Entrevista – Téti: Um canto equatorial

Voz feminina de um dos momentos mais marcantes da música cearense, Téti recorda os tempos de Pessoal do Ceará e diz que, se preciso, faria "tuuudo de novo". Leia a íntegra da entrevista publicada nesta segunda-feira (10) no jornal O Povo.

A voz continua firme. Aquela que tão bem canta o Ceará desde 1973, quando Meu corpo minha embalagem todo gasto na viagem encontrou os ouvidos do público. A mesma que distraía a menina tímida no balançado da rede enquanto cantarolava Dalva de Oliveira. A afinada voz que tanto temor causou diante das freiras do colégio e dos palcos amigos. Que demorou até ser aceita como meio de ser ou razão de vida.

A voz de Maria Elisete Morais de Oliveira e Rogério, a Téti, conserva a firmeza e a beleza de sempre. Como se a mulher pequena, de loiros cabelos desleixadamente arrumados e alma leve, fosse a mesma tão perto dos 69 anos, comemorados no próximo dia 13.

Como se fosse aquela, eternizada nas composições do Pessoal do Ceará. Marcada pelo tempo, ela mantém a vivacidade no timbre, no gesticular das mãos, na memória fresca, cheia de histórias. Na entrevista a seguir, Teti desfia algumas recordações de uma fase de sua vida que se confunde com a história da música cearense; conta da dificuldade de se enxergar como cantora e confessa: faria tudo de novo.

Você nasceu em Quixadá, numa família numerosa. Que lembranças guarda da infância no Interior?

Nasci numa família de dez irmãos do segundo casamento do meu pai. Na verdade, se for contar a família toda, seríamos 24 irmãos. Porque foram 14 do primeiro casamento e 10 com a mamãe. E eu sou a décima do segundo casamento. E a nossa família era muito musical, o meu pai tocava gaita, violão, promovia serestas. Todos nós tivemos iniciação musical, todos nós fizemos piano e todos afinados.

Mas você já queria ser cantora?

Nunca, nunca passou na minha cabeça… Isso não existia na minha vida. Eu gostava só de me sentar na rede e tacar o pé na parede e cantar e cantar e cantar… isso com uns 7, 8 anos. E como era muito afinadinha, as freiras sempre me colocavam pra cantar em festas de colégio. Como toda criança, em alguns momentos eu gostava, em outros, não. “Não, eu não quero cantar”. Ah, mas você vai cantar. “Não, não quero, não quero”. E elas: “Não, você não vai cantar, ela não quer cantar, tá certo”. Só que no dia da festa, elas me chamavam. Então, isso gerou um problema pra mim. Porque, como elas diziam que eu não ia cantar e me chamavam, eu comecei a assistir as festas do colégio apavorada. E isso eu levei pra minha vida. Durante muito tempo, ia assistir a shows de compositores e cantores da minha geração e ficava apavorada, achava que eles iam me chamar a qualquer hora. Estou me curando agora, depois dos 60 anos. Aí eu cantava no colégio e como era colégio de freiras, cantava nas missas também. E aos 14 anos nós viemos pra Fortaleza.

Como foi essa vinda pra Fortaleza?

Bom, nós chegamos aqui e fomos morar ali na Avenida da Universidade. E meu irmão que tocava violão, o Vavá, começou a fazer amizade com a vizinhança. Aí tinha o Aroldo, o Erivaldo, o Rodger (Rogério). A gente tocava muito violão em casa, Jovem Guarda, Bossa Nova e os Beatles, mas a nossa turma era mais pra Bossa Nova. E eu comecei a namorar com o Rodger. Ele já tinha ingressado na Universidade, foi quando começaram os encontros no Diretório da Arquitetura e eu passei a ir pra lá com ele, fui conhecendo as pessoas. Na época, o Fausto Nilo era presidente do Diretório. E foi assim que se iniciou, lá a gente cantava. Mas eu muito tímida, muito encabulada. E dali começou tudo.

Não havia a pretensão de formarem um grupo…

Não. Podia até ser que alguém da galera já tivesse na cabeça ser um grande músico, mas eu não. Eu não tinha, realmente. Eu gostava de cantar. Aliás, nem gostava muito. Eu ficava nervosa. O Rodger ia afinar o violão, tomar uma cachacinha, espremer o limão na cachaça e aquilo ia me dando um nervoso muito grande, uma tensão muito grande. Até eu me acostumar com isso foi fogo. Bom, aí começaram as apresentações nos programas de televisão, os encontros na casa do Dedé Evangelista e o festival de música da Rádio Assunção, que eu não participei porque na época eu estava grávida da Daniela, minha primeira filha.

Vocês casaram em 1968, não é?

Isso, em 1968. E eu não defendi a música “Bye, bye Baião”, do Rodger, porque eu estava grávida, enjoadíssima… Ave Maria! Aí eu não cantei. Já era um sofrimento. (Risos) Foi quando a gente foi pra Brasília, o Rodger foi fazer um mestrado, e eu fui, já tinha a Daniela. Lá a gente encontrou o Fagner, que tinha saído daqui pra casa da Elisete, irmã dele, o Fausto, a Mércia Pinto, o Flávio Torres, que também era da Física mas envolvido com música também. A gente lá em Brasília também era uma coisa muito amadora e tal.

Quando é que nasce a cantora Teti, então?

Foi quando a gente chegou a São Paulo, que a gente ficou cada vez mais unido. A gente morava na rua Oscar Freire, o Belchior morava numa casa que estava sendo demolida, de um cineasta. Mas eu já tinha apartamento, porque já tinha a Daniela e estava grávida do Pedro Rogério. Ele nascendo em 1972. E eu me lembro que saí pra maternidade da casa do Belchior.

Eu queria saber um pouquinho daquele cenário de Fortaleza antes de vocês viajarem. O que gerou essa “revoada” de artistas pra Brasília, pro Rio, pra São Paulo?

Do jeito que acontecia na Bahia com os baianos, em Minas com os mineiros, o Clube da Esquina, com o Milton Nascimento, a Tropicália, tinha essa juventude aqui que ainda não sabia no que ia dar. A época da repressão… A nossa saída era cantar, mostrar alguma coisa através da música, da poesia, do teatro. Então, era uma coisa muito gostosa, muito animada, uma coisa que não existe hoje. A gente estava lá na Arquitetura, aí ‘vamos pro Anísio’, aí saía os carros, o do Delberto, o carro véi do Fausto, caindo os pedaços… ia tudo lá pro Anísio. Aí tinha os programas de televisão que a gente participava. Era um cenário musical. A gente sentia a necessidade de alçar voo, mas foi uma coisa natural, ninguém combinava nada.

Como foi educar os filhos e ao mesmo tempo a viver a boemia, cantar, gravar, manter o casamento?

Olhe, olhe, não foi fácil! Você não pode calcular! A gente cantava numa boate chamada Igrejinha. Era famosíssima. A gente saía pra trabalhar às 23h, eu tinha uma pessoa que ficava em casa com as crianças, que tinha levado daqui, mas nós retornávamos às 3h, ficávamos conversando, tomando um cafezinho por ali, um violãozinho. Aí subíamos pra dormir. Só que às 6h tinha dois parzinhos de olhos em cima de mim, era a Daniela e o Pedro Rogério. Os maridos, na época, iam dormir. Hoje eu vejo o meu filho, os maridos das minhas filhas, que participam. Mas na minha geração? De jeito nenhum. Machistas, era tudo a mulher. Então eu acordava, ia dar banho neles, ia dar café. Nessa época não tinha máquina de lavar, por exemplo. Era tudo eu. Tinha de me desdobrar mesmo. Mas como eu era jovem e a euforia… Depois, com o tempo, eu acabei me cansando mesmo, é tanto que eu vim pra cá e como o Rodger não podia voltar, eu terminei por não voltar. Coisa que as pessoas me cobraram muito. Porque eu poderia até ter ficado lá, quando o Rodger veio porque tinha de vir por conta da Universidade, eu poderia ter ficado. Mas na época eu pensava assim: eu tenho dois filhos pequenos, eu tenho mãe e tenho sogra, o Rodger vai pra Fortaleza, fica com as crianças, mas qual é a mãe que deixa? É difícil!

Como foi a experiência do disco (Meu corpo, minha embalgam…)? Vocês imaginavam aquele impacto todo?

Foi maravilhoso. Quando o disco saiu foi um disco muito bonito, apesar de ter sido gravado em quatro canais. Todo mundo que escuta fica encantado com o disco. Foi um escândalo em São Paulo, aqui também quando a gente voltou.

Mas naquele momento vocês pensavam em continuar, em investir na carreira?

Na época do Pessoal do Ceará, sim. Mas a gente teve de voltar pra cá por problemas de saúde e ficamos aqui uns dois anos. Voltamos, aí já foi com o Manassés, o Edson Távora, o Marinho e gravamos o Chão Sagrado. Desta vez, só eu e o Rodger. Porque em Meu corpo minha embalagem todo gasto na viagem o Ednardo se destacou mais, já tinha a história do Pavão Misterioso (música de Ednardo gravada por Ney Matogrosso), que não está no LP, mas ele tinha gravado. Enfim, o Ednardo sentiu a necessidade de fazer o disco dele sozinho.

Isso gerou algum atrito entre vocês?

Não, não, nenhum. A gente sempre soube que eram três pessoas dividindo aquele disco. E quando nós tivemos de voltar pra cá de novo, eu dizia assim: “Meu Deus, eu não vou voltar por causa dos meus filhos”. Hoje eu vejo que teve essa história dos meus filhos, mas se eu tivesse uma garra maior, se tivesse batido o pé “Eu Vou Ser Cantora…” se eu, lá no fundo, entendeu? (Se emociona). Eu estou dizendo isso em entrevista, mas não tem nada não, não tem mais nada pra guardar, é tudo pra história mesmo da música…. Eu poderia ter ficado. O Rodger uma vez deu uma entrevista em que perguntaram a ele: você não ficou porque tinha a Universidade, problemas de saúde, mas e a Téti, por que não ficou? Aí ele: A Tetinha não ficou, acho, porque não quis. Na época eu fiquei com tanto ódio desse Rodger, fiquei danada. Mas depois, hoje eu vejo que também não fiz força pra ficar.

Depois do Pessoal do Ceará, como foi se encaminhando a tua carreira solo?

Depois que eu gravei com o Rodger e nós voltamos pra cá, foi quando aconteceu a Massafeira, que foi uma coisa maravilhosa, uma explosão. Era gente que não queria saber, queria era cantar, era mostrar seus trabalhos por todas as áreas, aquele (Theatro) José de Alencar fervilhava de gente. E quando eu fui, junto com mais 29 cearenses, gravar o Massafeira em Santa Tereza (no Rio de Janeiro), quando terminou o Fagner passando lá no hotel perguntou se eu não queria ficar por lá pra gravar um disco. Na época ele já estava entrando na CBS, ele ficou na direção. Aí foi direção musical do Fagner, produção musical do Fausto Nilo, os arranjos foram do Toninho Horta e do Túlio Mourão, os mineiros. Foi quando eu gravei o Téti Equatorial sozinha. Depois voltei pra Fortaleza.

Mas você passou um longo período sem gravar depois do Equatorial.

Passei, depois do Equatorial eu passei uns oito anos sem gravar.

Por quê?

Pois é. As dificuldades mesmo. Porque a gente fica imaginando que hoje não é tão difícil você morando aqui, mas ainda é, sabia? Ainda é, ainda precisa ir (embora). Ainda tem essa coisa. A falta de coesão é uma coisa muito estranha. As pessoas da música aqui no Ceará são amigas, mas não tem aquela coisa dos baianos, dos mineiros de estar ali junto, puxando, entendeu? Não é que sejam intrigados uns com os outros, não tem puxada de tapete, mas é cada um lutando pelo seu.

Além disso, você tinha as crianças, ainda teve uma terceira filha com o Rodger, não é?

Isso, depois do Equatorial, quando eu ia voltar para o lançamento, estava grávida da Flávia, o Fagner tinha saído da CBS. Menina, aí foi uma coisa atrás da outra e foi complicando.

A separação do Rodger também influenciou?

(Respira fundo). Com certeza. Com certeza (enfatiza). Porque a gente trabalhava desde os 15 anos, começou a namorar com 15 anos, e como eu sempre estava envolvida com filho, em terra estranha, estava muito envolvida com as coisas da casa, então essas coisas de estúdio eram sempre muito cuidadas pelo Rodger, pelo Ednardo, pelos meninos. Eu estava junto, mas sempre na hora de cantar, então eu não desenvolvi essa coisa de fazer um projeto e ir à Secult, ao Banco do Nordeste, essa parte aí eu não fiz e confesso que não sei fazer. Não adianta eu, agora, sessentona, dizer que sou a tal e vou e faço. Não, não faço. As coisas aconteceram assim. Depois que eu me separei do Rodger foi duro, foi duro, foi muito, muito, muito duro… Mas depois gravei o Téti do Pessoal do Ceará, que é um disco belíssimo, gravado no estúdio Olho D’água do Manassés e depois desse e de alguns coletivos eu gravei uma coletânea, que é o Nós Um. Depois que eu me separei do Rodger, fiquei trabalhando com o Pedro Rogério. Depois ele foi fazer mestrado e doutorado e foi ficando sem tempo. “Minha Nossa Senhora, esse Pedro Rogério tá dando o fora”, pensei. Aí, minha filha mais velha, a Daniela, casou com o Manassés, eu comecei a desenvolver esse trabalho com o Manassés. Aí Daniela e Manassés se separam, aí a Téti de novo… (gesticula abrindo os braços para dar a ideia de vazio).

Você sempre foi muito amparada.

Sempre, sempre. Eu sempre fui muito amparada, trabalhava com o Rodger, depois trabalhei com o Pedro Rogério, depois fiquei com o Manassés. Depois fiquei só de novo, agora o Pedro Rogério já está acenando de novo: “Mãe, vamos começar a ensaiar, trabalhar”. E assim eu vou levando. Mas não tenho frustrações, não tenho.

Mas houve algum momento de desencanto com a música? De pensar em parar?

Pensei, pensei em parar. Já chegou um momento na minha vida em que eu já gravei disco, já estou com idade tal, já estou na história da música, então eu vou parar de cantar. Aí eu conversava com um e com outro. Hoje, eu canto quando me convidam, quando tem um evento grande, alguma coisa que valha a pena, mas parar mesmo eu não posso, porque me solicitam, estão sempre me solicitando, sabe? Quando vou fazer show é uma coisa maravilhosa, porque, do jeito que fui amparada a vida inteira, agora é que sou mesmo, porque tem o Pedro Rogério, tem a Flávia que faz vocal comigo, a Daniela, o Manassés toca comigo, o Nilton Fiore, que é pai da minha neta, toca comigo. Tem a Júlia, que é filha do Fiore e da Daniela, é percussionista a minha neta. A Lucy, que é filha do Manassés e da Daniela, é afinada que parece eu quando era pequena. Então tô sempre rodeada, continuo amparada. A família é muito musical.

São mais 40 anos de carreira, você está com quase 69 anos de vida, tem uma passagem marcante pela história da música cearense, queria que você avaliasse essa trajetória de vida.

Acho que tudo valeu muito a pena. Eu faria tuuudo de novo. Nunca me senti injustiçada, muito pelo contrário. Não tenho que reclamar de nada, nada, nada. Sempre cantei o que eu quis. Fui muito amada, muito reconhecida. Sou reconhecida na minha terra, estou nessa história, isso me dá uma felicidade muito grande, ter contribuído pra isso. E me sinto muito feliz.

Fonte: O Povo