O que rasteja nos poemas de Ricardo Flaitt num só dia

Ricardo Flaitt já é um poeta veterano. Paulista de Mococa, quase em Minas Gerais, aparece agora com este surpreendente O Domesticador de Silêncios, que merece atenção cujo prefácio Prosa Poesia e Arte publica aqui.

Por Getúlio Cardozo (*)

domesticador de silêncios

Conheci Ricardo Flaitt não na literatura, mas numa missa do galo de 1992. Se não estou enganado, sentava-se do meu lado esquerdo e fez um comentário sobre as mulheres do rei Salomão. Não sei por que lhe disse que Dostoiévski era parecido com o rei Salomão; acho que devido seu misticismo. Ele me disse que havia um cara atrás de nós parecido com Dostoiévski.

Voltando-me para trás de nós, reconheci-o imediatamente: tratava-se de meu tio Dimitri Fiódorovitch Cardozo, o único comunista e escritor da família. Cito a missa e esse tio devido a sua influência em nossa formação literária e em nosso costume de falar por muito tempo como os cossacos.

Penso que as longas histórias sobre a Sibéria que Ricardo ouviu de Dimitri, inspiraram seu livro O Domesticador de Silêncios. Ou talvez um galo que, nas madrugadas, cantava em seu quintal e que nunca foi visto.

Agora que leio os originais do livro de Ricardo Flaitt – são exatamente nove da noite – ouço meu finado tio formulando essas perguntas em meu ouvido: “O que rasteja nos poemas de Ricardo Flaitt num só dia? O que entorta a perna e por telepatia segue em Código Morse até a última gota deste livro? Quem é o pilão cego que quer se afogar nas águas do rio?”.

Caro amigo Ricardo, transcrevo essa voz do além, contorcendo na minha língua seus poemas. Deixo a um tio falecido a incumbência de prefaciar o seu livro, que traduzo da língua das pedras para a língua dos peixes. O silêncio me toma quando leio os seus poemas. Volto a esse mundo tão conturbado e diferente desse daqui. A mata me come. Viro um pouco raiz, lama, lodo. Meto o chapéu na cara e passo longe do crítico literário, do resenhista, do linguista. Boto uma camisa velha posto que foi de Idalécio Cardozo, pego um saco, facão, embira e vou atrás do poema-peixe. Assim dá mais certo.

Vou me iniciar pelas chuvas. Eu, Dimitri Fiódorovitch Cardozo, conheci Ricardo Flaitt no dia 9 de novembro de 1999, no casco da Coronel Diogo. Eu lhe ofereci fungos e lodos. Ele me deu semana inteira de chuva. Nuvens pastavam baixo e caramujo vinha atrás de pose para fotografia. Ricardo já era próspero em sonetos e elegias. Trabalhamos juntos nesse negócio de poesia.

Fomos sócios, montamos até firma S/A, ficamos ricos, quebramos, montamos microempresa para fazer um poema sobre máquina de costura.

Mas o que gosto mesmo é ver Ricardo no Picadeiro. É um de seus primeiros poemas e é de tirar o chapéu. Esse poema é melodia, a existência brilhando em mim.

Penso que Ricardo é o poeta que melhor soube falar das coisas sem nome, sem endereço, sem destino.
Poucos como ele soube dar voz a essa coisa que não sabemos se é corgo ou traço, rua ou o quê, essa coisa fronteiriça entre o nada e a existência. Seus poemas dão a impressão de que não existe o ontem nem o depois, mas um único dia de encantamento e dor.

Ricardo tem a sabedoria dos vaga-lumes, do monjolo, dos caminhos-de-não-ir das cidades pequenas. Vai parafusando sua obra com esses nadas da noite.

Entretanto, sua poesia não é cabocla, nem provinciana.

É o homem-poeta denunciando a inutilidade das coisas que o cercam, esse mundaréu de desutensílios (Manoel de Barros) que o homem inventou.

O casamento de elementos arcaicos e modernos imprime um lirismo especial em seus poemas. O autor, mesmo, define seu texto como “fusão de Minas com a modernidade” (Monjolelétrico). Dá a impressão de que alguma coisa do seu passado distorce todas as formas que surgem no seu presente. Desta maneira, nasce o embate entre paisagem rural e urbana, como se copulassem, num permanente corpo-a-corpo. É um texto fronteiriço, revelando o drama da consciência entre o antigo e o novo, entre alguma coisa que se perdeu e o que se deseja.

Tarefa impossível reconhecer o outro que se oculta em seu texto e que não é mais o poeta. Na poesia o poeta permite que o outro seja. Terá a palavra esse poder alquímico de transformar o autor num estranho que nem ele se reconheça mais? É possível o abstrato reagir quimicamente no interior do poema? Ou poetas como Ricardo esmagam essa linha divisória entre o abstrato e o concreto? Ou, na verdade, tudo no mundo é matéria de poesia? O poema é uma zona tão tênue que não dá para dizer se é matéria ou espírito?

No seu texto poético, tudo é estranho ao homem, nada lhe pertence e por isso distorce todas as coisas, dá-lhes outros nomes numa busca desesperada de sentido.

Talvez a única coisa no mundo que se assemelha ao homem é a poesia, essa coisa agarrada na folha de papel, como o que tenta se agarrar no vazio. E tudo que o homem toca destrói ou encanta. Nada será mais como era antes – nem o planeta, nem as palavras.

Penso que a poesia transcende a questão linguística e envolve toda a dimensão humana. Talvez tenha a ver mais com a filosofia que com a literatura, visto que se distingue de todos os gêneros literários conhecidos.

A poesia dignifica o homem, na medida que é resultado de um trabalho paranoico para imitar o Criador.
A palavra é o nada de onde o poeta imagina extrair aquele mundo inocente do livro do Gênese, onde o homem reina sobre as coisas, de forma absoluta.

Ricardo, como outros poetas, aceita esse papel de criador, interferindo no mundo sem mediações, deixando a situação de ser alienado para a de ser onipresente. Apropria-se, por instantes, de uma coisa que julga lhe pertencer (o mundo), para repeli-lo em seguida ou tentar moldá-lo à sua maneira.
Desta forma, o poeta nunca se reconhece no mundo e talvez seja essa a natureza do ato poético: a outra face que nos deslumbra e nos repele. A poesia de Ricardo é a matéria que se corrompe, que se contorce e se transforma.

Mas percebo que para um morto falei mais do que deveria.

O silêncio me acena e outros Cardozos falecidos me aguardam. Deixe que meu sobrinho, que é mais talentoso que eu, complete essa tarefa e assine esse prefácio por mim.

Nota: título atribuído pela redação do Prosa Poesia e Arte

(*) Getúlio Cardozo é poeta e artista plástico.

Do livro: Ricardo Flaitt. O Domesticador de Silêncios. São Paulo, Centro de Memória Sindical, 2013