Cap. XXIV Empachou-se na luxúria
Vazia na alma, na barriga, voltou para casa no dia seguinte, Chica. A quitanda, quinze dias fechada, sem explicações à vizinhança. A notícia correu veloz. Todos souberam da perda da prenhez, com exceção das beatas da Sé, moucas ao burburinho do povaréu. As negras correram à casa da velha Teotônia, com remédios, cuidados, rezas.
Publicado 11/05/2012 19:20
Chica as acolheu com um sorriso pouco, arremedo de sorriso. Conversou com cada uma delas, perguntando por filhos, sobrinhos e uns poucos afilhados seus. Quinze dias de recuperação, cada noite uma negra revezando outra, ajudando a tia nos asseios.
Esperando, Chica, que todos saíssem, chorava um choro miúdo, com medo de ser flagrada na dor que era só sua, sua e de Maújo. Nas duas semanas, ele dormiu na casa da tia-sogra, jurando que tão logo ela se recuperasse, providenciariam ou tra prenhez na beira do rio Timbó.
Ela não se perdoou por ter subido, descido ladeiras, bebendo mistura de araçá com álcool. Sentiu-se desamparada. Queria Maújo, segurar no ombro dele para não cair num precipício.
– Case-se comigo!
– Nós já somos casados, vivemos casados.
– Estou enfraquecida. Quero a proteção sua, sua e a do meu santo. Faça isso por mim, por nós, pela minha gravidez que eu quero de volta.
A cerimônia ocorreu um mês depois, num sábado à noite. A lembrança do carnaval zunindo sem estrépito na memória de cada um. Ela vestira-se de noiva, toda verde, véu e buquê, os cabelos soltos cobrindo as sardas dos ombros. Ele, com desengonço, movendo braços, mãos; para não desapontar, vestira calça e camisa brancas, com uma faixa vermelha na cintura.
O babalorixá, com uma das mãos, chamou-os ao altar, onde fora depositada uma estátua de Ogum com ofuscante espada. Seguiram. Atrás, os convidados, negras de todas as idades, capoeiristas. No meio, comovida, a velha Teotônia balbuciando reza. Puxou-os com as mãos, o babalorixá, para mais perto. Tirou de uma gaiola coberta um casal de pombas brancas, soltou-as.
Caetano e Gertrude, os últimos, padrinhos aceitos, testemunhas mudas, mudos ficaram até o derradeiro minuto.
Com voz rascante, os olhos incendidos, o babalorixá fez um sermão meloso; misto de alcoolismo e comoção forçada. Cantou pontos com as sílabas cavas, conhecidas de seus figurantes.
– Macucoê… Macucoê…
Ouviram-se os tambores, o estrondo subiu os degraus de cimento em direção à Sé. Magote de capoeiras respondeu em cima, com berimbaus chorosos.
As beatas no átrio ouviram. Não crendo, mas desejando-lhes imolação por um exu cruento.
O babalorixá, interrompendo a celebração, disse-lhes que Chica se casara com o filho de uma orixá
feminina; não fosse assim, não seriam felizes. Tinha certeza, pois lhe fora dito pelo pássaro africano da paz. Às dez da noite, finda a cerimônia, acomodaram-se em volta da mesa posta em frente ao palácio. A toalha cintilou sob a luz da lua. De madrugada, o babalorixá, bêbado, foi levado aos aposentos por dois troncudos capoeiras. As negras recolheram tudo. Caetano e Gertrude foram para o Guadalupe. Chica e Maújo, de carro, foram para a casa da tia. Despojaram-se da incômoda roupa. Foram para a beira do poço, no quintal…
A madrugada acobertou o largo em insidiosa cumplicidade. Salteadores, as inquietações da velha Teotônia, a peleja de Chica para recuperar a perdida prenhez; o babalorixá dormindo o estrepitoso sono. No altar, restos de vela alumiando o pequeno quadrante coberto por um fino véu azulado. No salão, ramos de flores murchando sob o vento frio vindo do sudeste.
Chica empachou-se na luxúria de Maújo. Atigrou-se, ele, crendo-se materialista, urdindo uma penca de iorubas, cúmplices de sua excitação; pulando no Largo do Amparo, ouvindo os rogos de Chica.
Gertrude e Caetano, crendo na reacomodação dos desígnios, definiram o papel de cada um; até do babalorixá com trejeito de exu doido, supurando álcool nos poros, nas narinas. Também celebraram; a crença no devir os instigara.
No Estrela, outra rumba estrugindo para ajustar contas com a semana que passara sem ser percebida. Semana cinzenta, oca de contentamento. O maestro, rindo de cada nota, manipulando os passos de dançarinos, seus marionetes; um negro com cabelos em tiras sobre os ombros, rosto lustroso, soltando faíscas.
Chica não ouviu. No jorro da luxúria, imaginou a sonoridade da rumba; gritou feito uma megera, suplicando ser afogada por ele. Desfaleceu, acordou com as vísceras cansadas. Despregou-se dele, nua, pôs-se de cabeça para baixo, apoiada nos braços, nas duas mãos, e encostou os calcanhares no sapotizeiro; ficou na posição por cinco minutos, para o sêmen escorrer pelas entranhas.
O maestro, no Estrela, suspeitou que a onda fluídica do saxofone picava-os de desejos. Exigiu tensão, baixando a batuta para espiar o poder de sua manipulação.
Caetano e Gertrude, catando-se, espreitando minúcias nunca vistas no corpo de cada um. Também ouvindo a rumba descobriram-se afins. A lâmpada, num balanço vago, lembrou-lhes a garrafa rolando no convés do barco. O pescador dormira com a boca aberta, recolhendo brisa no fígado com cirrose.
– Gertrude. Por que não cagamos na porta do general?
– Podemos matá-lo de enfarto. Ele faria falta à vizinhança. Só tem de ruim a ideologia. Que guerrilheiros seríamos nós se tivéssemos como tarefa borrar o portão de um general de pijama?
– Seria divertido.
– A revolução não é uma diversão.
– Mas divertimo-nos
– Divertimo-nos para não nos deixar abater pelo tédio. O tédio também é uma arma que a burguesia
usa contra nós.
– Como assim?
– Ela se diverte com o poder nas mãos. Nós assistimos sem nada poder fazer. Não podemos apeá-la do poder. Podemos fustigá-la.
– Com nossos excrementos?
– Se usamos fezes em portas de generais de pijama para combater a ditadura, que inimigos somos nós? Não somos inimigos sem dignidade. É melhor encher nossos sanitários caseiros.
– Você e Maújo já peidaram bastante no terraço do general.
– Queríamos provar a nós mesmos que estávamos prontos para o enfrentamento.
– Com peidos e fezes…
– Nunca conseguimos ir às cagadas de fato. Sujávamos as roupas.
– Nunca vi você tão séria.
– Está me conhecendo.
O Largo do Guadalupe, nu de asfalto, de gente viva àquela hora. Para a vizinhança, o negrume frio e assobiante era o festim de querubins em vigília; para uns, a festança de exus à cata de oferendas. Em cada moradia, operários, meirinhos, uma velha cantadora de coco, cada um com um palpite sobre o uso do Largo àquela hora. Uma velha insone, familiar da noite, levantou-se da cama para percorrer o corredor; ficou com o rosto colado nas frinchas da janela; distinguiu duendes do lado de fora, iorubas nus. Saciou a lembrança da juventude na imaginação em correria; balbuciou frases velhas, assobiando entre os cacos dos dentes. Riu, pronunciou nomes, censurou atos. Uma cantoria escapou do desvão da memória, como para ajustar contas com o ioruba nu; cantou alto, até se convencer de que o pelintra se intimidara com s eu canto.
De repente, foi puxada pelo braço pela filha mais velha. Preparara-lhe camomila quente.
– Engole, mãe… Relaxa.
– Num vão invadir? – perguntou, de olho na janela.
– Ninguém vai invadir a casa, mãe. Pode deitar sossegada.
O sol se insinuou. Viu-se o misto de noite e dia, afastando duendes, exus.
Uma porta se abriu, ouviu-se o gonzo.
Caetano e Gertrude, sem rendição, sucumbiram à rotina da vizinhança. Foram à padaria, desfrutando a felicidade ainda incerta.