede Globo deixou de adotar medidas em prol da reparação dos danos causados pela exibição das imagens em questão, atentando, desta forma, contra os propósitos do Poder Público e da sociedade no sentido da afirmação dos direitos humanos da mulher, da desconstrução do estigma de submissão do sexo feminino ao sexo masculino e de combate à violência de gênero no Brasil”, afirma Dias.

Somente no Estado de São Paulo, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública, ocorreram 80 casos de violência contra a liberdade e a dignidade sexual da mulher no mês de janeiro, o que demonstra o quanto é incompatível a exibição pela TV de cenas que possam sugerir um estupro, pois apesar de todas as iniciativas do poder público e da sociedade, como a Lei Maria da Penha e a existência de uma Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, a violência de gênero persiste.

A Rede Globo foi questionada pelo Ministério Público Federal do Rio de Janeiro, que também instaurou procedimento para apurar os fatos ocorridos no reality show. Em síntese, a emissora afirmou que o BBB “não se trata de uma obra de ficção, mas de um reality que, sem roteiro previamente aprovado – promove convivência entre pessoas de diferentes origens, provocando reações espontâneas entre os participantes”. Disse ainda que as cenas entre Daniel e Monique não foram ao ar na TV aberta, o que não corresponde à gravação obtida pelo MPF da edição do dia 15, que contém um trecho da cena.

Para o MPF, isso só aumenta a lesão ocasionada pelas imagens exibidas na versão pay-per-view do programa. Na ação, Dias recorda que essa não é a primeira ação do MPF-SP contra o BBB. Em 2010, a emissora foi condenada a prestar esclarecimentos ao público sobre as formas de contágio do vírus HIV por conta da exibição de um comentário do futuro vencedor do BBB 10, Marcelo Dourado, que disse que “hétero não pega Aids”.

Repetidos erros

Para o MPF, a Globo errou ao não ter tentado intervir na cena entre Daniel e Monique e errou novamente ao manter a cena no ar por tanto tempo e errou uma terceira vez por não ter acionado a polícia. Na ação, é citada entrevista da BBC Brasil com o especialista em mídia da BBC britânica Torin Douglas, que ressaltou a necessidade de monitoramento constante sobre todos os participantes para evitar que crimes sejam consumados, como ocorreu na edição britânica do programa, que, em 2004, exibiu uma briga entre dois participantes que resultou em ameaça de morte de um contra o outro e uma sanção ao Channel 4, que exibia a atração.

Na entrevista, Douglas cita o livro “Dead Famous”, de Ben Elton, que gira em torno de um homicídio ocorrido em um reality show. “A obra é de ficção, mas infelizmente a realidade do BBB não é longínqua de tal hipótese, considerando a diversidade das pessoas confinadas, e as inúmeras artimanhas da direção do programa para gerar conflitos entre estes, tais como o “Monstro” e a separação dos participantes em grupos rivais, e o ineficiente aparato de monitoramento das condutas dos participantes, demonstrado pelo episódio do BBB 12”, afirma Dias, que ressalta ainda que o número de camas menor que o número de participantes contribui para abusos contra as mulheres.

Para o MPF, a falta de ação da Globo para evitar a exibição da cena e a ocorrência dela, não importando se na TV aberta ou fechada, são graves violações aos princípios do artigo 221 da Constituição, à Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra Mulher (Convenção de Belém do Pará), de 1995, ao art. 28 do Regulamento dos Serviços de Radiofusão, de 1963, e à Lei Maria da Penha, que prevê no inciso III de seu artigo 8º “o respeito, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e sociais da pessoa e da família, de forma a coibir os papeis estereotipados que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar”.

“O MPF optou por ajuizar a ação após o fim do programa para termos oito meses para debater o desrespeito aos direitos da mulher na TV e, também, como as emissoras podem intervir nos reality shows de modo a impedir que crimes ou cenas sugerindo crimes ocorram e, caso ocorram, deixem de ir ao ar. Evitamos ainda gerar uma publicidade gratuita ao programa caso fosse discutida a questão com o programa no ar”, afirma Dias.

Fonte: Blog do Nassif