Democracia ferida: estudantes temem expulsões na USP

A Universidade de São Paulo (USP), com mais de 78 anos de história, é reconhecida como a maior e uma das mais importantes instituições de ensino da América Latina. No entanto, a falta de democracia faz com que passe a virada de ano com outra marca: quase uma centena de estudantes e funcionários sofre processos administrativos por motivações políticas. Eles temem a expulsão, principalmente durante período de férias.

Desde a intervenção policial do dia 8 de novembro de 2011, em que a Polícia Militar (PM) invadiu o campus Butantã em São Paulo (SP) com um verdadeiro aparato de guerra, 72 pessoas, entre alunos da USP e de outras universidades, e funcionários uspianos e de demais categorias profissionais, estão sendo processadas por terem ocupado o prédio da Reitoria na mobilização contrária à presença da PM no campus.

O reitor João Grandino Rodas também processou doze uspianos presos durante a reintegração de posse, no carnaval de 2012, da ocupação da “Moradia Retomada”. Localizada do Conjunto Residencial da USP (Crusp). A mobilização estudantil, na época, lutou para recuperar um bloco que havia se transformado em ponto administrativo da universidade.

Além desses, outro processado é o diretor do Sindicato dos Trabalhadores da USP (Sintusp), Claudionor Brandão. Em 2013, sua demissão, considerada pelos movimentos socais como fruto de perseguição política, completa quatro anos. Ele foi demitido por “desvio de função” ao defender funcionários terceirizados em 2008 – portanto, outra vítima de processo.

Outros membros da comunidade universitária também estão sendo processados e a motivação política está sempre presente. “Hoje, toda a diretoria do sindicato, bem como diversos ativistas da categoria, estão sofrendo processos devido à sua atuação política. Eu estou enfrentando, além dos processos administrativo e criminal por conta da reintegração de posse da reitoria, outros processos", afirma a diretora do Sintusp, Diana Assunção. "O nível de perseguição política na universidade é tão aberrante que há processos contra toda a diretoria do sindicato devido a boletins que escrevemos. Há também estudantes que foram expulsos da universidade no fim do ano passado por conta da ocupação da Moradia Retomada, uma luta contra o caráter elitista da universidade que questionava a falta de políticas de permanência estudantil”, destaca ainda Diana.

Ameaça com a universidade vazia

De todos os processos, os da reintegração de posse da reitoria são os que mais preocupam no momento os ativistas da universidade. Isso ocorre pelo histórico de expulsões e retaliações aos movimentos políticos em períodos em que a universidade está mais vazia, como afirma um estudante processado que não quis se identificar. “A expectativa é de que os ataques mais uma vez se darão covardemente nas férias estudantis, assim como acontece com aumentos de passagem de ônibus”, diz.

Fernando Pardal, estudante de pós-graduação de Letras que está sofrendo processo, corrobora o argumento. “Vários ataques são realizados pela reitoria nas férias para tentar minar a resistência a eles”, afirma, citando a demissão de Brandão, ocorrida justamente na mesma época do ano, em 2008.

Nesse caso específico, os processos ocorrem em duas instâncias – administrativa (interna à USP) e criminal. Os processos administrativos estão em fase final após um longo período de funcionamento da comissão processante, criada pela USP para julgar os envolvidos com a desocupação da reitoria. Aproxima-se a data para uma definição da situação dos processados que, por outro lado, questionam a idoneidade da comissão.

“As comissões processantes deixam patente, por si só, a enorme farsa jurídica que são esses processos. Não houve nenhum tipo de sindicância para que se apurassem os fatos e se averiguasse a pertinência ou não de abertura de processos administrativos: a única “prova” que embasou todos os processos foi o boletim de ocorrência perpetrado pela própria Polícia Militar, que além de não possuir nenhuma validade jurídica como evidência, apresenta apenas a versão da própria polícia”, opina Pardal, que também explica que os boletins de ocorrência não individualizam o crime, ou seja, não mostram quem fez o quê, ferindo um pressuposto jurídico elementar em qualquer julgamento.

O caráter pouco democrático das oitivas (sessões em que acusados e testemunhas cedem depoimentos) também é ressaltado por Diana. “Na prática, é a reitoria que acusa, julga e pune. Em muitos casos, as testemunhas de defesa sequer foram ouvidas”, afirma.

Regime disciplinar do período militar

A imposição dos processos foi embasada no decreto nº 52.906, de 1972 (clique aqui e leia na íntegra), o antigo regimento geral da USP, criado na época da ditadura militar. “O decreto-lei pode e deve ser lido como inconstitucional frente às claras afrontas a liberdades políticas e de expressão nele contidas, com sanções previstas a manifestações de caráter político. No mais, foi elaborada pela gestão Gama e Silva, um dos signatários e talvez mentor intelectual do AI-5, e aponta nitidamente o caráter cerceador de liberdades do instrumento, que carrega construções típicas do léxico da Lei de Segurança Nacional e outros instrumentos normativos do período de governo explicitamente de exceção”, explica um dos advogados voluntários que auxiliam o grupo de processados, Gustavo Seferian.

Campanha democrática

Com o histórico de ataques da Reitoria durante as férias, a aproximação da entrega de um parecer sobre os processos por parte da comissão processante e a universidade vazia na virada do ano, os processados tentam formar uma campanha para que a sociedade volte os olhos às arbitrariedades que ocorrem na USP, ainda mais em um período em que a PM está sendo tão questionada por ações truculentas em toda a cidade de São Paulo.

“Bem aqui ao lado da USP, na favela São Remo, têm ocorrido violações dos direitos humanos de todos os tipos, inclusive com crianças, como o jovem Genilson de apenas 15 anos, assassinados pela polícia. Não podemos ver essa repressão separada de um projeto de universidade elitista e racista, que mantém excluída toda a juventude pobre e negra através do filtro social do vestibular”, diz Pardal, relacionando os recentes episódios envolvendo a PM com a demanda do movimento que culminou na ocupação da reitoria em 2011: a saída da PM do campus Butantã, além do repúdio às ações da instituição nos morros e favelas.

“É importantíssima a oposição forte aos mandos e desmandos desse interventor [o reitor João Grandino Rodas] para que assim o apito da panela de pressão dê lugar a uma explosão, com as pessoas se manifestando e agindo publicamente, sem medo, em prol da universidade pública e contra Rodas”, afirma estudante processado que não quis se identificar.

Para colocar de pé a campanha, os processados buscaram entidades e movimentos. “A partir do Fórum Pela Democratização da USP e das entidades, articulamos uma nota em defesa dos processados que já conta com o apoio do Diretório Central dos Estudantes (DCE), Associação de Pós-Graduação (APG), Sintusp, Adusp, além de muitos centros acadêmicos e professores da USP, UFU, Unesp”, afirma Diana. “É necessário compreender que os ataques da reitoria contra estes estudantes e trabalhadores são um passo imprescindível do ponto de vista do governo estadual para que se possa seguir adiante no sentido de tornar a universidade cada vez mais elitista e atrelada aos interesses das grandes empresas”, complementa a sindicalista.

Para saber como articular apoios e entrar em contato com os processados, acesse: www.processadosnausp.blogspot.com.

Fonte: Brasil de Fato