Gringos, macacos e sul dos Estados Unidos

No texto “Gringos e Macacos“, publicado na última semana, reproduzi este movimento, ou trecho, do meu romance O filho renegado de Deus:

“– Eu serei o seu guia e intérprete no Recife, excelência.

Por Urariano Mota.

Urariano Mota
Então uma jovem ao lado de Ted Kennedy, com jeito de fina, educada, parecendo uma condessa, então essa senhora vai falar para Edward, em gíria do Sul dos Estados Unidos:

– Quem vai nos servir é este macaco?!

Sim, então nessa frase o negro Filadelfo sentirá, com tamanha raiva, mágoa que o deixará ferido. Então o negrinho vai sentir que serão crescidas dentro de si florestas de macacos, um povo de grandes símios, um mato, uma cerrada população de árvores onde pulam chimpanzés como ele, como sua mãe, como sua avó escrava, um povo de caricatura a pular entre árvores, onde se confundem os colonizadores filhos de colonizadores, netos de colonizadores, todos de capacete e rifle em safáris. É natural que não diga nem ao padrinho Manoel de Carvalho, pois o espírito acima de tudo não o perdoaria, e Filadelfo não podia contar que apenas respondeu, quando deveria cuspir, escarrar no imaculado e gentil braço da suave dama, mas apenas disse:

– Senhora, eu não sou macaco.

– Oh, não, o senhor entendeu mal, ela não disse isso – meio a contragosto contemporizou o nobre representante dos Estados Unidos. Ao que ele, o macaco que falava, apenas disse:

– Senhor, eu falo inglês e entendo bem as suas gírias”.
 

Referindo-se a esse trecho, um leitor no Direto da Redação fez o seguinte comentário:
 
Sr. Mota: Aqui no sul dos EU não existe gíria mas sim o sotaque sulino. A única gíria que escuto por aqui é o ebonics falado entre os negros e não a entendo e não entendida pelos meus amigos americanos. Vale acrescentar que vivo no Sul por 43 anos com um hiato de 4 anos em N.Y. City e 2 anos em Detroit. Onde posso comprar este livro, O Filho Renegado de Deus? Este ebonics é coisa nova e não existia em 1961.
Em nenhum momento cheguei a duvidar da sinceridade do comentário do leitor acima. Mas ele não foi verdadeiro. Explico: sinceridade e verdade somente se acompanham na rima. Um indivíduo pode ser sincero, mas ainda assim não ser verdadeiro. Isso acontece com todos nós, quando falamos em público o que o filtro interno da censura e da repressão íntima permitem. Ou quando perguntamos, por exemplo, a uma prostituta se ela é feliz. Algumas responderão que “sim”, e estarão sendo sinceras, mas não verdadeiras, porque a condição delas não é bem de felicidade.
 
Mas há no comentário do brasileiro que vive no sul dos Estados Unidos um outro componente. É um erro que nos pega a todos quando falamos da própria experiência sem uma atenta, detida e aprofundada reflexão. Quando assim agimos, não retiramos da experiência aquilo que pode nos iluminar e a outras pessoas. O particular nosso perde a universalidade. Quando García Márquez levou cuspe na cara em Paris, ele pôde ver e sentir, a partir da conversa com outros imigrantes, que ele tinha cara de argelino. E o tempo na França era da guerra contra os patriotas da Argélia. Além da mágoa contra o comportamento dos civilizados franceses, ele pôde ver o que a humilhação sofrida nada tinha de pessoal.

O certo é que, no limite do espaço para resposta, gaguejei isto para o brasileiro que vive no “sul profundo” de lá:
 

Caro, a gíria é um fenômeno universal. Nascida como uma linguagem de grupos humanos marginalizados, mais tarde foi assimilada pela dita elite, quando não quer ser compreendida pelos “de fora”. O dicionário Houaiss a define como “linguagem informal caracterizada por um vocabulário rico em idiomatismos metafóricos, jocosos, elípticos, ágeis e mais efêmeros que os da língua tradicional”.
 
Ora, a vontade maior que eu tive foi lembrá-lo de Mark Twain, que é domesticado, “bem educado”, violentado em traduções brasileiras, até por Monteiro Lobato, quando retiram dos seus personagens negros a gíria do sul dos Estados Unidos, terra primeira do genial humanista. Mais sorte possui Faulkner, porque em suas traduções os “deslizes” dos personagens sulistas são respeitados. Razão? Pensam que Twain não é literatura do mais alto nível, daí a diferença, justa e respeitosa, do tratamento que dão à prosa de Faulkner. Mas injusta por não fazerem igual com Mark Twain. Mais: na breve resposta não deu nem pra lembrar uma polêmica recente, do filme Django livre, em que a gíria do sul profundo gerou problema com Spike Lee, nem da história do rock, hoje universal, nascido entre gírias e volteios sulistas.
 
Dizer que lá na região de William Faulkner e Mark Tawin não existe gíria, seria o mesmo que – perdoem este idiotismo local –, “é que só” alguém dizer que não existe gíria pernambucana, porque vive no Recife há mais de 60 anos, e aqui só se fala o português de todos os dias… como expressariam os cariocas, “é ruim, hem?”. Apenas mencionei, mais rápido que a velocidade da luz, a assimilação, pela elite, da gíria que nasceu marginal. Como acontece, de resto e enfim, com todas grandes manifestações culturais, sempre nascidas da gentinha marginalizada, mas dignificadas depois como símbolos de nacionalidade. Conforme ensina a história do jazz, do tango, do samba e do frevo. E deste português, tão plebeu e ignorante do latim, que bem e mal falamos.