Entrevista: Lira Neto fala sobre biografia de Getúlio Vargas

Prestes a lançar o primeiro volume de sua trilogia a respeito de Getúlio Vargas, o cearense Lira Neto fala sobre o ofício de biógrafo. Veja a seguir na reportagem do jornal Diário do Nordeste publicada na última segunda-feira (14).

Em seus livros mais recentes, percebe-se que você é um biógrafo detalhista, que procura dar conta da complexidade de seus personagens. Quando você percebeu que a história de Vargas precisaria de mais de um livro para ser contada?

Logo que decidi biografar Getúlio Vargas, dada à complexidade do personagem, já antevia a impossibilidade de resumir sua longa trajetória política e pessoal em um único volume. O projeto inicial, apresentado à editora, buscou justificar a necessidade da trilogia. Ao cair em campo e começar a pesquisa, essa necessidade se consolidou. Getúlio é o personagem mais importante e controvertido da história política brasileira. Para o bem e para o mal, existe um Brasil A.V. e D.V, ou seja, antes e depois do varguismo. Não dá para resumir isso em 400, 500 páginas.

Como a sua editora, a Cia. das Letras, recebeu esta ideia, de uma biografia em mais de um volume. Não é mais fácil vender um livro apenas?

Luís Schwarcz, meu editor, comprou a ideia imediatamente. Por certo, um único volume talvez fosse comercialmente mais recomendável. Mas não tínhamos a intenção de publicar apenas "mais um" título sobre Getúlio Vargas, o personagem histórico sobre quem mais se escreveu até hoje no Brasil. Queríamos encarar o desafio de oferecer aos leitores brasileiros a biografia mais completa, mais exaustiva e mais reveladora sobre ele. Nesse aspecto, achamos que o mercado perceberá a importância, a pertinência e a necessidade de uma trilogia. No Brasil, biografias em mais de um volume ainda são uma raridade. Lá fora, é comum.

Getúlio Vargas é o segundo presidente e o segundo ditador brasileiro que você biografa. O poder é um tema que o fascina?

O poder é meu objeto central de interesse, como jornalista e como pesquisador da história. Não é à toa que três das seis biografias que escrevi tragam essa palavra explicitamente no título ou subtítulo. Primeiro, "O Poder e a Peste – A vida de Rodolfo Teófilo"; depois, "Padre Cícero: Poder, fé e guerra no Sertão"; e agora, o volume 1 da trilogia varguista, "Getúlio: Dos anos de formação à conquista do poder". Nas outras três biografias de minha autoria, o poder é também o personagem central, seja no caso de "Castello: A marcha para a ditadura", onde isso é mais evidente, no de José de Alencar, quando "O inimigo do rei" realça o lado político do célebre romancista, e mesmo no de "Maysa: Só numa multidão de amores", livro que lança um olhar sobre outro tipo de poder, o poder da mídia e o do mercado de escândalos da imprensa da época.

No processo de pesquisa, você esbarra, por vezes, em questões polêmicas – algumas até conhecidas. Como é colocar no papel questões delicadas, como a da proximidade de Vargas dos ideais fascistas? Afinal, a polêmica vende livros, mas ser "polemista" quase equivale a ser sensacionalista, o que não é muito bom para a fama de um jornalista.

Não procuro a polêmica. Não me considero um "polêmico". Fujo disso. Não caibo nesse rótulo. O polemismo, aliás, é a doença infantil do jornalismo. O que busco é observar o biografado pelo maior número de ângulos possíveis, destacando suas ambivalências e todo o seu potencial de contradição. Isso, obviamente, produz discussão, debate, questionamentos. É esse o verdadeiro propósito de qualquer jornalista. Não se trata de semear a polêmica de forma deliberada, de querer ser o babalorixá da contestação. Isso seria algo juvenil demais, uma postura demasiadamente ridícula, caricatural. Não jogo nesse time.

O historiador Boris Fausto assina a quarta capa do primeiro volume de sua trilogia varguista. Acabou a birra dos historiadores com os biógrafos que são jornalistas?

O texto do Boris Fausto, referendando a obra, é uma demonstração clara da seriedade do livro. Boris, entre outras produções relevantes, tem uma obra considerada clássica sobre o tema, "A Revolução de 30: História e historiografia". Para mim, foi uma honra contar com a leitura dele, ainda na fase dos originais. Fiquei agradavelmente surpreso quando a editora me comunicou que ele havia lido o livro – e gostado ao ponto de querer escrever o texto de quarta capa. A velha tensão entre historiadores e jornalistas que escrevem livros de história já produziu muita discussão bizantina. O fato é que muitos colegas jornalistas escrevem livros apressados, com pesquisa capenga e permeados de anacronismos. E, ao mesmo tempo, também é verdade que muitos historiadores se encastelam na torre de marfim e evitam qualquer tentativa de interlocução com um público não especializado.

Ao sucesso de vendas de biografias nas duas últimas décadas, acompanhou um interesse da academia brasileira em debater esse tema – dentre outros pontos de encontro entre o jornalismo e a história. Você acompanha esse debate acadêmico? Ou ainda: você lê livros teóricos para aperfeiçoar seu trabalho?

Felizmente, jornalistas e historiadores parecem ter compreendido, afinal de contas, que cumprem funções diversas, por adotarem metodologias e perspectivas distintas. Para começar, por dever do ofício, o jornalista preocupa-se com a recepção. A bibliografia acadêmica tem objetivos mais específicos. Existe, é bom que se reforce, muita contrafação histórica assinada por jornalistas. E, de modo idêntico, muita abobrinha ideológica produzida entre os muros da universidade. Meus livros hoje são citados, com constância, em teses acadêmicas. E é claro que utilizo, com grande respeito e reverência, os estudos a respeito dos temas que pesquiso. Embora eu utilize principalmente fontes primárias para escrever biografias, preciso estar ciente e atualizado sobre o estado da arte da bibliografia científica relacionada aos assuntos que abordo. No volume 1 de "Getúlio", das 640 páginas do livro, cerca de 100 delas são de referências às fontes. E lá estão, ao lado dos documentos e jornais de época, muitas teses de doutorado e pós-doutorado. Todas magníficas.

Vargas é uma figura meio mítica. Não faltam livros sobre ele e mesmo peças de ficção – literárias, teatrais, audiovisuais. Você chegou a consultar esse tipo de trabalho, como o romance "Agosto", de Ruben Fonseca?

Tudo que se relaciona a Getúlio me interessa. Não menosprezo nenhum tipo de fonte histórica. De marchinhas de carnaval às atas legislativas, de cartas e diários privados a despachos diplomáticos, de filmes e notícias de jornal a fotografias, de inquéritos policiais a panfletos e livros de memórias, tudo ajuda a construir um retrato de corpo inteiro do biografado e de sua época. Existem muitos romances históricos que têm Getúlio como personagem. "Agosto" do Ruben Fonseca, sem dúvida, é o melhor deles. Mas confesso que não leio muito esse tipo de literatura. Tenho uma relação meio indigesta com o gênero. Os romances históricos, por vezes, são tão mal escritos que não devem ser tratados como romances; e, outras vezes, são tão mal pesquisados que não merecem ser chamados de históricos.

Os direitos da trilogia já foram negociados para o cinema, para o mesmo produtor que adquiriu o seu Padre Cícero. Como andam esses projetos?

Mantenho respeitosa distância dos projetos de adaptação de meus livros para cinema ou TV. Nem sei como andam. Não quero saber. Uma vez que cedo os direitos para um produtor ou para um cineasta, aquilo deixa de ser meu. Já sofri demais com isso. Não caio mais na roubada de perder noites de sono e padecer da síndrome de traça ou cupim: "Vi o filme, mas gostei mais do livro". Hoje tenho consciência de que o audiovisual exige uma necessária releitura da obra original. São produtos de natureza completamente diferentes. Não exijo e não espero mais fidelidade irrestrita do roteirista, ou do diretor, ao texto que escrevi. Sei que vou ser traído em minhas expectativas, se assim o fizer. Passei a ser adepto da amizade colorida entre autor e adaptador. Os dois se divertem, mas não devem nada um ao outro.

Dentre as biografias jornalísticas modernas, escritas por seus contemporâneos, há alguma que você diga: "ah! eu queria ter escrito sobre esse personagem antes!"?

Sempre quis biografar Padre Cícero e Getúlio. Depois dele, vai ser difícil encontrar um personagem que me mobilize tanto. Tenho projetos na cabeça. Não de uma nova biografia, mas de escrever um livro sobre determinado episódio histórico com o qual venho flertando há anos. A pesquisa exigirá que eu passe um tempo fora do Brasil. Mas isso por enquanto é segredo. Nem meu editor ainda desconfia do que ando caraminholando. De todo modo, até 2014, quando será lançado o último volume da trilogia, só penso em Getúlio.

Você sempre biografou personagens mortos. Você aceitaria o desafio de biografar alguém que ainda está entre nós?

Como diria o colega Ruy Castro, biografado bom é biografado morto. E, de preferência, morto já há algum bom tempo, para que seu cadáver tenha esfriado o suficiente para proporcionar o imprescindível distanciamento histórico.

Serviço

Getúlio: 1882-1930 – Dos anos de formação à conquista do poder:
Lira Neto – Cia. das Letras, 2012, 664 páginas – R$ 52,50 (em pré-venda)

Pré-venda 

O primeiro volume da trilogia de Lira Neto sobre Getúlio Vargas chega às livrarias de todo o País no próximo sábado (dia 19 de maio). O livro já se encontra em pré-venda em lojas virtuais

Fortaleza 

Lira Neto já divulgou, em seu site oficial (liraneto.com) as primeiras datas dos eventos de lançamento do livro. Em Fortaleza, a quinta cidade visitada, acontece dia 14 de junho, na Livraria Cultura

Continuações 

O segundo volume da trilogia, "Do governo provisório à ditadura do Estado Novo" chega às livrarias em 2013. O último, "Do retorno ao poder pelo voto ao suicídio", no ano seguinte

Números 

Para o primeiro volume da trilogia varguista, foram catalogados mais de 50 mil documentos. Até agora, foram realizadas pesquisas em cinco países. Lira continua escrevendo.

Adaptações

Nem chegou às livrarias, e o novo projeto de Lira Neto já teve seus direitos para o cinema e a TV vendidos. Quem comprou foi a RT Features, a mesma que adquiriu "Padre Cícero"

Fonte: Diário do Nordeste