Artigo: Gilberto Gil, 70 degraus percorridos na escada da vida

Por Olívia Satana*

Gilberto Gil faz 70 anos e é, sem dúvida, um dos mais completos artistas brasileiros. O visionário da Tropicália, movimento que impulsionou o país a quebrar tabus no campo cultural, mesmo sob o pesado manto da ditadura militar, na segunda metade dos anos de 1960, jamais prescindiu da ousadia ou de confrontar paradigmas conservadores, em favor do novo, da transformação das coisas e em favor da valorização das coisas que brotam do povo, dessa gente criativa, porém invisível, que constrói o nosso rico universo cultural.

Sua extraordinária capacidade de criação poética muitas vezes nos obriga a visitar o âmago da nossa existência, como o faz em letras como “Super homem” e “Não Tenho Medo da Morte”. Gil usa e abusa de metáforas para dizer o incontível, o inatingível, o incabível. Sabe encantar de maneira memorável a alma feminina. Num simples momento de amor sereno, inspirou-se na amada e nos presenteou A linha e o linho: “É a sua vida que eu quero bordar na minha… Que a agulha do real nas mãos da fantasia fosse bordando ponto a ponto nosso dia a dia”. E, antes disso, de um movimento de separação, ele pariu Drão, dissecando o amor, descobrindo a metamorfose desse sentimento, comparando-o a um grão que “morre, nasce trigo. Vive, morre pão”. Uma história a dois que, ao tornar-se música, tocou fundo o coração de todos os que amam.

Ele cantou a paz como lição, relendo o jogo das contradições presentes nos horrores da bomba que, no seu verso, fez nascer o Japão da paz. É ele que fala através de metáforas cortantes, mas diz que canta distraidamente como bate o coração…
Gil não foi o vencedor do histórico Festival de Música da Record, de 1967, mas mexeu para sempre com todos os que lá estiveram ou que assistiram à sua memorável apresentação de Domingo no Parque — canção que traz embutido o movimento circular da roda gigante, que é também o movimento da capoeira —, acompanhado pelos nascentes Mutantes com suas guitarras e arranjos eletrônicos inovadores.

A mão da limpeza e “La lune de Gorée" revelam um Gil engajado na luta contra a discriminação, em defesa da valorização dos negros e da renascença africana. Nosso ídolo assume-se como um homem de Xangô e Logum Edé, na religião do Candomblé. Mas, sem se aprisionar a uma identidade de refúgio, ele se abre às diferentes matrizes identitárias, que compõem a complexa base civilizatória da nação. Pode encantar-se profundamente com o ritmo de um afoxé ou com uma canção dos Beatles, o que revela a amplitude da sua visão de mundo e empresta riqueza ao seu fazer artístico. É também aberto às novidades tecnológicas que possam conectar universos concretos e simbólicos.

Gil é capaz de cantar a simplicidade das coisas, sem nunca ser simplório. Cantou que a fé não costuma falhar, mas também disse aos que andam em Procissão e acreditam nas coisas lá do céu, que na terra a gente tem que arranjar um jeitinho pra viver. Desfila com leveza e intimidade entre o reggae, o rock, o xote, o baião do centenário Gonzagão e as cantigas de criança, que falam de sítio, piratas, princesas, um cordel que encanta gente grande também.

Da régua e compasso dados pela Bahia, Gil conquistou o Brasil e fez do mundo artístico o seu porto seguro, mas a política sempre foi para ele uma larga e sedutora avenida. Sua primeira experiência como gestor público foi como presidente da Fundação Gregório de Mattos, quando da sua criação em 1986. A autarquia foi concebida para pensar, planejar e fomentar a cultura da cidade mais africana e rica em influências culturais do Brasil. Gil quis ir mais além e ser prefeito de Salvador, em 1988, porém, frente às disputas políticas que dividiam o seu partido, o PMDB, acabou tornando-se vereador da capital baiana. Mas foi como ministro da Cultura do governo Lula, em 2003, que ele viveu a mais densa experiência da sua trajetória política. Em seu discurso de posse, declarou-se obstinado por aproximar o MinC da vida do povo, das tradições e criações culturais de todos, chegando a propor a realização de um “do-in” antropológico no corpo cultural do país. Sua gestão, que durou seis anos, convocou a nação a pensar sobre o conceito de cultura, o papel do Estado no fomento e financiamento das políticas culturais. Compreendeu o Brasil para além do eixo Rio – São Paulo, reconhecendo a cultura nordestina e a do norte do país como partes integrantes da cultura nacional. Na quadra internacional, Gil comportou-se como um embaixador, elevando a cultura brasileira perante as nações. Ele abriu caminhos na política de cultura do país que exigem continuação e novas lideranças a reverberar suas construções.

Neste momento de celebração do seu aniversário, cabe generosos aplausos e agradecimentos a tudo que ele significa para a história da Música Popular Brasileira. Sua caminhada foi desafiadora, mas o caminho tecido foi vitorioso. Certamente Gilberto Gil foi o primeiro artista negro baiano a brilhar de forma intensa através da indústria cultural. Um astro que chegou ao panteão, sem se curvar ao deus mercado, mas, sim, promovendo todas as reverências ao deus mu-dança! Salve o artista! Salve o tempo, rei da divina experiência!

* Vereadora Olívia Santana é ouvidora-geral da Câmara Municipal de Salvador e membro titular da Comissão de Cultura.