Emir Sader: O caráter dos conflitos na Bolívia atual

As relações entre desenvolvimento econômico e proteção ambiental cruzam, hoje, praticamente todos os processos políticos latino-americanos. Um continente que necessita, absolutamente, retomar níveis altos de desenvolvimento econômico, depois de forte e prolongada recessão, para poder atacar seu problema central – a desigualdade econômica.

Por Emir Sader, em seu blog

Tipnis

E que, conforme os governos neoliberais promoveram a desindustrialização e a abertura acelerada dos mercados internos, e que a situação da demanda internacional mudou, a exportação de produtos primários – entre eles os energéticos – passou a ter um papel central na pauta comercial da América Latina.

A sua combinação produz conflitos explosivos em quase todos os países do continente, com governos progressistas ou não. A Bolívia não é uma exceção, mesmo tendo, pela primeira vez, um presidente indígena e um governo apoiado diretamente por movimentos indígenas.

O projeto de construção de uma estrada cruzando a reserva do Tipnis, que fica entre Cochabamba e o Beni, levou a grandes polêmicas e muitos conflitos. A cobertura da imprensa de fora da Bolívia foi totalmente unilateral, promovendo um brutal e covarde cerco informativo contra o governo de Evo Morales.

Já dentro do país a mídia privada exaltou os movimentos que se opuseram ao projeto do governo, aparecendo, paradoxalmente, como defensores dos indígenas e da ecologia. Como em todos os países da região, o objetivo é enfraquecer o governo, mediante uma esdrúxula aliança da direita com setores do movimento popular.

Ao longo de toda a crise do Tipnis, nenhum ou quase nenhum espaço foi dado para ouvir as vozes do governo, em particular Evo Morales e Alvaro Garcia Linera. Interessava mais a condenação de uma suposta “traição” do governo originário do movimento indígena, que reprimia movimentos indígenas e violentava reservas indígenas.

"A geopolítica amazônica"

Alvaro Garcia Linera publica um livro que refuta todas e cada uma das alegações da oposição e dos seus porta-vozes bolivianos e internacionais. Apesar de ser o mais importante intelectual latino-americano contemporâneo e, ao mesmo tempo, vice-presidente da república, busca-se exercer sobre suas palavras a censura e o cerco covarde que se exerce sobre o processo boliviano.

O livro tem como titulo "A geopolítica amazônica" e como subtítulo "Poder fazendário-patrimonial e acumulação capitalista", foi publicado pela Vice-presidência da república e teve lançamento em La Paz na semana passada, da qual pude participar, com um público basicamente jovem, de um milhar de pessoas.

Nele, Alvaro começa por expor as transformações logradas pelo governo nestes seis anos, que permitem dizer que se trata de um processo revolucionário – uma “revolução política-cultural e econômica”, nas suas palavras. Transformações na apropriação do poder do Estado e nas próprias formas de tomada de decisões caracterizam as profundas mudanças políticas e culturais vividas pela Bolívia. Transformações na propriedade dos principais meios de produção – no campo, nos setores energéticos e também nos industriais – marcam a revolução no plano ecônomico.

Mas o livro de Alvaro se centra no desmentido de suposições que orientaram a campanha midiática da oposição, dentro e fora da Bolívia, contra o governo. Entre eles, um é o de que fez circular a ideia de que a estrada do Tipnis seria parte da IIRSA, como instrumento da exportação de produtos brasileiros para o Pacífico, valendo-se de território boliviano.

O livro demonstra, claramente, como a estrada chega a território boliviano, como parte da unificação nacional do país, sempre fragmentado e dependente, neste caso, da passagem por Santa Cruz de la Sierra, para a conexão entre Cochabamba e Beni – província em que o governo desenvolve intensos projetos agrícolas, que libertariam a economia da dependência da província cruzinha. Por isso Alvaro chama de “farsa cantinflesca” essa acusação.

A farsa da terra virgem

A outra tem a ver com uma suposta imagem do Tipnis como uma reserva virgem, que seria violada pela estrada que o governo projeta construir. O livro demonstra, com fatos, mapas e fotos, como essa região é intensamente exploradas por grandes empresas internacionais, do setor de madeira, de caça de jacarés e de gado, entre outras. Vários aeroportos clandestinos servem a essas atividades, assim como a um intenso turismo internacional.

Assim, a não presença do Estado, propugnada por ONGs internacionais e alguns movimentos indígenas o que defende não é a inexpugnabilidade da reserva, mas a permanência e extensão dessas explorações, com a ausência do Estado nacional boliviano. Alvaro acusa essas ONGs e movimentos indígenas, assim, de defender os interesses de grandes empresas multinacionais e de governos estrangeiros.

O poder, na Amazônia boliviana, é detido então por essas empresas, por governos de países centrais do capitalismo, por um bloco fazendeiro-empresarial que explora matérias primas da região e por um conjunto de ONGs que atuam na Amazônia.

Ao final do livro, Alvaro se concentra no argumento de que a Bolívia – como também em outros países progressistas da região – se desenvolveria um modelo “extrativista”, negativo para o desenvolvimento econômico e social. Depois de retomar critérios clássicos de Marx sobre as formas de apropriação da natureza pela humanidade, Alvaro conclui:

“Não existe evidência histórica que certifique que as sociedades industriais capitalistas sejam menos nocivas frente à Mãe Terra do que as que se dedicam à extração de matérias primas, renováveis ou não renováveis.” Superar o extrativismo não é superar o capitalismo. Nesta fase se faz indispensável utilizar os recursos aportados pela atividade primária exportadora controlada pelo Estado para gerar os excedentes que permitam satisfazer as condições mínimas de vida dos bolivianos e garantir uma educação intercultural e cientifica que gere uma massa critica capaz de assumir e conduzir os emergentes processos de industrialização e de economia do desenvolvimento”. Deixando intempestivamente o extrativismo se perderia a oportunidade da acumulação de recursos para o salto para uma economia baseada na indústria e no conhecimento. A simples condenação do extrativismo deixaria a economia do país inerme pobre, relegada a seu estado atual. Seria a estagnação, que prepararia o caminho para a restauração conservadora que os opositores pregam.

“O importante é reorientar o sentido da produção sem esquecer que é preciso também satisfazer as necessidades básicas fundamentais, que foram precisamente as que levaram a população a assumir a construção do poder do Estado. Justamente o que estamos fazendo na Bolívia”.

É, portanto, um livro essencial, sem o qual a visão dos conflitos e da etapa atual do processo boliviano é impossível de ser compreendida.