"Ocupa" das artes: uma alternativa à elitização

Durante sete meses, o artista e grafiteiro Rafael Vaz ocupou uma casa abandonada em São Paulo e expôs seu trabalho. O ativista das artes mostrou que é possível encontrar alternativas para quem não tem espaço nas galeria de artes.

Para o transeunte, hoje em dia, a casa da rua Agissé, 280, na Vila Madalena, em São Paulo, é apenas mais um modelo de imóvel abandonado: ausência de portas e janelas, arbustos que chegam a um metro de altura e rachaduras nas paredes. Mas nem sempre foi assim. No dia 4 de março de 2011, o local foi ocupado pelo artista urbano Rafael Vaz da Silva, que o transformou em uma galeria de artes.

Auxiliado por artistas estrangeiros, Vaz promoveu exposições, cafés filosóficos, shows de música e teatro na casa e recebeu o apoio de parte da vizinhança, que comparecia aos eventos que lá ocorriam.

No entanto, após sete meses da ocupação, no dia 04 de novembro, o artista teve que desocupar o imóvel após determinação judicial que concedeu ordem de reintegração de posse ao proprietário, Rofolfo Hellwald Ingo. De lá até hoje, a casa continua abandonada.

O grafiteiro Rafael Vaz, que se considera expressionista, tem trabalhos expostos em locais públicos de países como Estados Unidos, França e Alemanha. Contudo, em entrevista, o grafiteiro fala sobre o significado da ocupação artística como um “grito de liberdade” para tantos artistas que, como ele, enfrentam dificuldades para expor seus trabalhos nas grandes galerias.

Como era a casa antes da ocupação artística:


fotos: Rafael Vaz

Depois da ocupação:

Acompanhe entrevista:

Rafael Vaz: O que simboliza para você a ocupação artística?
Brasil de Fato: Simboliza para mim um grito de liberdade que diz que tudo pode acontecer. Sofri muito preconceito e senti hostilidade grande de galerias que não deram espaço para divulgar meu trabalho. Já que os lugares convencionais não abrem as portas para a gente, criei meu próprio espaço para divulgar meus trabalhos e fiz questão de divulgar trabalhos de artistas que não têm condições de expor – aqueles que já têm certo tempo na arte e fazem seu trabalho, mas têm a mesma dificuldade que eu sinto. Esse é meu objetivo. O que importa é dar oportunidade para novos artistas. Nós mesmos temos que fazer a coisa acontecer e não ficar esperando desse grupo que é seleto e tem uma mente muito fechada e, até mesmo, preconceituosa.

RV: Como foi planejada e executada a ocupação da casa na Rua Agissé, 280?
Brasil de Fato: Esse processo foi sensacional. Tudo foi assim: estava expondo em uma galeria e tinha uma amiga que eu não via há dois anos. Quando nos encontramos, ela me disse que precisávamos arranjar um espaço para expor e divulgar nosso trabalho. Nesse dia, me chamou para ir à casa dela e, no caminho, passamos por um terreno que estava abandonado e, como ela morava na região, falou assim: "olha esse lugar, já tem mais de dez anos que eu moro aqui e ele está assim". Eu me apaixonei à primeira vista. Desci do carro, pulei o muro que tinha apenas um metro de altura e entrei no quintal. Era um terreno sensacional de 400 m², com quatro cômodos, que estava abandonado, descobri depois, há trinta anos. Aquilo ficou na minha cabeça e eu não consegui mais dormir em paz. Fiquei planejando, planejando, planejando: “como vou entrar naquele lugar e fazer alguma coisa ali?”, pensei. O interessante é que quando estava fazendo uma exposição nessa época vi um pessoal falando de artistas que ocuparam a casa do Chico Buarque e deu o maior processo. Aquilo fez meus olhos brilharem. Queria fazer igual. Fiquei quatro meses pesquisando, conheci o pessoal da Frente de Luta pela Moradia, que é um pessoal que bate de frente com a questão da moradia. Conheci os cabeças, que me explicaram e deram uma base jurídica, disseram que eu poderia contar com eles. Fiquei 4 meses pesquisando até chegar o dia D. Já tinha juntado dinheiro, porque não tinha condições de ficar do jeito que estava. O lugar estava caindo aos pedaços e eu tive que investir. Comprei portas e janelas, encostei um caminhão em frente, joguei as coisas dentro e comecei a limpar. Não imaginava que o dono iria aparecer no mesmo dia, quatro horas depois da ocupação. Ele tentou me agredir fisicamente e me colocar para fora à força. Como já estava com respaldo jurídico, entrei com as leis. Disse que ele tinha que ter cumprido com a função social da propriedade. Como não estava [cumprindo], eu estava lá para cumprir. Fomos parar na delegacia.

RV: Como é sua relação com artistas estrangeiros e como eles participaram da ocupação?
Brasil de Fato: Nesse processo em que fiquei quatro meses pesquisando sobre as leis e juntando dinheiro para poder comprar as coisas para chegar o dia de ocupar já comecei a entrar em contato com artistas de todas as partes. Meu convite para eles foi o seguinte: estou abrindo uma galeria, vou inaugurá-la no dia 8 de março e estou te convidando para expor suas obras. Comecei a mandar e-mail para o pessoal. Eles também começaram a mandar seus trabalhos. Teve o "Matthew Curran", dos Estados Unidos; o Okuda San Miguel, que é da Espanha; o Kraser Tres, que é da itália; e a Ellen Stapleton, da Austrália. Gente de toda parte, 20 ou 30 artistas que são de fora. Eles enviaram as obras, mas muitos deles não conseguem vir para cá, mas deram esse apoio. Foi de extrema importância, porque eu fiz a ocupação e já tinha a data para ser feita a inauguração de uma galeria. Se não tivesse a participação e a interação com esses artistas, não teria acontecido a Fatcap (nome dado à galeria).

RV: A reintegração de posse destruiu o trabalho feito lá?
Brasil de Fato: Todo esse processo que passei e foi feito na galeria, depois que passou um tempo, vi que a ideia inicial que tive era muito maior do que imaginava. Descobri que o processo da galeria foi uma obra que fiz. Tudo aquilo, todo o processo de entrar, reformar, enfrentar proprietário, a polícia, de passar fome, ficar uma semana sem tomar banho porque no início não poderia sair de lá, dar oportunidade para novos artistas, as obras dos artistas que vieram de fora, artistas de toda a parte do Brasil, foi uma obra só. Um processo efêmero: começou, mas eu já sabia que teria um fim. Diversas obras são efêmeras, são feitas para serem vistas em seu processo de destruição, degradação. Não passou, de forma alguma, muito pelo contrário, foi o pontapé inicial: a Fatcap Galeria, ocupação na Rua Agissé 280, é a raiz que está crescendo o caule e vai se transformar em uma árvore frutífera. Ela não morre. É efêmero no sentido de termos saído e o mato estar dominando o lugar novamente, a traça e a infiltração estarem destruindo o lugar novamente, mas ela não passa, não morre, continua viva. E tudo que foi feito ali continua vivo, porque foi registrado. Foi criada uma ideia que tomou proporção numa escala que não tem fim. Literalmente, não tem fim porque cada vez mais pessoas estão vindo, aceitando a ideia, me parabenizando e querendo fazer parte, assumir coisas a partir de tudo que foi feito ali. Então, ela nunca vai morrer, sempre será eterna por meio de nossas lembranças, das oportunidades de cada um que passou por ali, das risadas, brincadeiras, artistas que se conheceram, momentos de alegria. Está registrada em vídeo, fotografia e, principalmente, na nossa lembrança e história.

RV: Outros artistas que acompanharam tudo aquilo continuam esse processo de ocupação?
Brasil de Fato: Os artistas que expuseram desde o começo continuam expondo comigo. Ainda continuo também dando oportunidade para novos artistas. Esse processo é único no Brasil e na América Latina. É comprovado que é o primeiro. Têm artistas que ocupam fábricas, lugares abandonados, mas não vivem ali. Eles se reúnem, o grupo vai para esse lugar, registra os trabalhos e depois vai embora. Eu, pelo contrário, fiquei lá.

RV: O que falta para o Brasil tratar bem os artistas urbanos?
Brasil de Fato: No Brasil, o grafite foi marginalizado. Acredito que de dez anos para cá tem tomado novas proporções. Esta começando a ser mais aceito pela sociedade e por esse grupo seleto de arte conceitual, que é um movimento restrito para algumas pessoas. A história do grafite está mudando. Ele já tem uma aceitação maior, mas ainda é muito marginalizado e pouco aceito pela sociedade e pelas galerias de arte contemporânea, apesar de algumas delas já estarem abrindo as portas para os artistas urbanos.

RV: Para o grafiteiro, onde o espaço público e o privado se esbarram?
Brasil de Fato: Têm limites, porque o grafite tem uma história, suas leis, suas regras, suas normas. A arte urbana deve ser feita na rua. Ela nasceu na rua e deve ser feita lá. Essa é uma das características que faz o grafite ser o grafite, ele tem que ser feito na rua para todas as pessoas. Eu, particularmente, peguei o grafite quase no começo. Comecei em 1995. O grafite era considerado vandalismo. Tinha a mesma conotação da pichação, que também é uma forma de arte e faz parte do grafite. Na minha visão, ele tem que ser feito na parede, mas também pode ser feito na tela, na madeira, na tábua. Pode ser feito em um pedaço de móvel velho. O que é fundamental é manter a identidade. Isso é maravilhoso, porque você pega um estilo de arte que durante seu processo de criação foi marginalizado e hoje está sendo aceito, está entrando na galeria, na casa dos famosos colecionadores, mas também continua na casa da pessoa humilde. Isso mantém a essência do grafite feito na rua: ele é feito para todo mundo, para todos verem. Quando o grafite entra em todos os lugares é um novo passo de expansão. Não pode se limitar apenas a ficar na rua, deve estar em todos os lugares.

Fonte: Brasil de Fato