As cores da escuridão de Fellini

Livro recém lançado dá o gancho para abordar a obra de um dos mais importantes cineastas, com uma visão universal do espetáculo da grande tela.

Por Marcos Aurélio Ruy*

Fellini (1920-1993) é um dos grandes nomes do cinema; ele influenciou gerações de cineastas. Juntamente com Eisenstein, Kurosawa, Rossellini, Pasolini, Glauber Rocha, Truffaut, Lynch, Buñuel, Bergman, Orson Welles, Hitchcock, entre outros, ele elevou a sétima arte a níveis jamais vistos anteriormente. É uma cinematografia obrigatória para quem ama o cinema e anseia por mais sair da rotina holllywoodiana. Exatamente por isso a leitura de A Arte da Visão, uma longa entrevista com Fellini feita por Goffredo Fofi e Gianni Volpi.

Felinni foi autor de películas antológicas como Mulheres e Luzes (1950), Abismo de um Sonho (1952), Os boas-vidas (1953), A Trapaça (1955), Noites de Cabíria (1957), A Doce Vida (1960), 8 ½ (1963), Satyricon (1969), Os Palhaços (1970), Amarcord (1973), Casanova (1976), Ensaio de Orquestra (1979), Cidade das Mulheres (1980), E la Nave Va (1983), Ginger e Fred (1985), A Voz da Lua (1990). Ele será vivido no cinema pelo ator Wagner Moura na produção independente norte-americana Fellini Black and White, do diretor Henry Bromell.

Os filmes de Fellini retratam a Itália e os italianos de maneira límpida e honesta. A entrevista que deu base ao livro foi feita em abril de 1993 e Fellini morreu em outubro do mesmo ano. Ele tinha uma posição irônica em relação a homenagens: não queria ser considerado um “monumento” porque “um monumento é pesado e imóvel. E tem pombos na cabeça”, disse.

Para Fofi, ele “conseguia, sem esforço, transformar os nossos vícios em virtudes”. Já o escritor Ítalo Calvino o definia como um “homem de múltiplas curiosidades intelectuais e humanas” e de “relacioná-las para compor uma imagem do mundo com uma coerência interna e um sentido das causas do mistério”. Já Volpi vê a obra de Fellini como o retrato de um mundo disforme, antes que deformado.

Fellini reclamava do modo invasivo dos produtores e patrocinadores do cinema: “sempre avisei do perigo de que nessas várias fases (as de se fazer um filme), destinadas a manter o filme sob controle, encaixotando-o às vezes numa especialização, ao representá-lo de modo total, todavia por um aspecto particular (literário, figurativo, cenográfico, dos rostos), poderiam por fim estragar um filme, desnaturando-o ou, aos poucos, colocando nele pequenas máscaras que finalmente corriam o risco de fazer esquecer a verdadeira face, o ‘caráter’ do filme”. E complementa seu pensamento ao dizer que “o cinema teve dificuldade para se libertar de certos tipos de condicionamentos pelos quais o autor, que desejava se exprimir com liberdade de um pintor ou de um escritor, deveria defrontar-se com esses guardiões do portal, que tinham a pretensão de saber o que o público queria” e dessa forma bloqueiam a criatividade de todo artista que está acima dos poderes estabelecidos.

A Itália e o mundo

A sétima arte também sofre a concorrência da tevê e os efeitos da globalização; por isso, diz Fofi, Fellini vivia experimentando maneiras para falar “a um público maciço, desatento e transtornado pela estupidez do consumo, da televisão, da publicidade, da ofegante – ora ingênua, ora criminosa – adequação de cada mídia e de cada instituição a uma corrida sem rumo, sem mais sentido evidente”. O próprio diretor definia seus trabalhos como “uma mistura de emoções pessoais”, ou seja, “as cores da escuridão que vivem em mim, que vivem em nós”. Seus filmes eram a representação de sua própria vivência, de suas memórias, indignações e esperanças. E dizia, “a luz é tudo, o verdadeiro universo de expressão do cinema. É sentimento, ideologia, filosofia, adjetivação”.

Fofi diz que Fellini era esnobado pelos produtores por ser “caro demais e de lucros sempre menores”, num cenário em que “o cinema havia mudado, a televisão sobrepujado e castrado o cinema. E ainda por cima, o seu cinema disfarçava cada vez menos o sentimento de morte, que pertencia a toda uma civilização”. Fellini diz que sempre pretendeu “captar a realidade tal como era”. Via as dificuldades da realidade italiana como a raiz das dificuldades do cinema. “Acho impossível aceitar que não exista mais, que seja fechada uma sala de cinema – onde as pessoas que saíram de casa se reúnem, se encontram, entram, sentam e aí a luz se apaga, um feixe luminoso parte e ilumina uma grande tela, e aparecem rostos enormes, que começam a falar. Parece-me que esse ritual, no qual nasci, no qual reconheço a minha vida, não pode desaparecer. Não tanto porque faço cinema, mas porque eu o conheci, ele me protegeu, protegeu minha adolescência do fascismo, da igreja, da família, da escola, da ignorância”…

*Colaborador do Vermelho


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Serviço:
A Arte da Visão. Federico Fellini, São Paulo, Editora Martins Fontes