Nossas santas negras

 *Por Aldo Rebelo

Beatificação de Nhá Chica

A beatificação da filha de ex-escravos Francisca de Paula de Jesus, a Nhá Chica (1808-1895), é justa e até tardia homenagem da Igreja Católica a um país onde no prolífico campo da fé os negros cativos desfrutaram do sincretismo que os permitiu manter crenças antigas e abraçar uma nova. Nas senzalas de onde surgiram os candomblés também se professou o catolicismo, primeiro imposto pelo colonizador português e a seguir praticado como um traço cultural da formação social brasileira.

A escravidão, que ainda nos causa revolta e foi já mote de perplexidade nos versos de Castro Alves (“Senhor Deus dos Desgraçados!/ Dizei-me vós, Senhor Deus!/ Se é loucura… se é verdade/ Tanto horror perante os céus?!”), teve peculiaridades em sua trajetória abjeta. Gilberto Freire, grande intérprete do Brasil, observou que “a religião tornou-se o ponto de encontro de confraternização entre as duas culturas, a do senhor e a do negro; e nunca uma intransponível ou dura barreira”.

Muitos são os testemunhos de pessoas catequizadas pelas negras amas de leite. O escritor Silvio Romero (1851-1914) disse que aprendeu a rezar e a “considerar a religião como coisa séria” por influência de sua fervorosa “mãe negra”, o que levou Gilberto Freire a concluir que os meninos de famílias escravocratas recebiam “nos afagos da mucama a revelação de uma bondade porventura maior que a dos brancos” (a exemplo de Nhá Chica) e “o contágio de um misticismo quente, voluptuoso, de que se tem enriquecido a sensibilidade, a imaginação, a religiosidade dos brasileiros”.

No enorme altar de santos católicos contam-se nos dedos os “homens pretos” e o Brasil também se distingue nesse particular: a padroeira nacional uma Nossa Senhora da Conceição negra. Eis um simbolismo que rompe a fronteira e caracteriza uma sociedade que fez da miscigenação uma arma poderosa contra o racismo.

*Ministro do Esporte e deputado federal licenciado pelo PCdoB-SP

Artigo publicado no jornal Diário de S. Paulo