Publicado 22/06/2013 10:01 | Editado 04/03/2020 16:56
O telefone tocou por volta das 2 da madrugada. Atendi meio assustado. Era Zé de Arruda. Não se desculpou pelo horário. Foi direto ao assunto.
– Dr. Fonseca, o Brasil está se desmilinguindo!
Percebi que estava “tocado”.
– Andou bebendo, Zé?
– Claro. Mas estou sóbrio. Escute.
– Que conversa é essa de o Brasil está se desmiliguindo?
– Força de expressão. Quando eu era menino, meu pai falava muito isso. Por qualquer coisinha.
Fez uma pausa como quem arruma os pensamentos. Cogitei desligar e voltar a dormir, mas sabia que ele insistiria. Esperei. Não foi demorada a pausa.
– Você sabe a que me refiro, né?
– Aos últimos acontecimentos. Qual é o problema? Não é uma beleza o povo nas ruas? Nós não fomos em 68? Em 84? E em 92?
– Fomos. E também acho uma beleza o povo na rua. Aliás, povo, vírgula. A maioria são jovens de classe média. Tem uns garotos da periferia, também. Mas tem uma diferença…
– Claro…
– Você sabe tanto quanto eu que aqueles movimentos, bem ou mal, tinham propostas políticas, organização, direção, ideologia explícita. Dessa vez, começou com o lance das passagens em São Paulo, muito justo, e desembestou
Tentei ponderar algo de que não lembro, mas o homem estava impossível.
– desembestou numa parafernália reivindicatória dos diabos… Sabe o que quer dizer parafernália, né? Coleção de coisas usadas ou velhas, tralha. Vem do latim medieval “paraphernalia bona” ou seja, o enxoval que a noiva leva além do dote. Mas onde eu estava mesmo? Há, na parafernália reivindicatória.
– Qual o mal disto?, consegui contrapor, mas o Zé me atropelou com uma avalanche verbal que reproduzo de memória, obviamente dispensando aquelas repetições, frases interrompidas, hesitações e entonações típicas da fala oral, mais ainda enunciadas por um sujeito que havia tomados umas e ligava às duas horas da madrugada.
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– Você pergunta qual o mal disto? Bem, não é que seja um mal propriamente. Mas, pra usar uma expressão da moda, a turma está perdendo o foco, mermão. Protestar contra tudo é o mesmo que protestar contra nada! E enquanto a moçada dispara pra tido canto é lado, a ala reacionária da sociedade entrou com tudo no movimento, com objetivo muito bem definido: concentrar fogo no atual governo. Estão pegando carona no movimento para tentar desestabilizar o governo e aplicar um golpe igualzinho como tentaram na Venezuela. O que a turma conservadora pretende é anular as conquistas sociais e retomar o controle absoluto do estado, que ela aparelhou durante 500 anos para gozar integralmente dos seus privilégios. Nos últimos anos, a direita brasileira foi tomada por uma obsessão: derrubar Lula (e por extensão Dilma) e recuperar suas posições no aparato estatal. Não que o PT tenha feito nenhuma revolução, pelo contrário, cedeu pra caralho. Mas o pouco que redistribui incomoda a elite mais egoísta, gulosa e intolerante do planeta. Muitos dos que protestam nas ruas e nas redes sociais se orgulham de serem “apolíticos” e de “não precisarem de líderes”. Lindamente utópico. E convenhamos que a qualidade das nossas representações políticas ajuda muito esse raciocínio. O resultado é essa mistura de reivindicações por profundas e genéricas mudanças sociais e por conquistas pontuais de grupos que se sentem discriminados, com razão, sem qualquer organicidade. Aí é onde mora o perigo, meu amigo. Enquanto os meninos e meninas sonham com um admirável mundo novo, a turma da direita é profissional. Profissional, dr. Fonseca. Profissional. Está impondo a palavra de ordem de derrubar o governo Dilma, a pretexto de combater a corrupção. Feito em 1964. Se brincar, transformarão as passeatas numa nova Marcha da Família com Deus, pela Propriedade e a Liberdade. Sem falar que muitos argumentos que estão sendo esgrimidos são repetições do que a Grande Imprensa vem martelando nesses anos todos. E nem se dão conta! Vi um vídeo em que um garoto histérico criticava a corrupção e a carga tributária, citando uma cifra de trilhões de reais, e, encerrando o comício, pedia o fim do governo. E tinha um bocado de gente compartilhando, reproduzindo, comentando que ficou arrepiada com o discurso nitidamente fascistoide. Noutro, de produção extremamente profissional – câmera, iluminação, enquadramento, cortes, caracterização, fundo infinito etc. – uma jovem lourinha, que se diz brasileira residente nos States, pede que se boicote a Copa das Confederações. A coisa é apresentada como um depoimento espontâneo, mas a atriz, digo, a loirinha, não tropeça numa única palavra. E sabe como termina o depoimento espontâneo? Com imagens e palavras de ordem contra o governo. Uma peça de guia eleitoral da mais alta competência. Reconheço que está aparecendo uma insatisfação difusa inesperada, sobretudo entre os jovens. Mas há uma insatisfação muito bem definida que está surfando no movimento: a insatisfação dos que não engolem o bolsa-família, a nova lei das empregadas domésticas, as cotas nas universidades, a presença dos pobres nos aeroportos, o neguinho andando de carro e atravancando o trânsito deles! E a violência? Hein? Penso que a violência começou com jovens deserdados, sem perspectivas, que têm muita raiva acumulada. Descarregaram toneladas de opressão que sempre carregaram nas costas em tudo que simboliza o mundo do qual sempre estiveram excluídos. O discurso utópico e fragmentado da moçada de classe média, cuja desilusão tem causas e efeitos bem diferentes, rejeitando a atividade política indiscriminadamente, abre uma brecha pra essas expressões ensandecidas, como as brigas de gangues na periferia, os combates entre as torcidas organizadas, o pau com a polícia nos bailes funk etc. etc. Quando perceberam o espaço aberto, os agentes provocadores entraram em ação. Essa gente é treinada, organizada e afoita. O tipo de gente que matou o padre Henrique, que matou a secretária da OAB no Rio e, por acidente, explodiu no próprio colo a bomba do Rio Centro, lembra? E a atuação da polícia militar em Sampa e no Rio? Posso estar enganado, mas parece coisa deliberada. Não digo que seja ordenada pelos altos comandos, sei lá, mas em algumas ocasiões, naquelas noites mais “quentes”, sugeria um padrão: baixar o cacete nos manifestantes, em circunstantes, em gente que bebia em bares, em mulheres e em jornalistas e estranhamente se omitir diante dos incendiários e saqueadores. Vi na internet o policial paulista vandalizando a própria viatura e depois seus companheiros mandarem bala de borracha em quem tava filmando a sacanagem da varanda de casa. Pode? E policiais fardados e à paisana atirando com fuzis e pistolas no Rio… Parece claro que há gente aí nas corporações agindo para instaurar o caos e desestabilizar, entende? Serei maluco? Mas os vídeos estão aí nas tais redes sociais. É só espiar. Talvez hajam malucos de extrema esquerda também querendo emerdar, na antiga ilusão de que o caos levará necessariamente a uma revolução. Não tenha dúvida, dr. Fonseca. Há um caldo de que cultura em que a reação tá trabalhando com afinco pra transformar um movimento legítimo num pretexto… você sabe pra quê. Já tem gente falando em chamar o Exército e li um depoimento, não consegui saber se era autêntico, de um general da reserva pregando abertamente uma intervenção militar. Tem um ovo de serpente sendo chocado por aí.
Ufa! Estou completamente desperto. Faço uma provocação ao filósofo da madrugada:
– Mas, ô Zé, numa democracia a direita também não tem direito (sem trocadilho) de se manifestar?
– Claro, dr. Fonseca. Até o limite de não ameaçar a própria democracia, e isso vale para a esquerda também. É um paradoxo, mas penso que é fácil de entender: na democracia, todos têm o direito de falar e agir, desde que não atentem diretamente contra a própria democracia. Mas me desviei. O problema é que a direita não ousa dizer seu nome. Também pudera! Num país de estrutura social iníqua… No caso das manifestações atuais, a direita está camuflada, pegando carona na insatisfação de boa parte da sociedade. O que eles querem é tomar o poder de qualquer jeito e reorganizar o pacto da corrupção de antes, tranquila, com percentuais bem negociados e os mesmos atores de sempre, pacto que o PT destrambelhadamente re-arranjou, ao invés de extinguir.
– Puxa, Zé. Hoje você está impossível. E extremamente alarmista. Pessimista. Apocalíptico. Realmente muita coisa que você diz é bem razoável. Pensando bem, existem os riscos que você aponta. Mas vejo outros aspectos. Depois disso tudo, a política brasileira não poderá mais ser a mesma, para o bem e para o mal. Espero que para o bem. Gostei bastante do discurso dos dois jovens representantes do Movimento Passe Livre no programa Roda Vida, apesar da atuação bisonha e capciosa da maioria dos jornalistas. Quem sabe eles não se tornaram portadores de uma nova espécie de liderança política e social, sem os vícios seculares de nossa atividade política? As redes sociais abriram um espaço de participação e sobretudo de expressão que as instituições tradicionais terão de levar em conta. Não é à toa que os políticos, em geral, estão mudos. Ninguém sabe muito bem o que fazer. A tal voz rouca das ruas está tirando o sono da cambada. Isso é bom. Espero que tirem as conclusões certas e mudem a relação patriarcal com o povo, inclusive os partidos ditos progressistas. A canção que vem das ruas pode estar anunciando um novo (bom) dia.
– Tomara! Oxalá!
E desligou. Não mais dormi, com os pensamentos divididos entre a esperança e o medo.