A crise, a reforma trabalhista e o gasto militar da Espanha

Em plena crise, a Europa segue em foco por assuntos tanto de bem-estar social quanto de matéria de defesa. O “complexo militar-industrial”, que há muito chama a atenção de críticos dedicados à análise dos gastos dos Estados, não escapou de ser esmiuçado pelo último informe do Centro Delàs de Estudos pela Paz, do Instituto Justiça e Paz, de Barcelona, na Espanha.

Por Moara Crivelente*

Publicado em abril deste ano, o informe reproduz as críticas de muitos pensadores influentes na Espanha atual, como Pere Ortega e Arcadi Oliveres, o primeiro dedicado ao tema militar com relação aos gastos do Estado, entre outros temas sociais, e o segundo, a temas ligados à participação civil na construção de um novo sistema socioeconômico. Ambos são membros de Justiça e Paz.

Intitulado O complexo-militar industrial: Um parasita na economia espanhola, o relatório demonstra o gasto da Espanha em matéria militar através de dados publicados em documentos oficiais do governo, como o último Orçamento Geral do Estado, aprovado recentemente e motivo de grandes protestos, pelos profundos cortes nos gastos sociais, sobretudo.

Neste cenário, se questionam as prioridades do governo de Mariano Rajoy, do Partido Popular (PP), no que toca aos investimentos e aos cortes previstos. Os altos índices de desemprego e a reforma trabalhista foram também motivo de protesto no último dia 29 de Março, em que o país teve a sua sexta greve geral em toda a história. O mundo viu, através dos meios de comunicação mais superficiais, algumas ruas barcelonesas em chamas, confrontos entre manifestantes e os Mossos d’Esquadra (os policiais) e algumas lojas centrais depredadas. Quase não soube, porém, da expressão pacífica do protesto – sensível e reconhecidamente majoritária – ou sobre a irredutibilidade do governo, que praticamente não negociou com os líderes sindicais e afirmou, em discurso duro, que a reforma não seria modificada, em essência.

Um dos principais pontos de protesto contra esta reforma é a bem conhecida redução dos direitos e garantias trabalhistas, levando à precariedade as condições laborais, sob o pretexto de facilitar a contratação. Os níveis de desemprego atingiram números recordes com relação à população ativa desempregada, segundo o Instituto Nacional de Estatísticas espanhol. A soma hoje é de 5.639.500 pessoas, ou seja, 24,44%. Mesmo assim, depois da reforma trabalhista, despedir um empregado hoje é muito mais fácil e barato, ainda que o PP tenha dito, durante as eleições, que não pretendia deixar mais barato o despedimento. Ainda, o relatório demonstra que o Estado espanhol corta mais em gastos com a educação do que em gastos com a defesa.

O Centro Delàs atualmente se dedica a evidenciar a ligação entre as consequências da crise, as prioridades do governo e o investimento ou apoio à indústria militar, em um ambiente em que também o resgate de bancos privados feito pelo Estado tem sido duramente questionado. Não se encontra a lógica entre esta política de resgates e o empenho do governo nos cortes de gastos sociais. Além disso, membros do instituto constumam comparecer à assembléia de acionistas de bancos como o BBVA e o Santander, para repetir o seu protesto contra os investimentos destes bancos na indústria militar.

O relatório critica também a cooperação entre o Ministério de Defesa e o Ministério de Indústria da Espanha, refletida no compromisso do primeiro em investir em grandes programas de novos armamentos, nutrindo a dívida daquele Ministério (atualmente, a soma é de 37 bilhões de euros, dos quais mais de 2 bilhões devem ser pagos este ano). É esta também a contribuição da indústria militar para a expansão do déficit público da Espanha, outro tema bastante abordado em contexto de crise.

Em relatórios anteriores, que demonstravam a mesma insustentabilidade dessa indústria, o instituto chegou a afirmar também a irresponsabilidade internacional do governo, que não se contém ao manter um comércio de armas e de outros “dispositivos” militares com países como Israel, onde um conflito já tão extenso e assimétrico se perpetua desde a criação deste Estado, em 1948, como mínimo.

O trabalho de institutos como Justiça e Paz e outros por toda a Europa tem se mostrado fundamental ao prover de instrumentos os que protestam contra as políticas econômicas e financeiras empregadas em tempo de crise, quando um risco de perpetuação dessa tendência se torna cada vez mais evidente. A conexão fundamental entre os protestos contra a reforma trabalhista, contra os cortes sociais, contra as soluções insustentáveis definidas pelos tecnocratas, de voz mais alta, nos Conselho de Ministros e Congresso de Deputados, no caso da Espanha, e no Banco Central Europeu, a nível continental, e contra as investiduras em geral do governo de Mariano Rajoy é bastante evidenciada hoje por vários movimentos sociais na região.

A Espanha em breve comemorará também um ano de “15-M”, o aglomerado de movimentos sociais, semelhante ao Occupy Wall Street, impulsionado em maio do ano passado, em plena Praça Catalunha, em Barcelona, promovendo debates políticos, avanço de propostas e seminários notavelmente participativos. Afinal, motivos de protesto não faltam e, instrumentos, “tampouco”.

*Moara Crivelente é licenciada em Relações Internacionais e cursa o Mestrado em Comunicação dos Conflitos Internacionais Armados e dos Sociais, na Universidade Autônoma de Barcelona, na Espanha.