Lugo articula esquerda e alerta para risco de novos golpes na AL

O presidente destituído do Paraguai, Fernando Lugo, revelou, nesta quinta (2), que pensava em afastar-se da política institucional ao fim do seu mandato, em 2013. Mas o processo relâmpago de impeachment, que apressou sua saída do governo, no entanto, mudou seus planos – deverá candidatar-se ao Senado. E tomou para si o papel de articulador político da esquerda paraguaia. Segundo ele, as forças progressistas do país nunca estiveram tão unidas. 

Lugo

Tranquilo e bem-humorado, o agora ex-presidente conversou por mais de duas horas com veículos da imprensa alternativa do Brasil, em um hotel em São Paulo. Avaliou o processo de destituição, o isolamento do atual governo, a ingerência estrangeira no país e a atuação “nas sombras” de poderes que “não mostram o rosto” – como o narcotráfico, as multinacionais ligadas ao agronegócio e os produtores de soja.

Defendeu ainda que, após o que aconteceu no Paraguai, os demais países da América Latina devem ficar em alerta. Quanto a reaver seu mandato, brincou: "Acredito em Deus e nos milagres, mas nesse eu não acredito”.

Lugo foi destituído da Presidência do Paraguai no dia 22 de junho, em um processo relâmpago no Parlamento em que as causas não ficaram claras. A comunidade internacional, em especial os países latino-americanos, condenaram o impeachment, que deu apenas duas horas para que o presidente se defendesse.

“Um dos motivos desse julgamento político foi o fato de este presidente não vir da militância nos partidos tradicionais. Nesta classe, sou um peixe fora d’água. Venho dos movimentos sociais e pensava que, quando entregasse a Presidência em agosto de 2013, poderia dedicar-me a outras atividades. Mas o golpe parlamentar mudou totalmente a minha vida”, disse Lugo.

No novo contexto, ele discute dentro da Frente Guaçú os próximos passos na política. O grupo, formado por 12 partidos e oito movimentos sociais, pretende lançar candidato à Presidência e conquistar muitas cadeiras no Parlamento. A ideia é evitar o cenário adverso que o ex-presidente enfrentou, sem uma base de apoio forte no Congresso.

Ainda há dúvidas jurídicas sobre a possibilidade de o próprio Lugo poder postular o governo do país. A reeleição é proibida no Paraguai, mas o fato de ele não ter concluído os cinco anos de mandato e não estar atualmente no cargo, faz com que seu caso seja diferente. Em meio às incertezas, a Frente Guaçú tem defendido que Lugo encabece uma chapa ao Senado.

“Estamos estudando e, em algumas semanas, saberemos com mais clareza o que é mais conveniente para o país. Pessoalmente, penso que, se isso vai ser útil para retomar a democracia e o processo de mudança no Paraguai, sou um soldado”.

Lugo deixou claro que a escolha de uma candidatura que represente a frente não é tarefa fácil. Hoje existem seis nomes colocados à disputa presidencial: o militar aposentado e ex-ministro de Defesa, Luís Bareiro Spaini; a ex-ministra da Saúde, Esperanza Martínez; o ex-secretário-geral da Presidência, Miguel Ángel López Perito; o economista Fernando Camacho; o integrante do movimento sem-terra, Sixto Pereira; e o jornalista Mário Ferrero, que, de acordo com Lugo, tem tido boa aceitação no grupo justamente por não ser vinculado a nenhum partido.

“Nunca a esquerda paraguaia esteve em melhor momento. Hoje ela avalia criticamente seu processo histórico, se reúne diariamente para discutir, é um momento muito interessante, que não existia. Mas sempre afirmamos que o mais difícil na esquerda paraguaia é construir o consenso. Às vezes é mais fácil construir um consenso sobre eixos programáticos, sobre ideologias, mas, quando se tratam de questões eleitorais e candidaturas, é mais difícil. Mas há esperança”, disse. 

Apesar disso, ele mostrou-se otimista em relação ao pleito. Segundo ele, a disputa se dará entre "uma esquerda renovada e uma direita que não está reciclada". E pesaria a favor da Frente Guaçú o fato de os partidos tradicionais estarem divididos. De acordo com Lugo, "a direita pode ter recursos financeiros, mas a esquerda, se for inteligente, pode ter os votos".

Por outro lado, há dúvidas sobre as condições nas quais se darão a eleição, já que o governo que destituiu o presidente deverá conduzir todo o processo. “Pode ser que não se solucione o problema da democracia, se as eleições não forem livres e transparentes. Como o governo golpista pode garantir isso?”, questionou o ex-presidente.

Causas do golpe

Lugo rebateu todos os argumentos utilizados para justificar o impeachment contra ele. Disse ainda que sua destituição não foi motivada por nenhuma atitude mais à esquerda de seu governo.

“Fernando Lugo não fez nenhuma medida socialista. Aceitamos as regras do jogo dos organismos internacionais, tivemos boas relações com todos. Tínhamos uma economia em crescimento, inflação controlada, multiplicação das reservas internacionais, éramos bons pagadores, enfim, fomos bons meninos. Mas havia um perigo: a continuidade de um processo. Isso incomodava. Quem viria depois de Lugo poderia dar mais impulso ao processo de mudança no Paraguai, isso sim incomodava”, opinou, citando a sua articulação com os grupos sociais.

O ex-presidente destacou a participação de outros agentes, fora da classe política Paraguai, no impeachment. Segundo ele, o golpe era planejado há bastante tempo. “Me refiro aos autênticos poderes que não mostram o rosto, agem nas sombras, mas que decidem”.

Lugo lembrou que o WikiLeaks vazou documentos da embaixada norte-americana que mostravam que em 2009 já se falava em golpe. “Quando eu comecei na política, me diziam que 70% das decisões eram tomadas fora do país. Eu não quis acreditar. Hoje, pela minha experiência, não descarto totalmente essa possibilidade”, disse.

De acordo com ele, a criação da Unasul e de sua comissão de Defesa foram uma “pedra no sapato” nas pretensões dos Estados Unidos. “O Mercosul nasce com um foco comercial, não tinha muita conotação política. Mas quando nasce a Unasul (eles pensam): ops, isso é perigoso. E o Paraguai era presidente da Unasul quando houve o golpe”.

Alerta à região

Nesse contexto, Lugo advertiu os demais países da região sobre a possibilidade de novas tentativas golpistas. “Há blocos na América Latina com características diferentes, blocos econômicos, ideológicos, e há toda essa tentativa de articulação e integração. Hoje, depois do que ocorreu ao Paraguai, creio que qualquer país tem que estar alerta. Quando houve o golpe em Honduras, já me diziam que o próximo seria o Paraguai. A direita mundial não tem limites”, afirmou, reiterando que hoje existem novas formas de golpe.

Questionado sobre onde poderia haver um novo corte institucional, ele respondeu: “não sei em que país será, mas será onde as multinacionais queiram ter acesso direto e livre aos recursos naturais da América Latina. Precisamos ter uma atenção especial nesse tema. E seguramente também há outros aspectos, como o ideológico, com os países da Alba”.

O poder paralelo e o atual governo

Na entrevista, Lugo mencionou ainda a força do narcotráfico, do agronegócio e das transnacionais na política paraguaia. “As multinacionais, se não se candidatam, financiam candidaturas. E depois cobram favores”, afirmou.

“O governo que se instalou em 23 de junho já tomou quatro medidas que nos fazem pensar na ingerência desses poderes de fato na política paraguaia”, disse Lugo. Segundo ele, a primeira foi a decisão de não cobrar imposto à exportação da soja; a segunda foi a permissão da entrada no país de sementes transgênicas, contrariando um movimento do governo Lugo de recuperar as sementes nativas; a terceira medida foi o anúncio do pagamento de uma dívida com bancos suíços, por um empréstimo cujos recursos nunca teriam chegado ao país; a quarta e última foi a negociação da instalação da empresa Rio Tinto.

“Como é possível quererem produzir alumínio no Paraguai se a matéria-prima e o mercado estão no Brasil? Estão negociando que o preço da energia para essa empresa fique por 30 anos sem reajuste, uma perda de 14 bilhões de dólares. Sem dúvida, essas multinacionais têm o poder de fato”, criticou.

Para combater essa situação, Lugo defende mudanças estruturais no Paraguai, que começariam com a instalação de uma Assembleia Constituinte. Outra prioridade apontada por ele é romper a estrutura econômica da propriedade da terra. “O Paraguai tem uma extensão de 406 mil quilômetros quadrados. Mas somando todos os títulos de propriedade, tem 529 mil quilômetros quadrados. Então o que se passa?”indagou.

“Mas há esperança. Não há ilusão de mudança rápida, mas há processos que já se instalaram no Paraguai. O processo da saúde gratuita, por exemplo, uma conquista da cidadania, que não vai retroceder”.

Da Redação,
Joana Rozowykwiat