Esculachos: agora são os indignados com os crimes de torturadores

Em 17 de outubro de 2011, uma jovem de 24 anos esperava ansiosa pela entrevista que anunciava o retorno do programa de entrevista Roda Viva, da TV Cultura. No centro, cabo Anselmo, que delatou diversos militantes à ditadura que mortos ou desaparecidos. Aquele homem falando abertamente ao vivo na televisão, impune, causou-lhe tamanha indignação que, quando se deu conta, estava com uma amiga na porta da emissora, em São Paulo, arremessando dois ovos no carro que o levava embora.

Então pensou: “Se não há justiça. Há escracho popular”. A partir daí, mobilizou uma turma de amigos em torno do tema, que agitaram o primeiro esculacho público do grupo em frente da casa do legista Harry Shibata, . Foi no dia 7 de abril, Dia do Médico Legista, que eles foram até a rua onde mora o legista que assinou, para o regime militar, diversos laudos falsos: Harry Shibata. Entre os mais conhecidos estão os laudos das mortes de Carlos Mariguela e Vladimir Herzog – ambos brutalmente assassinados.

Todos os jovens engajados presentes se sentem atingidos, de alguma maneira, pela impunidade dos carrascos que ordenaram ou executaram homens e mulheres durante a ditadura militar no país. Normalmente nas ações de escracho há dois momentos: um ato político para todos, e outro mais clandestino, que vai em busca do torturador ou, como nesse caso, do médico legista.

“Queremos contar pra todo mundo quem são, onde estão, como se escondem. É importante a relação que a gente faz da nossa história com o hoje. A Polícia Militar brasileira é a que mais mata no mundo. Por causa da impunidade de ontem, temos essa realidade violenta hoje. É preciso curar a ferida. Por mais que eles queiram esconder, continua aberta”, afirmou ao Vermelho a jovem de 24 anos, Paula Sacchetta, uma das idealizadoras da Frente do Esculacho Popular.

Na quinta-feira (3), a Frente se dividiu em três grupos e cada um deles saiu em direção a endereços que lembram vítimas da ditadura. Nos locais, foram feitas homenagens, aproveitando as ações em torno da Semana Nacional de Memória, Verdade e Justiça.

Uma delas foi feita no bairro Alto da Lapa, Zona Oeste, onde foram espalhadas diversas imagens de Ísis Dias de Oliveira, feitas com stencil em postes próximos à praça de mesmo nome, próximo de onde ela morou. Em 1972, aos 31 anos, Ísis era militante da Ação Libertadora Nacional (ALN) e desapareceu.


Stencil da militante desaparecida Ísis Dias de Oliveira / foto: Frente do Esculacho Popular

Ainda na Lapa, um grupo se dirigiu a um dos endereços mais marcantes na história das ações macabras de militares: rua Pio XI, 767, onde em 16 de dezembro de 1976 um grupo de militantes do PCdoB se reunia clandestinamente, homens armados entraram atirando e matando os comunistas Ângelo Arroyo e Pedro Ventura Felipe de Araújo Pomar. João Batista Franco Drummond, também presente, foi preso e encaminhado ao DOI-Codi e morto sob tortura. A ação ficou conhecida como a Chacina da Lapa. Para lembra-los, seus rostos foram pintados com stencil.

Na rua Serra de Botucatu, Tatuapé, Zona Leste, há 40 anos as forças da repressão acabaram alvejando Napoleão Felipe Biscaldi, um funcionário público aposentado que passava pela rua no momento de uma ação militar para executar dois jovens militantes do Movimento de Libertação Nacional (Molipo), Alexander José Ibsen Voerões e Lauriberto José Reyes, posteriormente ssassinados a tiros. No local foi colocada uma placa de rua com seus nomes e seus rostos foram reproduzidos em stencil pela região. Nos três endereços foram entregues aos moradores contando a história dos militantes e o que aconteceu ali.

“A reação dos vizinhos desses locais é bastante positiva. Eles vêm conversar com a gente, contar fatos como o convívio com o Shibata, que ninguém suspeita que aquele velhinho simpático é um cúmplice da ditadura brasileira”, lembra Paula.

Inspiração


Esculacho brasileiro, na casa do médico legista Shibata, foi inspirado em ações na Argentina e no Chile / foto: Leonardo Sakamoto

Os escrachos vem acontecendo com mais intensidade nos últimos meses no Brasil. Mas, países como Argentina e Chile. No primeiro, as manifestações conhecidas como escrachos começaram em 1995, pela Hijos pela Identidade e Justiça contra o Esquecimento e o Silêncio, ou simplesmente Hijos. As ações contribuíram para que aquele país passasse a limpo sua história. Hoje, a Argentina tem 237 condenados e 778 processados.

No Chile, a expressão similar usada para as atividades são as funas. Uma delas ficou marcada e registrada, contra Edwin Dimter Bianchi, o príncipe, que assassinou o diretor teatral e músico chileno Victor Jara, depois de ser torturado por longas horas. Victor Jara recebeu quarenta e quatro tiros. Trinta anos depois, uma comissão de funa o encontrou em seu local de trabalho, como chefe de departamento, no Ministério do Trabalho, em Santiago. Talvez ele esperasse por isso. Inicialmente, uma batucada ecoou das ruas. No início, era longínqua, como se viessem de um passado remoto. Os tambores iam crescendo, parando na porta do edifício. Edwin começou a ouvir gritos e choros. Ouvia como gritavam o seu nome clamando por justiça. Seus vizinhos de mesa, nunca o tinham visto dessa forma. Agora, ele sabe que a sua “paz” bem como sua impunidade está com os dias contados. Assista abaixo ao vídeo da funa.

“O objetivo é relembrar para a sociedade as mortes e manter viva a memória desses militantes que dedicaram suas vidas à um país mais justo, a uma sociedade melhor. Essas mortes não podem ser esquecidas para que nunca se repitam”, enfatizou Paula.

Com relação à Comissão da Verdade, sancionada no Brasil pela presidente Dilma Rousseff em novembro de 2011, os jovens indignados com a violência esperam que se faça justiça.

“Esperamos que seja efetiva e que haja consequências e que os fatos sejam investigados. Ainda não sabemos o que sairá e o que esperar dessa comissão”, disse Paula Sachetta, que teve uma educação política de esquerda por influência de seu avô, o militante comunista Hermínio Sacchetta, que contribuiu na primeira década com o Partido Comunista do Brasil.

Levante Popular

Calçada de um prédio de Porto Alegre onde mora um dos torturadores / foto: Levante Popular

Em março, outro grupo de jovens militantes foi aos endereços dos torturadores para esculacha-los. O Levante Popular da Juventude realizou várias ações nas capitais do país simultaneamente para denunciar a impunidade sobre seus crimes. Os manifestantes apoiam a Comissão da Verdade e exigem a apuração e a punição sobre os crimes cometidos pela ditadura militar.


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Deborah Moreira
Da redação do Vermelho S. Paulo