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Cap. XXX – O cuscuz não cheira a incenso

Chica moldou no massapê o transe com o parelho, sob o sapotizeiro, com três sequências; a última, Maújo segurando-a para não bater com a cabeça na parede do poço.

As chuvas afastaram os dois do Guadalupe; um mês fora do circuito.

– Se vivêssemos na clandestinidade, poderia pensar que Maújo estivesse preso. Nem recado ele manda – queixou-se Gertrude.

– Recado! Por quem? Não somos da diretoria do Cariri, somos de um Partido oculto que se reúne na sombra da noite.

Caetano fazendo um reparo ao que ouvisse de Gertrude, sentia-se útil, equiparado ao desembaraço intelectual dela, com a presença mais que justificada a seu lado. No caso, ela não apreendera um dado real vivido por eles, pelos quatro.

– Sei lá! Por um orixá qualquer.

– Os orixás não dão ouvidos a ateus. Não sei não. Ainda não tenho certeza de que não vão nos visitar por meio de Chica. Marx e Ogum no Largo do Guadalupe, o epílogo perfeito para um romance.

– Um romance com rumbas, dois abortos, afrontas ao secretário, uma paródia da queda da Bastilha, uma agressão ao presidente do Homem da Meia-Noite.

– Bom seria que os generais aposentados fossem nossos únicos inimigos.

– Seríamos guerrilheiros cagões!

Passados dois carnavais, as dobradiças da porta de Gertrude continuaram gemendo, tão ou mais quanto as portas da igreja na frente. Gemeram quando Maújo surgiu na sala, molhado sob a chuva fina; saíra com Chica, ela com sombrinha da cor do vestido azul. Os gonzos gemeram, decadentes, sonorizando uma queixa velha.

– Adivinhem quem tem a receita da revolução!… – Maújo saudou.

– Atirar gomos de barro na cara do secretário… – adiantou Gertrude.

– Não seria de todo ruim.

– Por que estão sumidos?

– Tem chovido ultimamente.

– Então só faremos a revolução na estação seca… Bajado tem razão: terá que comprar mais cadeiras para o começo da revolução. Ele está mais certo do que você; pelo menos não é um bufão.

– Já fui bufão; já fomos bufões na escuridão na porta de um general de pijama.

– Não há muita diferença entre um guerrilheiro bufão e um general de pijama listrado, gritando contra fantasmas subversivos.

– Demora a falar, Caetano. Parece que, quando está calado, está afiando o cutelo. Um general de pijama é um militar sem autoridade; um guerrilheiro fanfarrão pode ser ridículo, mas conta a seu favor a juventude da revolução.

– Como o filho que Chica carrega na barriga.

– Uma bela comparação. Mas minha mulher não é ridícula; só porque está com as pernas inchadas? É a beleza da gestação.

– Ordem. – interveio Gertrude – Temos uma pauta, uma tarefa a cumprir, com chuva ou sem as cadeiras de Bajado. Vamos fazer uma pichação.

– Uma pichação. Sinto-me estudante outra vez. Gosto disso.

– Chica não poderá ir. Arriscado demais. Não está com agilidade para correr, se for o caso. Com a barriga crescida, teria a silhueta facilmente reconhecida por alguém acordado, atrás de postigos. E no ofício de artesã, terá muito que fazer para o Partido crescer em Olinda.

– A revolução nascendo do milagre da terra – lembrou Maújo, ufano.

– Sugiro que Bajado seja o nosso patrono, mesmo não estando aqui – interveio pela primeira vez numa reunião, Chica.

– Decerto. Os comunistas são filhos adotivos do povo. Bajado tem a alma do povo nos seus quadros. Hoje é o nosso patrono, amanhã será nome de praça, de rua…

– Viva Bajado!

O grito foi repetido semanas depois, por Maújo; gritou no alto da Ladeira da Misericórdia, após tomar cerveja na Bodega do Moço. Antes de subir, dissera ao vendeiro, puxando-o pelo ombro, sussurrando para dar importância às palavras:

– Orgulhe-se de ser vizinho de Bajado! Um artista universal que usa camisa de chita e calça cáqui… Dê-me outra cerveja que eu bebo em homenagem à perenidade de sua obra. Este copo tem a duração de segundos apenas, mas o gozo da homenagem ao homem mais puro de Olinda.

O vendeiro emocionou-se, bebeu com Maújo.

Moradores da ladeira puseram a cabeça do lado de fora da janela.

– Viva Bajado!

– Vamos para casa, Maújo – advertiu-o Chica.

– Não tenho papas na língua para falar de meus sentimentos para com Bajado. As beatas da Sé rezam todo dia, fazem preces para as netas manter o cabaço até a noite de núpcias. Não têm noção da grandeza de serem contemporâneas de Bajado! Velhas estúpidas. Viva Bajado!

– Está dando discurso!

– Quero uma tribuna, Chica, uma tribuna para ser o mitingueiro de Bajado; gritar do Alto da Misericórdia que Bajado é tão virtuoso quanto o secretário é medíocre! Olinda, você me dá asco… Não está fazendo justiça a seu passado!

– Vamos para casa.

– Leve-me até o pai de santo. Quero lhe dizer que seus tambores não são tão sonoros quanto as troças mudas dos quadros de Bajado. Edu, bufão de orixás, traga seus bombos para atrair o povo às praças. Junte os capoeiras. Bajado tem cadeiras para apreciar a festa de pão e rosas.

O grito se perdeu ladeira abaixo. Os moradores, atentos ao discurso borracho, fecharam as janelas, matraquearam portas. A zoeira da molecaria ficou nas calçadas. O céu não absorveu o grito, do mesmo modo que não absorvera, ano a ano, a turba de foliões insanos. O grito esbarrou no sopro do vento, desceu para o calçamento, rastejou nas pedras, entrou nalguma sala acanhada, roçando paredes; morreu no quintal com titica de galinha. A titica não era tão incômoda quanto o sentido do discurso.

A revolta de Maújo entranhou-se nas bocas de esgoto, moribunda, carente de multidão. Não viu sua revolta ser acolhida pelo esgoto, mas sentiu-se repelido com o alvoroço de janelas se fechando.

– São como vermes! Vivem na escuridão de corredores, de quartos úmidos sem luz. Acham que isso é ser feliz.

– São felizes a seu jeito, Maújo.

– Está falando como eles, meu bem, como uma conformada. Não está mais lendo o Romanceiro?…

– Tenho me dedicado mais ao barro que à leitura.

– Volte para a leitura. Prefiro vê-la sem ofício do que ignorante.

Mirando o quarteirão, Chica imaginou os moradores viciados em rezas. O riso, para eles, era um pecado; viviam nas trevas sem confessar; se lhes batessem na porta, olhariam na fechadura, assustados com a violação de suas sepulturas. “Abram suas campas, defuntos vivos. Contentam-se com orações, ajoelhados em catres!” – quase disse, ela.

– Está vendo essa parede coberta de musgo molhado, meu amor? – perguntou a Chica, os dois descendo a rua Saldanha Marinho – Tem mais vida que as paredes de todas as casas da Ladeira da Misericórdia. É um musgo que não tem pudor da própria cor; quando o sol reaparecer, vai fulgurar como um tapete, até secar sem vida; enquanto tiver vida, não vai renunciar a si mesmo. Já as paredes das beatas, essas perderam a cor, estão cobertas de mofo, de fungos! As velhas passam o dia inteiro cheirando mofo, aspiram fungo quando dormem e ainda têm que confessar culpas no confessionário.

– Não se purgam do presente, purgam-se do passado.

– E precisam se imolar antes da morte.

Na casa de Teotônia, entraram pela oficina. Na cozinha, Maújo continuou:

– Dona Teotônia, dou-lhe parabéns. Seu cuscuz não cheira a incenso nem tem gosto de hóstias. É um cuscuz profano, divinamente profano; pode ser comido até com linguiça de porco.

– Não o misture com cerveja.

– Velha esperta. Ceva a sobrinha como um caranguejo no garajau, e não quer deixar que eu submeta o cuscuz à prova do álcool. Chica, vamos para o quarto. Quero ouvir você lendo o Romanceiro.

– Através de grossas portas

– A porta de Gertrude geme quando lá entramos. Quem dorme protegido por grossas portas? O arcebispo. As beatas têm portas grossas. Não trocam por outra; se trocassem, seria como trocar a própria vida.

– Sentem-se luzes acesas,

– Olinda não precisa de luzes, vive na treva de velas apagadas. Os postes são acesos para dar caminho ao guarda-noturno. Sem o guarda, a casa do secretário não teria segurança; nem a dos generais dorminhocos, tão dorminhocos que se acostumaram à precária segurança de um guarda municipal.

e há minuciosas indagações

dentro das casas fronteiras:

– Há mais cochichos pusilânimes, conversa de gente medrosa que se esconde nos postigos. Velhos poltrões, moços intimidados. Os rapazes crescem sob a influência deles. Arre…

olhos colados aos vidros

mulheres e homens à espreita,

– Deviam espreitar cada boneco nos quadros de Bajado; quem sabe teriam mais energia ou removeriam a máscara fúnebre que há em cada um. Nasceram para morrer! O único cemitério da cidade é vizinho de todo mundo.

– caras disformes de insônia, vigiando as ações alheias.

Chica sorri ao ver que ele fechara os olhos.