Plebiscito
O conto Plebiscito, publicado no final do século 19, voltou à moda. Seu autor, o grande escritor maranhense Artur de Azevedo (1855-1908), diplomata, escritor, jornalista, etc…, ficou à sombra de seu irmão, outro grande nome das letras no Brasil: Aluízio de Azevedo. Em Plebiscito, ele capta com ironia a pequena percepção de grande parte da elite brasileira sobre esta forma de consulta popular. Vamos a ele!
Por Artur Azevedo
Publicado 04/07/2013 19:46

Plebiscito
A cena passa-se em 1890.
A família está toda reunida na sala de jantar.
O senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade.
Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário belga.
Os pequenos são dous, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas diárias.
Silêncio.
De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta:
– Papai, que é plebiscito?
O senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme.
O pequeno insiste:
– Papai?
Pausa:
– Papai?
Dona Bernardina intervém:
– Ó seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar, que lhe faz mal.
O senhor Rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos.
– Que é? que desejam vocês?
– Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito.
– Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito?
– Se soubesse, não perguntava.
O senhor Rodrigues volta-se para dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola:
– Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito!
– Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei.
– Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito?
– Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito.
– Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante!
– A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é plebiscito! Então? A gente está esperando! Diga!…
– A senhora o que quer é enfezar-me!
– Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, falou, e o menino ficou sem saber!
– Proletário – acudiu o senhor Rodrigues – é o cidadão pobre que vive do trabalho mal remunerado.
– Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce, se me disser o que é plebiscito sem se arredar dessa cadeira!
– Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças!
– Oh! ridículo é você mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: – Não sei, Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu filho.
O senhor Rodrigues ergue-se de um ímpeto e brada:
– Mas se eu sei!
– Pois se sabe, diga!
– Não digo para me não humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Vá para o diabo!
E o senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta.
No quarto havia o que ele mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de água de flor de laranja e um dicionário…
A menina toma a palavra:
– Coitado de papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso!
– Não fosse tolo – observa dona Bernardina – e confessasse francamente que não sabia o que é plebiscito!
– Pois sim – acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela discussão – pois sim, mamãe; chame papai e façam as pazes.
– Sim! Sim! façam as pazes! – diz a menina em tom meigo e suplicante. – Que tolice! Duas pessoas que se estimam tanto zangaram-se por causa do plebiscito!
Dona Bernardina dá um beijo na filha, e vai bater à porta do quarto:
– Seu Rodrigues, venha sentar-se; não vale a pena zangar-se por tão pouco.
O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente. Ele entra, atravessa a casa, e vai sentar-se na cadeira de balanço.
– É boa! – brada o senhor Rodrigues depois de largo silêncio – é muito boa! Eu! eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!… A mulher e os filhos aproximam-se dele.
O homem continua num tom profundamente dogmático:
– Plebiscito…
E olha para todos os lados a ver se há ali mais alguém que possa aproveitar a lição.
– Plebiscito é uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comícios.
– Ah! – suspiram todos, aliviados.
– Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo!…
Do livro: Artur Azevedo. Contos fora de moda. Rio de Janeiro, Alhambra, 1982